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ENIAC
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<p>DADOS DE COPYRIGHT</p><p>SOBRE A OBRA PRESENTE:</p><p>A presente obra é disponibilizada pela equipe</p><p>Le Livros e seus diversos parceiros, com o</p><p>objetivo de oferecer conteúdo para uso</p><p>parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem</p><p>como o simples teste da qualidade da obra, com</p><p>o fim exclusivo de compra futura. É</p><p>expressamente proibida e totalmente</p><p>repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso</p><p>comercial do presente conteúdo</p><p>SOBRE A EQUIPE LE LIVROS:</p><p>O Le Livros e seus parceiros disponibilizam</p><p>conteúdo de dominio publico e propriedade</p><p>intelectual de forma totalmente gratuita, por</p><p>acreditar que o conhecimento e a educação</p><p>devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer</p><p>pessoa. Você pode encontrar mais obras em</p><p>nosso site: LeLivros.love ou em qualquer um dos</p><p>sites parceiros apresentados neste LINK.</p><p>"Quando o mundo estiver</p><p>unido na busca do</p><p>conhecimento, e não mais</p><p>lutando por dinheiro e</p><p>poder, então nossa</p><p>sociedade poderá enfim</p><p>evoluir a um novo nível."</p><p>CONSELHO EDITORIAL</p><p>Bianca Oliveira</p><p>João Peres</p><p>Tadeu Breda</p><p>EDIÇÃO</p><p>Tadeu Breda</p><p>ASSISTÊNCIA DE EDIÇÃO</p><p>Luiza Brandino</p><p>PREPARAÇÃO</p><p>Natalia Engler</p><p>Daniela Fernandes Alarcon</p><p>REVISÃO</p><p>Laura Massunari</p><p>Tomoe Moroizumi</p><p>PROJETO GRÁFICO</p><p>Leticia Quintilhano</p><p>ILUSTRAÇÃO DA CAPA & DIAGRAMAÇÃO</p><p>Denise Matsumoto</p><p>CAPA & DIREÇÃO DE ARTE</p><p>Bianca Oliveira</p><p>PRODUÇÃO DIGITAL</p><p>Cristiane | Saavedra Edições</p><p>a primeira carta de amor que escrevi foi para você,</p><p>assim como este livro foi escrito para falar com</p><p>você. anthony, você tem sido meu ouvinte mais</p><p>íntimo. sempre vou te amar.</p><p>em a canção de solomon, há um trecho que diz:</p><p>“encontrei aquele que minha alma ama. me abracei</p><p>a ele e não o deixarei ir”. persistir, conhecer</p><p>novamente aquele momento de arrebatamento, de</p><p>reconhecimento, em que podemos encarar um ao</p><p>outro como realmente somos, despidos de</p><p>artifícios e fingimentos, nus e sem inibições.</p><p>SUMÁRIO</p><p>Capa</p><p>Créditos</p><p>Folha de rosto</p><p>Prefácio à edição brasileira</p><p>A prática do amor como potência para a construção de uma nova</p><p>sociedade</p><p>Prefácio</p><p>Introdução graça: tocada pelo amor</p><p>01. Clareza: pôr o amor em palavras</p><p>02. Justiça: lições de amor na infância</p><p>03. Honestidade: seja verdadeira com o amor</p><p>04. Compromisso: que o amor seja o amor-próprio</p><p>05. Espiritualidade: o amor divino</p><p>06. Valores: viver segundo uma ética amorosa</p><p>07. Ganância: simplesmente ame</p><p>08. Comunidade: uma comunhão amorosa</p><p>09. Reciprocidade: o coração do amor</p><p>10. Romance: o doce amor</p><p>11. Perda: amar na vida e na morte</p><p>12. Cura: o amor redentor</p><p>13. Destino: quando os anjos falam de amor</p><p>Bibliografia selecionada</p><p>Sobre a autora</p><p>Ficha</p><p>prefácio à</p><p>edição brasileira</p><p>A prática do amor como potência</p><p>para a construção de uma nova</p><p>sociedade</p><p>Silvane Silva</p><p>Escrever este prefácio em meio à pandemia de covid-19, vivendo</p><p>em isolamento social há quase quatro meses, foi um exercício ao</p><p>mesmo tempo doloroso e libertador. Em certa altura de Tudo</p><p>sobre o amor, bell hooks diz que, se não pudéssemos fazer mais</p><p>nada, se por algum motivo a leitura fosse a única atividade</p><p>possível, isso seria suficiente para fazer a vida valer a pena,</p><p>porque os livros podem ter uma função terapêutica e</p><p>transformadora. Particularmente, não tenho dúvidas a respeito</p><p>disso, pois a leitura sempre teve esse importante papel em minha</p><p>vida. Alguns textos nos fazem reviver memórias impressas em</p><p>nosso corpo e espírito e, dessa maneira, têm o poder de nos</p><p>transformar e curar.</p><p>Em uma sociedade que considera falar de amor algo naïf, a</p><p>proposta apresentada por bell hooks ao escrever sobre o tema é</p><p>corajosa e desafiadora. E o desafio é colocarmos o amor na</p><p>centralidade da vida. Ao afirmar que começou a pensar e a</p><p>escrever sobre o amor quando encontrou “cinismo em lugar de</p><p>esperança nas vozes de jovens e velhos”, e que o cinismo é a</p><p>maior barreira que pode existir diante do amor, porque ele</p><p>intensifica nossas dúvidas e nos paralisa, bell hooks faz a defesa</p><p>da prática transformadora do amor, que manda embora o medo e</p><p>liberta nossa alma. Assim, ela nos convoca a regressar ao amor.</p><p>Se o desamor é a ordem do dia no mundo contemporâneo, falar</p><p>de amor pode ser revolucionário. Para compreendermos a</p><p>proposta da autora e a profundidade de suas reflexões, o</p><p>primeiro passo deve ser abandonar a ideia de que o amor é</p><p>apenas um sentimento e passar a entendê-lo como ética de vida.</p><p>É sabido que bell hooks evidencia em toda a sua obra que o</p><p>pessoal é político, e este também será o caminho trilhado por ela</p><p>neste livro, pontuando o quanto nossas ações pessoais</p><p>relacionadas ao amor implicam uma postura perante o mundo e</p><p>uma forma de inserção na sociedade. Ou seja: o amor não tem</p><p>nada a ver com fraqueza ou irracionalidade, como se costuma</p><p>pensar. Ao contrário, significa potência: anuncia a possibilidade</p><p>de rompermos o ciclo de perpetuação de dores e violências para</p><p>caminharmos rumo a uma “sociedade amorosa”.</p><p>Tudo sobre o amor: novas perspectivas, publicado nos</p><p>Estados Unidos no ano 2000, é o primeiro livro da chamada</p><p>Trilogia do Amor, seguido de Salvação: pessoas negras e amor,</p><p>de 2001, e Comunhão: a busca feminina pelo amor, de 2002. bell</p><p>hooks é o tipo de pensadora que, quando atraída por um</p><p>assunto, tende a esmiuçá-lo, observá-lo por todos os ângulos e</p><p>explorá-lo por completo. Se ao longo de toda a sua obra o tema</p><p>do amor aparece, em diversos momentos, como algo que tem um</p><p>lugar significativo para nossa vida e cultura, é na Trilogia do Amor</p><p>que a autora nos apresenta suas teses sobre o amor e, mais do</p><p>que isso, nos oferece lições práticas de como agir.</p><p>Ao descrever as maneiras pelas quais homens e mulheres em</p><p>geral, e pessoas negras em particular, desenvolvem sua</p><p>capacidade de amar dentro de uma cultura patriarcal, racista e</p><p>niilista, bell hooks relaciona sua teoria do amor com os principais</p><p>problemas da sociedade. Apesar de falar a partir da sociedade</p><p>estadunidense, suas reflexões servem para nós brasileiros, já</p><p>que também somos um país que sofre dos males que a autora</p><p>tanto procura ver superados: racismo, sexismo, homofobia,</p><p>imperialismo e exploração.</p><p>Seguindo os passos de pessoas que ofereceram o amor como</p><p>arma poderosa de luta e de transformação da sociedade, como</p><p>Martin Luther King Jr., por exemplo, bell hooks reposiciona o</p><p>amor como uma força capaz de transformar todas as esferas da</p><p>vida: a política, a religião, o local de trabalho, o ambiente</p><p>doméstico e as relações íntimas. Aprofundando as ideias trazidas</p><p>por Cornel West referentes às “políticas de conversão” para tratar</p><p>o niilismo presente na sociedade, hooks coloca a ética do amor</p><p>no centro dessas políticas. E, nessa perspectiva, compreende</p><p>que o pessoal sobrevive por meio da ligação com o coletivo: é o</p><p>poder de se autoagenciar (self-agency) em meio ao caos e</p><p>determinar o autoagenciamento coletivo.</p><p>Tudo sobre o amor: novas perspectivas procura mostrar como</p><p>somos ensinados desde a infância a ter suposições equivocadas</p><p>e falsas em relação ao amor e ressalta o quanto nossa sociedade</p><p>não considera a importância e a necessidade de aprendermos a</p><p>amar. Tendemos a acreditar que já nascemos com esse</p><p>conhecimento, mas bell hooks demonstra que o amor não está</p><p>dado: ele é construção cotidiana, que só assumirá sentido na</p><p>ação — o que significa dizer que precisamos encontrar a</p><p>definição de amor e aprender a praticá-lo.</p><p>Em “Clareza: pôr o amor em palavras”, primeiro capítulo deste</p><p>livro, bell hooks afirma que em nossa sociedade o amor costuma</p><p>servir para nomear tudo, pulverizando seu significado. Nessa</p><p>confusão em relação ao que queremos dizer quando usamos a</p><p>palavra “amor” está a origem da nossa dificuldade de amar. Por</p><p>isso, saber nomear o que é o amor é a condição para que ele</p><p>exista. Se os dicionários tendem a enfatizar a definição dada ao</p><p>amor romântico, bell hooks nos mostra que o amor é muito mais</p><p>que uma “afeição profunda por uma pessoa”. A melhor definição</p><p>de amor é aquela que nos faz pensar o amor como ação —</p><p>conforme diz o psiquiatra M. Scoot Peck, trata-se da “vontade de</p><p>se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento</p><p>espiritual ou o de outra pessoa”. Nota-se que o espiritual</p><p>desde cedo a</p><p>questionar o significado do amor e a ansiar por ele, mesmo</p><p>quando duvidam que exista.</p><p>Por outro lado, há inúmeras crianças que crescem confiantes</p><p>de que o amor é um sentimento bom, que nunca foram punidas,</p><p>que podem acreditar que o amor só tem a ver com ter suas</p><p>necessidades atendidas. Em sua mente infantil, o amor não está</p><p>relacionado a algo que elas precisem dar, mas, em grande parte,</p><p>a algo que lhes é dado. Quando crianças como essas são</p><p>mimadas, seja materialmente ou por meio de permissão para</p><p>fazer birra, trata-se de uma forma de negligência. Essas crianças,</p><p>embora não tenham sido abusadas nem abandonadas, em geral</p><p>são tão confusas em relação ao significado do amor quanto as</p><p>que foram negligenciadas e emocionalmente abandonadas.</p><p>Ambos os grupos aprenderam a pensar o amor principalmente</p><p>relacionado a bons sentimentos, num contexto de recompensa e</p><p>punição. A maioria de nós se lembra, desde os primórdios da</p><p>infância, de escutar como éramos amados quando fazíamos algo</p><p>que agradava nossos pais. E aprendemos a lhes dar</p><p>demonstrações de amor quando eles nos agradavam. Conforme</p><p>as crianças crescem, elas associam cada vez mais o amor a</p><p>gestos de atenção, afeição e carinho. Elas ainda veem as</p><p>tentativas dos pais de satisfazer seus desejos como formas de</p><p>amar.</p><p>Crianças de todas as classes sociais me dizem que amam</p><p>seus pais e são amadas por eles, mesmo as que foram</p><p>agredidas ou abusadas. Diante do pedido para que definam o</p><p>amor, crianças pequenas geralmente concordam que se trata de</p><p>um bom sentimento, “como quando você come alguma coisa de</p><p>que realmente gosta”, especialmente se for sua comida fa-vo-ri-</p><p>ta. Elas dirão: “A mamãe me ama porque ela cuida de mim e me</p><p>ajuda a fazer tudo certo”. Quando lhes perguntamos como amar</p><p>alguém, eles falam de dar beijos e abraços, de ser doces e</p><p>fofinhas. A ideia de que o amor é conseguir o que se deseja, seja</p><p>um abraço, um casaco novo ou uma viagem à Disney, é uma</p><p>forma de pensar que dificulta que as crianças alcancem uma</p><p>compreensão emocional mais profunda.</p><p>Gostamos de imaginar que a maioria das crianças nascerá em</p><p>lares nos quais serão amadas. No entanto, o amor não estará</p><p>presente se os adultos que se tornaram pais não souberem amar.</p><p>Embora muitas crianças sejam criadas em lares nos quais</p><p>recebem certo nível de cuidado, talvez o amor não seja constante</p><p>ou sequer esteja presente. Adultos de diferentes classes sociais,</p><p>raças e gêneros culpam a família. Seus relatos expressam</p><p>mundos infantis onde não havia amor — onde o caos, a</p><p>negligência, o abuso e a coerção reinavam supremos. No livro</p><p>Raised in Captivity: Why Does America Fail Its Children? [Criados</p><p>em cativeiro: por que os Estados Unidos falham com suas</p><p>crianças?], Lucia Hodgson documenta a realidade de desamor na</p><p>vida da imensa maioria das crianças nos Estados Unidos. Todos</p><p>os dias, milhares de crianças em nosso país são abusadas verbal</p><p>e fisicamente, passam fome, são torturadas e assassinadas. Elas</p><p>são as verdadeiras vítimas de um terrorismo íntimo, sem voz</p><p>coletiva nem direitos. Elas permanecem propriedade de adultos</p><p>que fazem delas o que querem.</p><p>Não pode haver amor sem justiça. Até que vivamos numa</p><p>cultura que não apenas respeite mas assegure direitos civis</p><p>básicos para as crianças, a maioria delas não conhecerá o amor.</p><p>Em nossa cultura, o lar da família nuclear é uma esfera</p><p>institucionalizada de poder que pode ser facilmente autocrática e</p><p>fascista. Como governantes absolutos, os pais geralmente</p><p>podem decidir sem qualquer intervenção o que é melhor para os</p><p>filhos. Se os direitos das crianças são sustados em qualquer</p><p>ambiente doméstico, elas não têm recursos legais. Em contraste</p><p>com as mulheres, que podem se organizar e protestar contra a</p><p>dominação machista, exigindo direitos iguais e justiça, as</p><p>crianças só podem contar com adultos bem-intencionados que</p><p>eventualmente as ajudem caso sejam exploradas e oprimidas em</p><p>casa.</p><p>Nós todos sabemos que, independentemente de classe ou</p><p>raça, é rara a intervenção de outros adultos questionando ou</p><p>desafiando o que seus pares fazem com “seus” filhos.</p><p>Numa festa divertida, cujos convidados eram em sua maioria</p><p>indivíduos escolarizados e bem remunerados, de diferentes raças</p><p>e gerações, levantou-se a questão de bater para disciplinar</p><p>crianças. Quase todos os convidados com mais de trinta anos</p><p>falaram da necessidade de usar punição física. Muitos de nós ali</p><p>presentes recebemos tapas, cintadas ou surras quando crianças.</p><p>Os homens fizeram a defesa mais ferrenha da punição física. As</p><p>mulheres, especialmente as mães, falaram de bater como último</p><p>recurso, mas indicaram que o empregavam quando necessário.</p><p>Enquanto um homem se vangloriava das surras agressivas</p><p>que levara da mãe, acrescentando que “foram boas para ele”, eu</p><p>o interrompi e sugeri que talvez ele não fosse hoje um misógino</p><p>que detesta mulheres se não tivesse apanhado brutalmente de</p><p>uma mulher na infância. Embora seja simplista demais supor que</p><p>só porque apanhamos na infância nos tornaremos adultos que</p><p>batem, queria que o grupo reconhecesse que ser agredido</p><p>fisicamente ou abusado por adultos na infância tem</p><p>consequências nocivas para nossa vida adulta.</p><p>Uma jovem profissional, mãe de um menino pequeno, gabou-</p><p>se de não bater nele, afirmando que, quando seu filho se</p><p>comportava mal, ela o beliscava, apertando sua pele até que ele</p><p>entendesse a mensagem. Ocorre que isso também é uma forma</p><p>de abuso. Os outros convidados apoiaram os métodos da jovem</p><p>mãe e de seu marido. Fiquei chocada. Eu era uma voz solitária</p><p>defendendo os direitos das crianças.</p><p>Mais tarde, conversando com outras pessoas, sugeri que</p><p>todos ficariam estarrecidos se escutássemos um homem dizer</p><p>que toda vez que sua esposa ou namorada faz algo que lhe</p><p>desagrada, ele apenas a belisca com toda a força. Todos veriam</p><p>esse ato como coercitivo e abusivo. Entretanto, não conseguiam</p><p>reconhecer o que havia de errado com o fato de um adulto</p><p>machucar uma criança dessa maneira. Todos os pais naquela</p><p>sala afirmavam ser amorosos. Todas as pessoas naquela sala</p><p>tinham ensino superior. A maioria delas se dizia progressista,</p><p>defensora dos direitos civis e do feminismo. No entanto, quando</p><p>se tratava dos diretos das crianças, tinha um padrão diferente.</p><p>Um dos mais importantes mitos sociais que precisamos</p><p>desmascarar se pretendemos nos tornar uma cultura mais</p><p>amorosa é aquele que ensina os pais que abuso e negligência</p><p>podem coexistir com o amor. Abuso e negligência anulam o</p><p>amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação, são</p><p>as bases do amor. Ninguém pode legitimamente se declarar</p><p>amoroso quando se comporta de maneira abusiva. Porém, em</p><p>nossa cultura, pais fazem isso o tempo todo. As crianças</p><p>escutam que são amadas, embora estejam sendo abusadas.</p><p>Para começo de conversa, a ocorrência do abuso é uma</p><p>evidência do fracasso da prática amorosa.</p><p>Muitos dos homens que ofereceram seus relatos pessoais em</p><p>Boyhood, Growing Up Male: A Multicultural Anthology [Infância,</p><p>crescer como menino: uma antologia multicultural] contam</p><p>histórias de abusos violentos e fortuitos que provocaram trauma.</p><p>No ensaio “When My Father Hit Me” [Quando meu pai me bateu],</p><p>Bob Shelby descreve a dor das repetidas surras recebidas de</p><p>seu pai, afirmando:</p><p>Por meio dessas experiências com meu pai, aprendi sobre o</p><p>abuso de poder. Ao agredir fisicamente minha mãe e eu, ele</p><p>de fato nos impedia de reagir às humilhações que infligia. Nós</p><p>paramos de protestar quando ele ultrapassava nossos limites</p><p>e ignorava nossa percepção de sermos indivíduos com</p><p>necessidades, vontades e direitos próprios.</p><p>Ao longo do ensaio, Shelby expressa compreensões</p><p>contraditórias do significado de amor. Por um lado, diz: “Não</p><p>tenho dúvida de que meu pai me amava, mas seu amor se tornou</p><p>mal direcionado. Ele dizia que queria me dar o que não teve</p><p>quando criança”. Por outro, confessa: “Contudo, o que ele mais</p><p>me mostrava era sua dificuldade em ser amado. Durante toda a</p><p>sua vida ele tinha lidado com sentimentos de desamor”. Quando</p><p>Shelby descreve a infância, fica claro que o pai tinha afeição por</p><p>ele e, em parte do tempo,</p><p>lhe dava carinho. No entanto, ele não</p><p>sabia como dar e receber amor. A afeição que ele oferecia era</p><p>minada pelo abuso.</p><p>Escrevendo com base em suas lembranças, depois de adulto,</p><p>Shelby fala do impacto da agressão física em sua psique de</p><p>menino: “Conforme a intensidade da dor das pancadas</p><p>aumentava, eu a sentia em meu coração. Percebi que o que mais</p><p>doía eram meus sentimentos de amor pelo homem que estava</p><p>me batendo. Eu escondia o meu amor sob uma capa escura de</p><p>ódio”. Histórias parecidas são contadas, em narrativas</p><p>autobiográficas, por outros homens — de todas as classes</p><p>sociais e raças. Um dos mitos relacionados ao desamor é o de</p><p>que ele só existe entre os pobres e necessitados. No entanto, ele</p><p>não é uma consequência da pobreza ou da privação material. Em</p><p>lares com privilégios materiais abundantes, crianças sofrem</p><p>negligência emocional e abuso. Para lidar com a dor das feridas</p><p>infligidas na infância, a maioria dos homens que aparecem em</p><p>Boyhood procurou algum tipo de ajuda terapêutica. Para</p><p>encontrar o caminho de volta ao amor, precisaram de cura.</p><p>Em nossa cultura, muitos homens nunca se recuperam da</p><p>crueldade sofrida na infância. Estudos demonstram que, na</p><p>ausência de cuidados, homens e mulheres violentamente</p><p>humilhados e abusados são constantemente propensos a ser</p><p>disfuncionais e predispostos a abusar dos outros violentamente.</p><p>No livro Finding Freedom: Writings from Death Row [Encontrando</p><p>a liberdade: escritos do corredor da morte], de Jarvis Jay</p><p>Masters, um capítulo chamado “Scars” [Cicatrizes] narra a</p><p>descoberta de que a grande maioria das cicatrizes que cobriam o</p><p>corpo de seus companheiros na prisão (nem todos estavam no</p><p>corredor da morte) não era, como se poderia imaginar, resultado</p><p>de interações violentas na vida adulta. Esses homens estavam</p><p>cobertos de marcas das surras infligidas por seus pais quando</p><p>eram crianças. Entretanto, ele observa, nenhum deles se via</p><p>como vítima de abuso:</p><p>Ao longo dos meus vários anos de encarceramento, assim</p><p>como muitos desses homens, busquei inconscientemente me</p><p>refugiar atrás das paredes da prisão. Foi apenas depois de ler</p><p>uma série de livros para adultos que tinham sido abusados</p><p>quando criança que me comprometi com o processo de</p><p>examinar minha própria infância.</p><p>Mobilizando os homens em grupos de discussão, Masters</p><p>observa: “Falei com eles sobre a dor que carreguei por mais de</p><p>uma dúzia de penitenciárias. E expliquei como todos esses</p><p>acontecimentos, no fim das contas, me prenderam ao padrão de</p><p>atacar tudo furiosamente”. Como muitas crianças abusadas,</p><p>meninos e meninas, esses homens foram agredidos por mães,</p><p>pais e outros adultos responsáveis por cuidar deles.</p><p>Quando a mãe de Masters morreu, ele lamentou não poder</p><p>estar com ela. Os outros detentos não compreendiam seu</p><p>desejo, uma vez que ela o negligenciou e abusou dele. Ele</p><p>respondeu: “Ela me negligenciou, mas eu devo me negligenciar</p><p>também, negando que gostaria de estar com ela quando ela</p><p>morreu, que eu ainda a amo?”. Mesmo no corredor da morte, o</p><p>coração de Masters continuava aberto. E ele pôde confessar</p><p>abertamente o desejo de dar e receber amor. O fato de uma</p><p>criança ser agredida pelos pais raramente altera seu desejo de</p><p>amar e ser amada por eles. O desejo de ser amado por pais</p><p>negligentes persiste em adultos feridos na infância, mesmo</p><p>quando há clara aceitação do fato de que esse amor jamais virá.</p><p>É comum que as crianças queiram permanecer com os</p><p>adultos que as machucaram, porque investiram emocionalmente</p><p>neles. Elas se apegam à suposição equivocada de que os pais</p><p>as amam mesmo diante da lembrança do abuso, geralmente</p><p>negando esse abuso e destacando eventuais gestos de carinho.</p><p>No prólogo de A criação do amor, John Bradshaw chama de</p><p>“mistificação” essa confusão em relação ao amor:</p><p>Fui criado acreditando que o amor está enraizado nos</p><p>relacionamentos familiares. Você ama naturalmente qualquer</p><p>pessoa da sua família. O amor não é uma escolha. O amor</p><p>que me ensinaram estava preso ao dever e à obrigação. […]</p><p>Minha família me ensinou as regras e as crenças da nossa</p><p>cultura quanto ao amor. […] mesmo com as melhores</p><p>intenções, nossos pais muitas vezes confundiram o amor com</p><p>o que hoje em dia chamaríamos de abuso.</p><p>Para desmistificar o significado do amor, da arte e da prática de</p><p>amar, precisamos usar definições claras de amor quando falamos</p><p>com as crianças, e precisamos também assegurar que ações</p><p>amorosas nunca sejam contaminadas pelo abuso.</p><p>Em sociedades como a nossa, em que direitos civis plenos</p><p>são negados às crianças, é absolutamente crucial que os pais</p><p>aprendam a oferecer uma disciplina amorosa. Estabelecer limites</p><p>e ensinar às crianças como estabelecer limites por conta própria</p><p>antes de se comportarem mal são parte essencial de uma</p><p>criação amorosa. Quando os pais começam a disciplinar as</p><p>crianças usando punição, esse se torna o padrão ao qual as</p><p>crianças respondem. Pais amorosos se esforçam muito para</p><p>disciplinar sem punir. Isso não significa que nunca castiguem,</p><p>mas, quando precisam punir, escolhem outras alternativas, como</p><p>determinar que a criança passe um tempo sozinha ou retirar</p><p>algum privilégio. O foco é ensinar às crianças como serem</p><p>autodisciplinadas e como assumir responsabilidade por seus</p><p>atos. Uma vez que a maioria de nós cresceu em lares onde a</p><p>punição era considerada a principal forma, se não a única, de</p><p>ensinar disciplina, o fato de que esta possa ser ensinada sem</p><p>agressão surpreende muitas pessoas. Uma das formas mais</p><p>simples de as crianças aprenderem a ser organizadas no dia a</p><p>dia é aprendendo a limpar a bagunça que fazem. Ensinar a uma</p><p>criança a responsabilidade de colocar os brinquedos no lugar</p><p>certo depois da brincadeira já é uma forma de estimular a</p><p>responsabilidade e a autodisciplina. Aprender a arrumar a</p><p>bagunça feita durante a brincadeira ajuda a criança a ser</p><p>responsável. E, com essa ação prática, ela pode aprender a lidar</p><p>com a bagunça emocional.</p><p>•••</p><p>Se existissem programas de televisão que exibissem modelos</p><p>realmente amorosos para a criação dos filhos, os pais poderiam</p><p>aprender essas habilidades. Programas voltados para famílias</p><p>em geral representam de modo positivo crianças mimadas,</p><p>desrespeitosas ou birrentas. Muitas vezes, elas se comportam de</p><p>forma mais adulta do que os pais. Na verdade, o que vemos na</p><p>televisão, na melhor das hipóteses, nos fornece um modelo de</p><p>comportamento inapropriado, e, no pior cenário, de</p><p>comportamento sem amor. Um grande exemplo é o filme</p><p>Esqueceram de mim (1990), que celebra a desobediência e a</p><p>violência. Contudo, a televisão pode retratar interações familiares</p><p>carinhosas e amorosas. Gerações inteiras de adultos falam com</p><p>nostalgia sobre como gostariam que suas famílias fossem como</p><p>aquelas apresentadas em séries como Leave It to Beaver5 ou My</p><p>Three Sons.6 Nós desejávamos que nossas famílias fossem</p><p>como o que víamos na ��, porque assistíamos a uma criação</p><p>amorosa, a lares amorosos. Quando expressávamos aos nossos</p><p>pais o desejo de ter uma família como aquelas, geralmente</p><p>ouvíamos que elas não eram realistas. No entanto, a realidade é</p><p>que pais que vinham de lares sem amor nunca aprenderam como</p><p>amar e não conseguem criar ambientes domésticos amorosos,</p><p>nem sequer os consideram realistas quando se deparam com</p><p>eles na televisão. A realidade com a qual estão mais</p><p>familiarizados e na qual confiam é a que conheceram</p><p>intimamente.</p><p>Não havia nada de utópico na forma como os problemas eram</p><p>resolvidos nessas séries. O processo usual para lidar com o mau</p><p>comportamento envolvia conversas entre pais e filhos, reflexão</p><p>crítica e a identificação de modos para fazer ajustes. Nas duas</p><p>séries, nunca havia apenas uma figura parental. Ainda que a mãe</p><p>estivesse ausente em My Three Sons, o adorável tio Charlie era</p><p>um segundo pai. Num lar amoroso em que vários adultos</p><p>exercem cuidados parentais, se uma criança sente que um deles</p><p>está sendo injusto, pode apelar a outro por mediação,</p><p>compreensão ou apoio. Vivemos em uma sociedade em que há</p><p>um número crescente de pais e mães solo. Entretanto, eles</p><p>podem escolher um amigo ou amiga para ser a outra figura</p><p>parental,</p><p>mesmo se as interações forem limitadas. É por isso que</p><p>as categorias de madrinha e padrinho são tão importantes.</p><p>Quando minha melhor amiga de infância decidiu ter um bebê</p><p>sem a participação do pai na criação, eu me tornei a madrinha,</p><p>uma segunda figura parental.</p><p>A filha da minha amiga me procura para que eu intervenha</p><p>quando há desentendimento ou dificuldade de comunicação</p><p>entre ela e a mãe. Aqui vai um pequeno exemplo. Minha amiga</p><p>nunca recebeu mesada quando criança e achava que não tinha</p><p>dinheiro extra disponível para dar mesada à filha. Ela também</p><p>acreditava que a filha usaria todo o dinheiro para comprar doces.</p><p>Ao me contar que a filha estava chateada com ela por causa</p><p>dessa questão, ela abriu espaço para termos uma conversa.</p><p>Falei que acredito que mesadas são ferramentas importantes</p><p>para ensinar as crianças a ter disciplina, limites e a trabalhar a</p><p>relação desejos versus necessidades. Eu conhecia as finanças</p><p>da minha amiga suficientemente bem para questionar sua</p><p>insistência de que não poderia bancar uma pequena mesada, ao</p><p>mesmo tempo que a encorajava a não projetar os erros de sua</p><p>infância no presente. Em relação à possibilidade de a filha gastar</p><p>a mesada com doces, sugeri que ela lhe desse o dinheiro</p><p>reforçando que esperava que ele não fosse usado com excesso</p><p>de indulgência e visse o que aconteceria.</p><p>No fim, deu tudo certo. Feliz por ter uma mesada, a filha</p><p>decidiu juntar o dinheiro para comprar coisas que considerava</p><p>realmente importantes. E doces não estavam na lista. Se não</p><p>houvesse outra figura parental envolvida, as duas poderiam ter</p><p>levado mais tempo para resolver o conflito, eventualmente</p><p>criando desentendimento desnecessário e mágoa. Não por</p><p>acaso, a interação respeitosa entre duas adultas exemplificou</p><p>para a filha (que ficou sabendo da conversa) formas de resolver</p><p>problemas. Ao revelar a disposição de aceitar críticas e a</p><p>capacidade de refletir sobre seu comportamento e mudá-lo, a</p><p>mãe serviu de modelo para a filha, sem perder dignidade ou</p><p>autoridade, reconhecendo que os pais nem sempre têm razão.</p><p>Enquanto não começarmos a ver a criação amorosa em todos</p><p>os tipos de família em nossa cultura, muitas pessoas continuarão</p><p>acreditando que só se pode ensinar disciplina com punição, e</p><p>que a punição severa é uma forma aceitável de se relacionar</p><p>com as crianças. Como são capazes de oferecer afeição</p><p>instintivamente ou reagem ao cuidado carinhoso retribuindo-o,</p><p>geralmente se pressupõe que as crianças sabem como amar e,</p><p>portanto, não precisam aprender essa arte. Embora o desejo de</p><p>amar esteja presente em todas as crianças pequenas, ainda</p><p>assim, elas precisam de orientação quanto às formas de amar.</p><p>Adultos podem orientá-las.</p><p>O amor é o que o amor faz, e é nossa responsabilidade dar</p><p>amor às crianças. Quando as amamos, reconhecemos com</p><p>nossas próprias ações que elas não são propriedades, que têm</p><p>direitos — os quais nós respeitamos e garantimos.</p><p>Sem justiça, não pode haver amor.</p><p>5. Leave It to Beaver foi uma série televisiva muito celebrada nos Estados Unidos e</p><p>tornou-se um ícone da cultura popular do país. No ar entre os anos de 1957 e 1963,</p><p>trazia aos telespectadores o cotidiano de uma família branca de classe média, narrada</p><p>do ponto de vista de Beaver, um menino de oito anos. Abrangendo temas como a</p><p>rivalidade entre irmãos, a dificuldade de crescer e se ajustar socialmente, entre outros,</p><p>a série mostrava, com frequência, as dinâmicas das relações entre pais e filhos, as</p><p>tentativas de aproximação, diálogo e resolução de conflitos feitas pelos pais e também</p><p>algumas gafes cometidas por eles ao tentar educar as crianças. [�.�.]</p><p>6. A série de televisão My Three Sons foi um grande sucesso nos Estados Unidos.</p><p>Exibida entre 1960 e 1972, narrava o dia a dia da família do viúvo Steve Douglas e a</p><p>dinâmica e as dificuldades de criar três filhos na ausência da mãe. Para isso, Steve</p><p>contava com a ajuda de outros adultos, como seu sogro, Michael, um avô atencioso e</p><p>presente. Mais tarde, também o irmão de Michael, tio-avô dos três meninos, passou a</p><p>colaborar com a criação e a educação dos rapazes. Ao longo dos doze anos em que</p><p>ficou no ar, a série acompanhou o crescimento dos meninos e foi agregando mais</p><p>personagens como membros da família, tais como os netos de Steve, suas noras, um</p><p>filho adotivo e uma enteada. [�.�.]</p><p>03.</p><p>honestidade:</p><p>seja verdadeira</p><p>com o amor</p><p>Quando nos revelamos aos nossos parceiros e</p><p>descobrimos que isso traz cura, e não dano,</p><p>realizamos uma descoberta importante:</p><p>relacionamentos íntimos podem ser um refúgio num</p><p>mundo de aparências, um espaço sagrado onde</p><p>podemos ser nós mesmos, como realmente somos.</p><p>[…] Esse tipo de desvelamento — falar nossa verdade,</p><p>compartilhar nossas lutas internas e revelar nossas</p><p>arestas — é uma atividade sagrada, que permite que</p><p>duas almas se encontrem e se toquem mais</p><p>profundamente.</p><p>— John Welwood</p><p>Não é por acaso que, ainda crianças, geralmente aprendemos</p><p>sobre justiça e jogo limpo num contexto relacionado à questão de</p><p>falar a verdade. O coração da justiça é dizer a verdade, vermos a</p><p>nós mesmos e ao mundo como somos, em vez de como</p><p>gostaríamos que fôssemos. Nos últimos anos, sociólogos e</p><p>psicólogos têm documentado o fato de que vivemos num país</p><p>onde as pessoas mentem mais e mais a cada dia. O livro Lying:</p><p>Moral Choice in Public and Private Life [Mentir: escolha moral na</p><p>vida pública e privada], da filósofa Sissela Bok, está entre as</p><p>primeiras obras a chamar a atenção para como a mentira se</p><p>tornou amplamente aceitável, constituindo um lugar comum em</p><p>nossas interações diárias. A trilha menos percorrida, de M. Scott</p><p>Peck, tem uma seção inteira sobre a mentira. Em The Dance of</p><p>Deception: A Guide to Authenticity and Truth-Telling in Women’s</p><p>Relationships [A dança da ilusão: um guia sobre autenticidade e</p><p>verdade nas relações das mulheres], Harriet Lerner, outra</p><p>psicoterapeuta e autora de livros populares, chama a atenção</p><p>para a forma como as mulheres são estimuladas pela</p><p>socialização machista a fingir e manipular, a mentir como forma</p><p>de agradar. Lerner destaca as várias formas como o fingimento e</p><p>a mentira constantes alienam as mulheres de seus verdadeiros</p><p>sentimentos, e como isso leva à depressão e à perda da</p><p>autoconsciência.</p><p>Mentiras são contadas a respeito dos aspectos mais</p><p>insignificantes de nossa rotina. Diante das perguntas mais</p><p>básicas, do tipo “Tudo bem?”, muitos de nós mentimos. Muitas</p><p>mentiras que as pessoas contam no dia a dia são para evitar</p><p>conflitos ou poupar os sentimentos dos outros. Assim, se alguém</p><p>te convida para um jantar com a presença de uma pessoa de</p><p>quem você não gosta, você não diz a verdade nem simplesmente</p><p>recusa: inventa uma história. Você conta uma mentira. Numa</p><p>situação como essa, em que admitir o motivo da recusa poderia</p><p>magoar outra pessoa sem necessidade, seria apropriado</p><p>simplesmente declinar.</p><p>Muitas pessoas aprendem a mentir na infância. De modo</p><p>geral, começam a mentir para evitar punição ou para não</p><p>desapontar ou magoar um adulto. Quantos de nós podemos</p><p>recordar vividamente momentos da infância em que,</p><p>corajosamente, praticamos a honestidade que nossos pais nos</p><p>haviam ensinado a valorizar, apenas para descobrir que eles não</p><p>queriam que disséssemos a verdade desde o princípio. Há</p><p>muitos e muitos casos de crianças punidas ao responder com</p><p>honestidade a uma questão apresentada por uma figura de</p><p>autoridade. Desde cedo fica gravado em sua consciência que</p><p>dizer a verdade trará dor. E assim elas aprendem que mentir é</p><p>uma maneira de evitar se ferir e ferir os outros.</p><p>Muitas crianças ficam confusas em face da insistência para</p><p>que, simultaneamente, sejam honestas e aprendam a praticar</p><p>uma duplicidade conveniente. Conforme crescem, começam a</p><p>ver com que frequência os adultos mentem. Elas começam a</p><p>perceber que poucas pessoas a seu redor falam a verdade. Eu</p><p>fui criada num mundo em que as crianças eram ensinadas a</p><p>dizer a verdade, mas não levou muito tempo para nos darmos</p><p>conta de que os adultos não praticavam o que eles diziam. Entre</p><p>meus irmãos, aqueles que aprenderam a contar mentiras</p><p>educadas ou a dizer o que os adultos</p><p>queriam ouvir sempre</p><p>foram mais populares e mais recompensados do que aqueles</p><p>entre nós que falavam a verdade.</p><p>Em qualquer grupo de crianças, nunca fica claro por que</p><p>algumas aprendem rapidamente a fina arte da dissimulação (isto</p><p>é, assumir qualquer aparência necessária para manipular uma</p><p>situação), enquanto outras consideram difícil mascarar seus</p><p>verdadeiros sentimentos. Uma vez que o faz de conta é um</p><p>aspecto bastante comum nas brincadeiras infantis, trata-se de</p><p>um contexto perfeito para dominar a arte da dissimulação.</p><p>Frequentemente, esconder a verdade é uma parte divertida das</p><p>brincadeiras; no entanto, quando isso se torna uma prática</p><p>comum, é um prelúdio perigoso para que se minta o tempo todo.</p><p>Às vezes as crianças ficam fascinadas pela mentira porque</p><p>percebem o poder que ela lhes dá sobre os adultos. Imagine:</p><p>uma menina pequena vai à escola e diz para sua professora que</p><p>é adotada, sabendo muito bem que isso não é verdade. Ela se</p><p>regozija com a atenção recebida, com a simpatia e a</p><p>compreensão oferecidas, e também com a raiva e a frustração</p><p>dos pais quando a professora lhes telefona para falar sobre essa</p><p>informação recém-descoberta. Uma amiga minha que mente</p><p>muito me diz que adora enganar as pessoas, fazendo-as agir de</p><p>acordo com informações que apenas ela sabe que são falsas; ela</p><p>tem apenas dez anos.</p><p>Quando eu tinha sua idade, tinha medo de mentiras. Elas me</p><p>confundiam e criavam confusão. Outras crianças implicavam</p><p>comigo porque eu não era uma boa mentirosa. No que foi o</p><p>episódio verdadeiramente violento entre minha mãe e meu pai,</p><p>ele a acusou de mentir para ele. Então, houve a noite em que</p><p>uma irmã mais velha mentiu dizendo que estava trabalhando</p><p>como babá, quando, na verdade, tinha ido a um encontro.</p><p>Enquanto batia nela, nosso pai gritava, repetidamente: “Você não</p><p>minta para mim!”. Ao passo que a violência de suas reações</p><p>instilou em nós pavor das consequências de mentir, isso não</p><p>alterou o fato de que sabíamos que ele nem sempre dizia a</p><p>verdade. Sua forma preferida de mentir era omitir. Seu bordão</p><p>era “apenas fique em silêncio” quando lhe fizerem perguntas,</p><p>assim você não será “pega na mentira”.</p><p>Os homens sempre mentiram para evitar confrontos ou ter</p><p>que assumir suas responsabilidades por comportamentos</p><p>inadequados. No inovador The Mermaid and the Minotaur:</p><p>Sexual Arrangements and Human Malaise [A sereia e o</p><p>Minotauro: arranjos sexuais e mal-estar humano], Dorothy</p><p>Dinnerstein compartilha o achado de que, no momento em que</p><p>um menino pequeno aprende que sua poderosa mãe, que</p><p>controla sua vida, na verdade não tem poder dentro do</p><p>patriarcado, isso o confunde e o enfurece. Mentir se torna uma</p><p>das estratégias por meio das quais ele pode “agir” para tornar a</p><p>mãe impotente. Mentir permite que ele manipule a mãe e até</p><p>mesmo exponha sua falta de poder. Isso faz com que se sinta</p><p>mais poderoso.</p><p>Homens aprendem a mentir como forma de obter poder, e</p><p>mulheres não apenas fazem o mesmo como também mentem</p><p>para fingir que não têm poder. Em sua obra, Harriet Lerner</p><p>observa os modos como o patriarcado estimula o fingimento,</p><p>encorajando as mulheres a apresentarem aos homens um “eu”</p><p>falso, e vice-versa. Em 101 mentiras que os homens contam para</p><p>as mulheres: e por que elas acreditam, Dory Hollander confirma</p><p>que, ao passo que tanto homens quanto mulheres mentem, seus</p><p>dados e as descobertas de outros pesquisadores indicam que</p><p>“homens tendem a mentir mais e com consequências mais</p><p>devastadoras”. Para muitos homens jovens, a primeira</p><p>experiência de poder sobre os outros vem da emoção de mentir</p><p>para adultos mais poderosos e não sofrer consequências. Muitos</p><p>homens me contaram que era difícil dizer a verdade se</p><p>percebessem que ela magoaria alguém amado. Não por acaso,</p><p>as mentiras que muitos meninos aprendem a contar para evitar</p><p>magoar a mamãe ou seja lá quem for se tornam tão habituais</p><p>que eles passam a ter dificuldade em distinguir entre mentira e</p><p>verdade. Esse comportamento os acompanha pela vida adulta.</p><p>Com frequência, homens que nunca pensariam em mentir no</p><p>ambiente de trabalho mentem constantemente em</p><p>relacionamentos íntimos. Esse parece ser o caso, em particular,</p><p>de homens heterossexuais que consideram as mulheres</p><p>ingênuas. Muitos homens confessam que mentem porque</p><p>conseguem se safar; suas mentiras são perdoadas. Para</p><p>compreender por que as mentiras masculinas são mais aceitas</p><p>em nossa vida, precisamos compreender a forma como o poder e</p><p>o privilégio são concedidos aos homens simplesmente por serem</p><p>homens, dentro de uma cultura patriarcal. O próprio conceito de</p><p>“ser homem”, ser “homem de verdade”, deixa sempre</p><p>subentendido que, quando necessário, homens podem cometer</p><p>ações que quebrem as regras, que estejam acima da lei. O</p><p>patriarcado nos diz diariamente, nos filmes, na televisão e nas</p><p>revistas, que homens poderosos podem fazer o que bem</p><p>entendem, que é essa liberdade que os torna homens. A</p><p>mensagem dirigida aos homens é de que ser honesto é ser</p><p>“mole”. A habilidade de ser desonesto e indiferente às</p><p>consequências da desonestidade torna um homem “durão”,</p><p>separa os homens dos meninos.</p><p>No livro The End of Manhood: A Book for Men of Conscience</p><p>[O fim da masculinidade: um livro para os homens com</p><p>consciência], John Stoltenberg analisa em que medida a</p><p>identidade masculina oferecida aos homens como ideal na</p><p>cultura patriarcal demanda que todos os homens inventem e</p><p>mantenham um “eu” falso. A partir do momento em que meninos</p><p>pequenos são ensinados que não devem chorar nem expressar</p><p>mágoa, solidão ou dor, que devem ser duros, eles aprendem a</p><p>mascarar seus sentimentos verdadeiros. Na pior das hipóteses,</p><p>aprendem a nunca sentir nada. Essas lições muitas vezes são</p><p>ensinadas a meninos por outros homens e por mães machistas.</p><p>Mesmo meninos criados nos lares mais progressistas e</p><p>amorosos, cujos pais os encorajam a expressar emoções,</p><p>aprendem uma concepção diferente de masculinidade e de</p><p>sentimentos no parquinho, na sala de aula, praticando esportes</p><p>ou assistindo à televisão. Eles podem acabar escolhendo a</p><p>masculinidade patriarcal para serem aceitos por outros meninos</p><p>e ratificados por figuras de autoridade masculinas.</p><p>Em sua importante obra Rediscovering Masculinity: Reason,</p><p>Language and Sexuality [Redescobrindo a masculinidade: razão,</p><p>linguagem e sexualidade], Victor Seidler destaca:</p><p>Quando aprendemos a usar a linguagem, ainda meninos,</p><p>aprendemos muito rapidamente como nos esconder por meio</p><p>dela. Aprendemos a “dominar” a linguagem para que</p><p>possamos controlar o mundo à nossa volta […] Embora</p><p>aprendamos a culpar os outros por nossa infelicidade e</p><p>sofrimento nos relacionamentos, também sabemos, em algum</p><p>nível não dito, como nossa masculinidade tem sido limitada e</p><p>ferida, conforme entramos em contato com a dor e a mágoa de</p><p>percebermos o quanto parecemos sentir tão pouco em relação</p><p>a qualquer coisa […].</p><p>O distanciamento dos sentimentos torna mais fácil para os</p><p>homens mentir porque eles geralmente estão em um estado de</p><p>transe, utilizando as estratégias de sobrevivência voltadas para a</p><p>afirmação da masculinidade que aprenderam quando crianças.</p><p>Essa inabilidade para se conectar com os outros carrega consigo</p><p>uma inabilidade para assumir responsabilidade por causar dor. A</p><p>negação é mais evidente em casos nos quais os homens tentam</p><p>justificar a extrema violência contra quem tem menos poder, em</p><p>geral mulheres, sugerindo que são eles as verdadeiras vítimas.</p><p>Independentemente da intensidade da dissimulação</p><p>masculina, muitos homens, em seu íntimo, se veem como as</p><p>vítimas do desamor. Como todo mundo, eles aprenderam na</p><p>infância a acreditar que o amor estaria presente em sua vida.</p><p>Ainda que tantos meninos sejam ensinados a se comportar como</p><p>se o amor não importasse, em seu coração, anseiam por ele.</p><p>Esse anseio não se dissipa simplesmente porque eles se tornam</p><p>homens. Mentir, como uma forma de encenação, é um dos</p><p>modos como articulam a raiva constante diante da promessa não</p><p>cumprida de amor. Ao abraçarem o patriarcado, precisam</p><p>abandonar ativamente o desejo de amar.</p><p>A masculinidade patriarcal exige que meninos e homens não</p><p>só se vejam como mais poderosos e superiores às mulheres,</p><p>mas que façam o que for preciso para manter sua posição de</p><p>controle. Esse é um dos motivos pelos quais homens, bem mais</p><p>do que mulheres, usam a mentira como modo de ganhar poder</p><p>nos relacionamentos. Uma suposição bem aceita em uma cultura</p><p>patriarcal é de que o amor pode estar presente em uma situação</p><p>na qual um grupo ou indivíduo domina outro. Muitas pessoas</p><p>acreditam que homens podem dominar mulheres e crianças, e</p><p>ainda assim serem amorosos. O psicanalista Carl Jung enfatizou</p><p>com perspicácia o truísmo segundo o qual “onde o desejo de</p><p>poder é primordial, o amor estará ausente”. Fale com qualquer</p><p>grupo de mulheres a respeito de seus relacionamentos com</p><p>homens, independentemente de raça ou classe, e você ouvirá</p><p>histórias sobre desejo de poder, sobre o modo como homens se</p><p>valem da mentira, o que inclui omitir informações, como forma de</p><p>controlar e subordinar.</p><p>•••</p><p>Não por acaso, a aceitação cultural mais ampla da mentira em</p><p>nossa sociedade coincidiu com a conquista de maior equidade</p><p>social pelas mulheres. Nos primórdios do movimento feminista,</p><p>as mulheres insistiam que os homens tinham vantagens porque</p><p>geralmente controlavam as finanças. Agora que mais mulheres</p><p>têm alcançado o poder (embora não em quantidade equivalente</p><p>aos homens) e se tornado mais independentes economicamente,</p><p>homens que querem manter seu domínio precisam empregar</p><p>estratégias mais sutis para colonizar as mulheres e minar seu</p><p>poder. Até mesmo a profissional mais bem-sucedida pode ser</p><p>“derrubada” por estar em um relacionamento no qual deseja ser</p><p>amada, mas é constantemente enganada. Na medida em que ela</p><p>confia em seu companheiro, a mentira e outras formas de traição</p><p>provavelmente despedaçarão sua autoconfiança e sua</p><p>autoestima.</p><p>A obediência à dominação masculina exige que os homens</p><p>que adotam esse pensamento (e muitos, se não a maioria, fazem</p><p>isso) mantenham o domínio sobre as mulheres “a qualquer</p><p>preço”. Embora se dê muita atenção à violência doméstica e</p><p>praticamente todo mundo concorde que é errado que os homens</p><p>agridam as mulheres como forma de nos subordinar, a maioria</p><p>dos homens usa terrorismo psicológico para subjugar mulheres.</p><p>Trata-se de uma forma de coerção socialmente aceita. E mentir é</p><p>uma das armas mais poderosas nesse arsenal. Quando os</p><p>homens mentem para as mulheres, apresentando um “eu” falso,</p><p>o terrível preço que pagam para manter o “poder” sobre nós é a</p><p>perda de sua capacidade de dar e receber amor. A confiança é o</p><p>fundamento da intimidade. Quando as mentiras erodem a</p><p>confiança, conexões verdadeiras não podem se estabelecer. Ao</p><p>passo que homens que dominam os outros podem experimentar</p><p>e experimentam carinho, eles colocam uma barreira entre si e a</p><p>experiência do amor.</p><p>Todos os pensadores visionários que questionam a</p><p>dominação masculina insistem que os homens só podem voltar</p><p>ao amor repudiando o desejo de dominar. Em The End of</p><p>Manhood, Stoltenberg enfatiza continuamente que os homens só</p><p>podem honrar sua identidade por meio de uma justiça amorosa.</p><p>Ele afirma: “A justiça entre as pessoas talvez seja a conexão</p><p>humana mais importante que se possa ter”. Justiça amorosa para</p><p>si e para os demais permite que os homens escapem do</p><p>estrangulamento da masculinidade patriarcal. No capítulo “How</p><p>We Can Have Better Relationships With The Women In Our</p><p>Lives” [Como podemos ter relacionamentos melhores com as</p><p>mulheres de nossa vida], Stoltenberg observa:</p><p>A justiça amorosa entre um homem e uma mulher não tem</p><p>qualquer chance quando a masculinidade é mais importante.</p><p>Quando um homem decide amar mais a masculinidade que a</p><p>justiça, há consequências previsíveis em todos os seus</p><p>relacionamentos com mulheres […]. Aprender a viver como um</p><p>homem consciente significa decidir que sua lealdade às</p><p>pessoas que você ama é sempre mais importante que</p><p>qualquer inclinação de lealdade que você possa</p><p>eventualmente sentir em relação ao julgamento de outros</p><p>homens quanto a sua masculinidade.</p><p>Quando homens e mulheres são leais consigo mesmos e uns</p><p>com os outros, quando amamos a justiça, compreendemos</p><p>totalmente a miríade de formas pelas quais mentir reduz e</p><p>desgasta a possibilidade de conexões significativas e carinhosas,</p><p>o que levanta uma barreira ao amor.</p><p>Uma vez que, em nossa cultura, os valores e os</p><p>comportamentos dos homens geralmente são padrões pelo quais</p><p>todos determinam o que é aceitável, é importante compreender</p><p>que tolerar a mentira é um componente essencial do pensamento</p><p>patriarcal para todo mundo. De forma alguma os homens são o</p><p>único grupo que usa mentiras como forma de ganhar poder sobre</p><p>os outros. Na verdade, se a masculinidade patriarcal distancia os</p><p>homens de sua identidade, é igualmente verdadeiro que as</p><p>mulheres que aderem à feminilidade patriarcal — que insiste que</p><p>as mulheres deveriam agir como se fossem fracas, incapazes de</p><p>pensamento racional, burras, tolas — também são socializadas</p><p>para usar uma máscara, para mentir. Esse é um dos temas</p><p>principais de Lerner em The Dance of Deception. Com</p><p>formulações astutas, ela convida as mulheres a prestarem conta</p><p>de nossa participação em estruturas de fingimento e mentira —</p><p>especialmente na vida familiar. As mulheres geralmente se</p><p>sentem confortáveis mentindo para os homens com o intuito de</p><p>manipulá-los, de modo que nos deem coisas que sentimos que</p><p>queremos ou merecemos. Podemos mentir para reforçar a</p><p>autoestima masculina. Essas mentiras podem se expressar como</p><p>o ato de fingir sentir emoções que não sentimos ou de simular</p><p>níveis de vulnerabilidade e necessidade emocional que são</p><p>falsos.</p><p>Mulheres heterossexuais geralmente recebem lições de</p><p>outras mulheres sobre a arte de mentir para os homens como</p><p>uma forma de manipular. Muitos exemplos do apoio que as</p><p>mulheres recebem para mentir se relacionam ao desejo de</p><p>estabelecer um parceiro e de ter filhos. Quando eu desejava ter</p><p>um bebê e meu companheiro na época não estava pronto, fiquei</p><p>chocada com o número de mulheres que me encorajavam a</p><p>desconsiderar os sentimentos dele e ir adiante sem lhe dizer.</p><p>Elas achavam que não havia problema em negar a uma criança o</p><p>direito de ser desejada tanto pela mãe quanto pelo pai biológicos.</p><p>(Não há enganação envolvida quando uma mulher tem um filho</p><p>com um doador de esperma, pois nesse caso não há um pai</p><p>visível para rejeitar ou punir uma criança indesejada.) Fiquei</p><p>perturbada com o fato de mulheres que eu respeitava não</p><p>levarem a sério a necessidade da paternidade ou não</p><p>acreditarem que o desejo do homem de ter filhos fosse tão</p><p>importante quanto o da mulher. Queiramos ou não, ainda</p><p>vivemos num mundo onde as crianças querem saber quem são</p><p>seus pais e, quando podem, vão em busca desses pais</p><p>ausentes. Eu não poderia imaginar trazer uma criança a este</p><p>mundo com um pai que pudesse rejeitá-la porque, para começo</p><p>de conversa, não queria ser pai.</p><p>Mulheres criadas nos anos 1950, antes que houvesse</p><p>métodos anticoncepcionais adequados, eram extremamente</p><p>conscientes da maneira como a gravidez indesejada poderia</p><p>alterar o rumo da vida de uma jovem. No entanto, era claro que</p><p>havia garotas que torciam por uma gravidez para se ligarem</p><p>emocionalmente para sempre a um homem em particular. Eu</p><p>pensava que esses tempos já tinham acabado havia muito.</p><p>Contudo, mesmo em uma era de equidade entre os sexos, ouço</p><p>histórias de mulheres que decidem engravidar quando um</p><p>relacionamento está ruim como forma de forçar o homem a</p><p>permanecer em sua vida, ou na esperança de pressionar por</p><p>casamento. Mais do que possamos imaginar, muitos homens se</p><p>sentem extremamente ligados a uma mulher quando ela dá à luz</p><p>um filho seu. O fato de homens sucumbirem à mentira e à</p><p>manipulação quando a questão é a paternidade biológica não</p><p>torna isso correto ou justo. Homens que aceitam a manipulação</p><p>ou as mentiras que lhes são contadas não estão apenas</p><p>abdicando de seu poder, mas criando uma situação na qual</p><p>podem “culpar” as mulheres ou justificar o ódio a elas.</p><p>Esse é outro caso em que a mentira é usada para ganhar</p><p>poder sobre alguém, para segurá-lo contra a sua vontade. Harriet</p><p>Lerner relembra as</p><p>leitoras e os leitores que a honestidade é</p><p>apenas um aspecto do ato de falar a verdade — equiparada à</p><p>“excelência moral: uma ausência de farsa ou fraude”. A máscara</p><p>da “feminilidade” patriarcal frequentemente torna o fingimento</p><p>das mulheres aceitável. Entretanto, quando as mulheres mentem,</p><p>damos credibilidade a velhos estereótipos machistas que</p><p>insinuam que mulheres são inerentemente menos capazes de</p><p>falar a verdade em virtude de serem do sexo feminino. As origens</p><p>desse estereótipo machista remontam às antigas histórias sobre</p><p>Adão e Eva, sobre a disposição de Eva de mentir até para Deus.</p><p>Frequentemente, quando informações são retidas por</p><p>mulheres e homens, a justificativa é proteger a privacidade. Em</p><p>nossa cultura, privacidade é muitas vezes confundida com</p><p>segredo. Pessoas honestas, abertas e que falam a verdade</p><p>valorizam a privacidade. Todos nós precisamos de espaços onde</p><p>possamos ficar sozinhos com nossos pensamentos e</p><p>sentimentos — onde possamos experimentar autonomia</p><p>psicológica saudável e decidir compartilhar quando quisermos.</p><p>Manter segredos comumente se relaciona ao poder, a esconder e</p><p>reter informação. É por isso que vários programas de reabilitação</p><p>destacam que “você está tão doente quanto os seus segredos”.</p><p>Quando a irmã de um ex-namorado me contou um segredo de</p><p>família muito bem guardado envolvendo incesto, sobre o qual ele</p><p>não sabia, respondi pedindo que ela contasse a ele. Se ela não</p><p>contasse, eu contaria. Senti que manter aquele segredo violaria o</p><p>compromisso que havíamos feito de sermos um casal franco e</p><p>honesto um com o outro. Ao esconder essa informação dele, me</p><p>unindo à sua mãe e às suas irmãs, eu teria participado da</p><p>dinâmica disfuncional de sua família. Falar com ele afirmava</p><p>minha lealdade e respeito por sua capacidade de lidar com a</p><p>realidade.</p><p>Ao passo que a privacidade fortalece todos os nossos laços, o</p><p>segredo enfraquece e prejudica a conexão. Lerner destaca que</p><p>geralmente “não sabemos o custo emocional de mantermos um</p><p>segredo” até que a verdade seja revelada. Comumente, manter</p><p>segredo envolve mentir. E a mentira sempre é um ambiente em</p><p>potencial para traição e violação de confiança.</p><p>A aceitação generalizada da mentira é uma das principais</p><p>razões pelas quais muitos de nós nunca conheceremos o amor.</p><p>É impossível alimentar o próprio crescimento espiritual ou o de</p><p>outra pessoa quando o centro da identidade está envolto em</p><p>segredos e mentiras. Confiar que outra pessoa sempre queira o</p><p>seu bem, ter uma base sólida de prática amorosa, não pode</p><p>acontecer num contexto de ilusão. É esse truísmo que torna</p><p>todos os atos de retenção sensata de informações dilemas</p><p>morais de primeira ordem. Mais do que nunca, enquanto</p><p>sociedade, precisamos renovar o compromisso de dizer a</p><p>verdade. Esse compromisso se torna difícil quando mentir é</p><p>considerado mais aceitável que dizer a verdade. Mentir se tornou</p><p>tão aceitável como norma que as pessoas mentem mesmo</p><p>quando seria mais simples dizer a verdade.</p><p>Praticamente todos os profissionais de saúde mental, dos</p><p>psicanalistas mais eruditos aos gurus de autoajuda menos</p><p>treinados, nos dizem que é infinitamente mais compensador e</p><p>que todos seríamos mais saudáveis se disséssemos a verdade,</p><p>mas a maioria de nós não está com muita pressa para integrar o</p><p>rol dos que o fazem. De fato, como alguém comprometida em ser</p><p>honesta no meu dia a dia, experimento a irritação constante de</p><p>ser vista como uma “anormal” por dizer a verdade, mesmo</p><p>quando falo de maneira verdadeira sobre temas simples. Se um</p><p>amigo me der um presente e me perguntar se gostei ou não,</p><p>responderei de forma honesta e criteriosa, o que significa que</p><p>falarei a verdade de uma maneira positiva, carinhosa. No</p><p>entanto, mesmo nessa situação, a pessoa que pede honestidade</p><p>frequentemente demonstrará irritação ao receber uma resposta</p><p>sincera.</p><p>No mundo de hoje, somos ensinados a temer a verdade, a</p><p>acreditar que ela sempre dói. Somos encorajados a ver pessoas</p><p>honestas como ingênuas, como perdedores em potencial.</p><p>Bombardeados por propaganda cultural pronta para nos instilar a</p><p>ideia de que mentiras são mais importantes, de que a verdade</p><p>não conta, todos nós somos vítimas em potencial. A cultura do</p><p>consumo, em particular, encoraja a mentira. A publicidade é um</p><p>dos meios culturais que mais a sanciona. Manter as pessoas</p><p>num estado constante de falta, em desejo perpétuo, fortalece a</p><p>economia de mercado. O desamor é uma bênção para o</p><p>consumismo. E as mentiras fortalecem o mundo da publicidade</p><p>predatória. Nossa aceitação passiva das mentiras na vida</p><p>pública, particularmente através dos meios de comunicação de</p><p>massa, encoraja e perpetua a mentira em nossa vida privada. No</p><p>plano público, os tabloides não teriam nada para expor se</p><p>vivêssemos nossa vida abertamente, comprometidos a dizer a</p><p>verdade. O compromisso de conhecer o amor pode nos proteger,</p><p>mantendo-nos empenhados em levar uma vida de verdade,</p><p>dispostos a compartilhar quem somos aberta e completamente</p><p>tanto na vida pública como na privada.</p><p>Para conhecer o amor, temos que dizer a verdade para nós</p><p>mesmos e para os outros. Criar um “eu” falso para mascarar os</p><p>medos e as inseguranças se tornou tão comum que muitos de</p><p>nós esquecemos quem somos e o que sentimos sob o</p><p>fingimento. Romper com essa negação é sempre o primeiro</p><p>passo para descobrir nosso desejo de sermos honestos e claros.</p><p>Mentiras e segredos nos sobrecarregam e nos estressam. Se um</p><p>indivíduo sempre mentiu, ele não tem consciência de que dizer a</p><p>verdade pode livrá-lo desse fardo pesado. Para saber disso, é</p><p>necessário abandonar as mentiras.</p><p>Quando o feminismo começou, as mulheres falavam</p><p>abertamente sobre nossa vontade de conhecer melhor os</p><p>homens, de amá-los pelo que eles realmente são. Falávamos de</p><p>nosso desejo de sermos amadas pelo que realmente somos (isto</p><p>é, sermos aceitas como os seres físicos e espirituais que somos,</p><p>em vez de sentir que precisamos nos transformar em seres de</p><p>fantasia para nos tornarmos objeto do desejo masculino). E</p><p>instamos os homens a serem verdadeiros com eles mesmos, a</p><p>se expressarem. Então, quando os homens começaram a</p><p>compartilhar seus pensamentos e sentimentos, algumas</p><p>mulheres não conseguiram lidar com isso. Elas queriam as</p><p>velhas mentiras e fingimentos de volta. Nos anos 1970, um</p><p>popular cartão de aniversário mostrava uma mulher sentada</p><p>diante de uma vidente encarando uma bola de cristal. A legenda</p><p>na frente do cartão dizia: “Ele nunca fala sobre os sentimentos</p><p>dele”. Do lado de dentro, a resposta era: “Ano que vem, às 14</p><p>horas, os homens começarão a falar dos seus sentimentos. E, às</p><p>14h05, as mulheres de todo o país se lamentarão”. Quando</p><p>ouvimos os pensamentos, os sentimentos e as crenças de outras</p><p>pessoas, é mais difícil projetar nelas nossas percepções sobre</p><p>quem são. É mais difícil ser manipulador. Às vezes as mulheres</p><p>acham difícil ouvir o que muitos homens têm a dizer quando o</p><p>que eles nos falam não está de acordo com nossas fantasias de</p><p>quem são e de quem gostaríamos que fossem.</p><p>A criança ferida dentro de muitos homens é um menino que,</p><p>da primeira vez que falou suas verdades, foi silenciado pelo</p><p>sadismo paterno, por um mundo patriarcal que não queria que</p><p>ele reivindicasse seus reais sentimentos. A criança ferida dentro</p><p>de muitas mulheres é uma menina que foi ensinada desde os</p><p>primórdios da infância que deveria se tornar outra coisa que não</p><p>ela mesma e negar seus verdadeiros sentimentos, para atrair e</p><p>agradar os outros. Quando homens e mulheres punem uns aos</p><p>outros por dizer a verdade, reforçamos a ideia de que o melhor é</p><p>mentir. Para sermos amorosos, precisamos estar dispostos a</p><p>ouvir as verdades uns dos outros e, o mais importante, reafirmar</p><p>o valor de dizer a verdade. As mentiras podem fazer as pessoas</p><p>se sentirem melhor, mas não nos ajudam a conhecer o amor.</p><p>04.</p><p>compromisso:</p><p>que o amor</p><p>seja o amor-próprio</p><p>O compromisso é inerente a qualquer relacionamento</p><p>genuinamente amoroso. Qualquer um que esteja</p><p>realmente preocupado com o crescimento espiritual do</p><p>outro sabe, consciente ou instintivamente, que só pode</p><p>alimentar esse crescimento através</p><p>de um</p><p>relacionamento constante.</p><p>— M. Scott Peck</p><p>O compromisso de dizer a verdade estabelece os fundamentos</p><p>para a abertura e a honestidade, que são a pulsação do amor.</p><p>Quando podemos nos ver como realmente somos, e nos</p><p>aceitamos, construímos os fundamentos necessários para o</p><p>amor-próprio. Todos já ouvimos a máxima: “Se você não se ama,</p><p>não poderá amar mais ninguém”. Soa bem. No entanto, é muito</p><p>comum sentirmos certo grau de confusão ao ouvir essa</p><p>afirmação. A confusão surge pois a maioria das pessoas que</p><p>pensam não serem dignas de receber amor tem essa percepção</p><p>porque, em algum momento de sua vida, foi socializada por</p><p>forças fora de seu controle para se ver indigna de amor. Nós não</p><p>nascemos sabendo como amar alguém, quer se trate de nós</p><p>mesmos ou de outra pessoa. Contudo, nascemos capazes de</p><p>reagir ao carinho. Conforme crescemos, podemos dar e receber</p><p>atenção, afeição e alegria. Aprender como nos amar e como</p><p>amar os outros dependerá da existência de um ambiente</p><p>amoroso.</p><p>O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma</p><p>tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o</p><p>amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam</p><p>muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a</p><p>sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil</p><p>se amar. Usar uma definição prática do amor como as ações que</p><p>tomamos em favor de nosso crescimento espiritual ou o de</p><p>outrem nos fornece um diagrama para trabalhar a questão do</p><p>amor-próprio. Quando vemos o amor como uma combinação de</p><p>confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e</p><p>responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas</p><p>qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos</p><p>aprender a estendê-las a nós mesmos.</p><p>Muitas pessoas consideram útil examinar o passado de modo</p><p>crítico, especialmente a infância, para mapear a internalização de</p><p>mensagens que afirmavam que elas não tinham valor, não eram</p><p>boas o suficiente, eram loucas, estúpidas, monstruosas, e por aí</p><p>vai. Apenas entender como adquirimos esses sentimentos de</p><p>inutilidade raramente nos permite mudar as coisas; em geral, é</p><p>só uma etapa do processo. Assim como muitas outras pessoas,</p><p>considerei útil examinar padrões de pensamento e</p><p>comportamento negativos aprendidos na infância, especialmente</p><p>aqueles que moldaram meu senso de self e identidade.</p><p>Entretanto, esse processo sozinho não garantiu a</p><p>autorrecuperação. Não foi suficiente. Compartilho isso porque é</p><p>muito fácil ficar empacada na simples descrição, repetindo a</p><p>própria história várias vezes, o que pode ser uma forma de se</p><p>apegar ao luto ligado a esse passado ou a uma narrativa que põe</p><p>a culpa nos outros.</p><p>Se é importante compreendermos as origens de uma</p><p>autoestima frágil, também é possível ultrapassar esse estágio (a</p><p>identificação de quando e onde recebemos socialização</p><p>negativa) e ainda criar uma base para a construção do amor-</p><p>próprio. Indivíduos que ultrapassam esse estágio tendem a</p><p>avançar para o próximo, que consiste em introduzir ativamente</p><p>em nossa vida padrões de pensamento e comportamento</p><p>construtivos e positivos. Não é importante que as pessoas se</p><p>lembrem dos detalhes do abuso. Quando a consequência desse</p><p>abuso é um sentimento de falta de valor, elas ainda podem se</p><p>envolver num processo de autorrecuperação ao encontrar formas</p><p>de afirmar o próprio valor.</p><p>O coração ferido aprende o amor-próprio começando por</p><p>superar a baixa autoestima. Em seu extenso livro Autoestima e</p><p>os seus seis pilares, Nathaniel Branden destaca dimensões</p><p>importantes da autoestima: “a prática de viver conscientemente,</p><p>a autoaceitação, a autorresponsabilidade, a autoafirmação, viver</p><p>com propósito e praticar a integridade pessoal”. Viver</p><p>conscientemente significa pensar criticamente sobre nós mesmos</p><p>e o mundo em que vivemos. Ousar fazer perguntas básicas a nós</p><p>mesmos: quem, o quê, quando, onde e por quê. Responder a</p><p>essas questões geralmente nos fornece um grau de consciência</p><p>que nos ilumina. Branden afirma: “Viver conscientemente</p><p>significa buscar estar consciente de tudo o que sustenta nossas</p><p>ações, propósitos, valores e objetivos — para melhorar nossa</p><p>habilidade, seja ela qual for — e nos comportarmos de acordo</p><p>com o que vemos e sabemos”. Para viver conscientemente,</p><p>temos que nos engajar em uma reflexão crítica a respeito do</p><p>mundo em que vivemos e conhecê-lo mais intimamente.</p><p>Com frequência é por meio da reflexão que indivíduos que</p><p>não se aceitavam tomam a decisão de parar de ouvir as vozes</p><p>negativas, dentro e fora de si, que os rejeitam e os desvalorizam</p><p>constantemente. Frases motivacionais funcionam para qualquer</p><p>pessoa que esteja se esforçando para se aceitar. Embora</p><p>durante anos eu tenha me interessado por formas terapêuticas</p><p>de cura e autoajuda, frases motivacionais sempre me pareceram</p><p>um pouco bregas. Minha irmã, que na época trabalhava como</p><p>terapeuta na área de dependência química, me encorajou a dar</p><p>uma chance para as frases motivacionais e ver se eu</p><p>experimentaria mudanças concretas na minha percepção.</p><p>Escrevi frases relevantes para o meu dia a dia e comecei a</p><p>repeti-las como parte da minha meditação matinal. A primeira da</p><p>minha lista era: “Estou rompendo com antigos padrões e</p><p>seguindo adiante com a minha vida”. Eu não só descobri que</p><p>elas me davam uma tremenda injeção de energia — uma</p><p>maneira de começar o dia acentuando a positividade — como</p><p>também achei útil repeti-las durante o dia caso eu me sentisse</p><p>particularmente estressada ou caindo no abismo do pensamento</p><p>negativo. As frases motivacionais me ajudaram a restaurar meu</p><p>equilíbrio emocional.</p><p>A autoaceitação é difícil para muitos de nós. Há uma voz</p><p>interna que julga constantemente, primeiro nós mesmos e então</p><p>os outros. Essa voz gosta da indulgência de uma crítica negativa</p><p>sem fim. Como aprendemos a acreditar que a negatividade é</p><p>mais realista, ela parece mais real do que qualquer voz positiva.</p><p>Uma vez que começamos a substituir o pensamento negativo</p><p>pelo positivo, fica claro que, longe de ser realista, o pensamento</p><p>negativo é totalmente incapacitante. Quando somos positivos,</p><p>não só aceitamos e afirmamos quem somos, mas também somos</p><p>capazes de afirmar e aceitar os outros.</p><p>Quanto mais nos aceitamos, mais estamos preparados para</p><p>assumir responsabilidades em todas as áreas da nossa vida. Ao</p><p>comentar esse terceiro pilar da autoestima, Branden define a</p><p>autorresponsabilidade como a disposição de “assumir a</p><p>responsabilidade pelas minhas ações e a realização dos meus</p><p>objetivos, […] pela minha vida e pelo meu bem-estar”. Assumir a</p><p>responsabilidade não significa negar a realidade da injustiça</p><p>institucionalizada. Por exemplo, o racismo, o machismo e a</p><p>homofobia criam barreiras e incidentes concretos de</p><p>discriminação. Simplesmente assumir responsabilidade não</p><p>significa que possamos impedir que atos discriminatórios</p><p>ocorram. No entanto, podemos escolher como reagimos aos atos</p><p>de injustiça. Assumir a responsabilidade significa que, diante de</p><p>barreiras, ainda temos a capacidade de inventar nossa vida, de</p><p>moldar nosso destino de formas que ampliem nosso bem-estar</p><p>ao máximo. Todos os dias praticamos essa transmutação para</p><p>lidar com realidades que não podemos mudar facilmente.</p><p>Muitas mulheres são casadas com homens que não as</p><p>apoiaram quando decidiram investir em sua própria educação. A</p><p>maioria dessas mulheres não abandonou os homens da sua vida;</p><p>elas desenvolveram estratégias construtivas de resistência. Uma</p><p>mulher com quem conversei estava inibida porque seu marido</p><p>trabalhava numa fábrica e ela se sentia desconfortável por ter</p><p>mais educação formal que ele. No entanto, ela queria voltar ao</p><p>mercado de trabalho e, para isso, precisava de uma pós-</p><p>graduação. Ela fez a escolha de assumir a responsabilidade por</p><p>suas necessidades e seus desejos, acreditando que isso também</p><p>melhoraria o bem-estar da família. Voltar a trabalhar aumentou</p><p>sua autoestima e modificou a raiva passivo-agressiva e a</p><p>depressão que ela havia desenvolvido como consequência do</p><p>isolamento e da estagnação. Entretanto, tomar essa decisão e</p><p>encontrar maneiras de realizá-la não foi um processo</p><p>fácil. O</p><p>marido e os filhos se mostravam desapontados quando a</p><p>independência dela os forçava a aceitar mais responsabilidades</p><p>em relação ao trabalho doméstico. No longo prazo, todos se</p><p>beneficiaram. Sem falar que essas mudanças fortaleceram a</p><p>autoestima dela de maneiras que lhe mostraram como o amor-</p><p>próprio tornou possível estar disponível para os outros de um</p><p>jeito construtivo. Ela estava mais feliz e todos ao seu redor</p><p>também.</p><p>Para fazer essas mudanças, ela precisou usar outro aspecto</p><p>vital da autoestima, a “autoafirmação”, definida por Branden</p><p>como “a disposição de se posicionar em favor de si mesmo, de</p><p>ser quem sou abertamente, de me tratar com respeito em todos</p><p>os encontros humanos”. Uma vez que muitos de nós fomos</p><p>constrangidos na infância, fosse em nossas famílias de origem</p><p>ou nos ambientes escolares, o curso de ação que comumente</p><p>escolhemos para evitar conflitos era o padrão aprendido de</p><p>seguir o fluxo e não fazer alarde. Quando éramos crianças, os</p><p>conflitos via de regra compunham o contexto para desprezo e</p><p>humilhações, ou seja, os espaços em que éramos constrangidos.</p><p>Nossas tentativas de autoafirmação não funcionavam</p><p>adequadamente como defesa. Muitos de nós aprendemos que a</p><p>passividade reduzia a possibilidade de ataque.</p><p>A socialização machista ensina às mulheres que a</p><p>autoafirmação é uma ameaça à feminilidade. Aceitar essa lógica</p><p>equivocada prepara o terreno para a baixa autoestima. O medo</p><p>de ser assertiva costuma emergir em mulheres que foram</p><p>treinadas para ser boas meninas ou filhas prestativas. No lar da</p><p>nossa infância, meu irmão nunca foi punido por retrucar. Afirmar</p><p>suas opiniões era um sinal positivo de masculinidade. Quando</p><p>minhas irmãs e eu expressávamos nossas opiniões, nossos pais</p><p>diziam que esse comportamento era negativo e indesejável.</p><p>Ouvíamos, especialmente do nosso pai, que a assertividade das</p><p>mulheres não era feminina. Não escutávamos esses avisos.</p><p>Embora nossa casa fosse um lar patriarcal, o fato de que as</p><p>mulheres eram bem mais numerosas que os dois homens, meu</p><p>pai e meu irmão, fazia com que fosse seguro expressar nossos</p><p>pensamentos, retrucar. Por sorte, no momento em que nos</p><p>tornamos jovens adultas, o movimento feminista já havia</p><p>chegado e validado que ter voz e ser assertiva era necessário</p><p>para construir autoestima.</p><p>Uma das razões pelas quais as mulheres tradicionalmente</p><p>fofocam mais que os homens é o fato de a fofoca ser uma</p><p>interação social na qual elas encontram conforto para dizer o que</p><p>realmente pensam e sentem. Com frequência, em vez de afirmar</p><p>o que pensam no momento apropriado, as mulheres dizem o que</p><p>consideram que vai agradar o interlocutor. Depois, elas fofocam,</p><p>expressando então seus pensamentos verdadeiros. Essa divisão</p><p>entre um “eu” falso inventado para agradar os outros e um “eu”</p><p>mais autêntico não existe quando cultivamos uma autoestima</p><p>positiva.</p><p>•••</p><p>O movimento feminista realmente ajudou as mulheres a</p><p>compreender o poder pessoal que se adquire com uma</p><p>autoafirmação positiva. A obra A revolução interior: um livro de</p><p>autoestima, um best-seller de Gloria Steinem, alertou as</p><p>mulheres quanto ao perigo de alcançar o sucesso sem</p><p>estabelecer as bases necessárias para o amor-próprio e a</p><p>autoestima. Ela descobriu que mulheres bem-sucedidas que</p><p>ainda sofriam de auto-ódio internalizado invariavelmente agiam</p><p>de formas que minavam suas realizações. E, caso a pessoa</p><p>bem-sucedida que sofre de auto-ódio não tenha se sabotado, ela</p><p>pode ter vivido num desespero particular, incapaz de dizer aos</p><p>outros que o sucesso não põe fim, de fato, à falta de autoestima.</p><p>Para complicar as coisas, as mulheres podem sentir necessidade</p><p>de fingir que amam a si mesmas, para projetar confiança e poder</p><p>para o mundo exterior e, como consequência, sentirem-se num</p><p>conflito psicológico, desconectadas de seu “eu” verdadeiro.</p><p>Envergonhadas pelo sentimento de que nunca poderão deixar</p><p>ninguém saber quem realmente são, elas podem escolher o</p><p>isolamento e a solidão por medo de serem desmascaradas.</p><p>Isso também ocorre com os homens. Quando homens</p><p>poderosos alcançam o topo do reconhecimento profissional em</p><p>sua carreira, frequentemente sabotam tudo o que construíram</p><p>agindo de forma autodestrutiva. Homens que ocupam as</p><p>posições mais baixas no totem da economia nacional fazem isso,</p><p>assim como os do topo. O presidente Bill Clinton agiu de forma</p><p>hipócrita, traindo tanto seus compromissos pessoais em relação</p><p>à sua família como seu compromisso de ser um modelo dos</p><p>valores estadunidenses para o povo deste país. Ele fez isso</p><p>justamente quando sua popularidade estava no auge. Depois de</p><p>passar boa parte da vida avançando contra todas as</p><p>probabilidades, suas ações expuseram uma falha fundamental</p><p>em sua autoestima. Embora ele seja um homem branco,</p><p>educado em uma universidade de elite e economicamente</p><p>abastado, privilegiado, com todas as mordomias, suas ações</p><p>irresponsáveis eram uma forma de se desmascarar, de mostrar</p><p>ao mundo que não era o “bom sujeito” que fingia ser. Ele criou o</p><p>contexto para um escândalo público que, sem dúvidas, espelha</p><p>momentos de vergonha da infância, quando alguma figura de</p><p>autoridade em sua vida o fez sentir que não tinha valor, que</p><p>nunca seria digno, não importa o que fizesse. Qualquer um que</p><p>sofra de baixa autoestima pode aprender com esse exemplo. Se</p><p>atingirmos o sucesso sem confrontar e alterar as bases trêmulas</p><p>de ódio e desprezo nas quais nossa baixa autoestima está</p><p>fundamentada, fraquejaremos ao longo do caminho.</p><p>•••</p><p>Não por acaso, “viver com propósito” é o sexto elemento da</p><p>autoestima. De acordo com Branden, isso implica assumir a</p><p>responsabilidade de criar objetivos conscientemente, de</p><p>identificar as ações necessárias para alcançá-los, garantir que</p><p>nosso comportamento está alinhado com nossos objetivos e</p><p>prestar atenção ao resultado de nossas ações para que vejamos</p><p>se elas estão nos levando aonde queremos ir. A maioria das</p><p>pessoas se preocupa em viver com propósito quando se trata da</p><p>escolha profissional. Infelizmente, muitos trabalhadores sentem</p><p>que têm pouquíssima liberdade de escolha em relação à</p><p>profissão. A maioria das pessoas não cresce sabendo que o</p><p>trabalho que escolhemos terá grande impacto em nossa</p><p>capacidade de ter amor-próprio.</p><p>O trabalho ocupa muito de nosso tempo. Fazer um trabalho</p><p>que odiamos ataca nossa autoestima e nossa autoconfiança. A</p><p>maioria dos trabalhadores não pode fazer o trabalho que ama.</p><p>Contudo, todos podemos aprimorar nossa capacidade de viver</p><p>com propósito aprendendo como experimentar satisfação em</p><p>qualquer profissão que desempenhemos. Encontramos essa</p><p>satisfação ao nos comprometermos totalmente com o trabalho</p><p>que temos, seja qual for. Quando tive um emprego de professora</p><p>que odiava (o tipo de trabalho em que você deseja ficar doente</p><p>para ter uma desculpa para não ir), o único modo que eu tinha de</p><p>aliviar a profundidade da minha dor era dar meu melhor. Essa</p><p>estratégia me permitia viver com propósito. Fazer bem o trabalho,</p><p>ainda que não gostemos do que estamos fazendo, suscita um</p><p>sentimento de bem-estar, mantém nossa autoestima intacta.</p><p>Essa autoestima nos ajuda quando vamos em busca de um</p><p>trabalho que pode ser mais compensador.</p><p>Ao longo da minha vida não me aventurei apenas em busca</p><p>de um trabalho de que gostasse, mas também de trabalhar com</p><p>pessoas que eu respeitasse, de quem gostasse ou amasse. A</p><p>primeira vez em que declarei o desejo de trabalhar num ambiente</p><p>de trabalho amoroso, meus amigos agiram como se eu estivesse</p><p>louca. Para eles, amor e trabalho não andam juntos. No entanto,</p><p>eu estava convencida de que trabalharia melhor em um ambiente</p><p>moldado por uma ética amorosa. Hoje em dia, como o conceito</p><p>budista de “modo de vida correto” é compreendido mais</p><p>amplamente, mais pessoas abraçam a crença de que o trabalho</p><p>que melhora o nosso bem-estar espiritual fortalece a nossa</p><p>capacidade de amar. E quando trabalhamos com amor, criamos</p><p>um ambiente de trabalho amoroso. Toda vez que entro num</p><p>escritório, consigo sentir imediatamente, pela atmosfera e pelo</p><p>humor geral, se os trabalhadores gostam ou não do que fazem.</p><p>Em Siga sua vocação que</p><p>o dinheiro vem, Marsha Sinetar</p><p>escreve sobre esse conceito como forma de encorajar os leitores</p><p>a correrem o risco de escolher um trabalho com o qual se</p><p>importem, aprendendo com a experiência o significado de um</p><p>modo de vida correto.</p><p>Embora existam muitos insights significativos no livro de</p><p>Sinetar, também é verdade que podemos seguir nossas</p><p>vocações e nem sempre o dinheiro virá. Apesar de ser totalmente</p><p>decepcionante, isso pode também nos dar a consciência prática</p><p>de que fazer o que se ama é mais importante do que ganhar</p><p>muito dinheiro. Por vezes, como tem sido na minha vida, tive que</p><p>trabalhar em empregos que não traziam satisfação para ter</p><p>condições de fazer o trabalho que amo. A certa altura de uma</p><p>carreira profissional muito heterogênea, trabalhei como</p><p>cozinheira numa casa noturna. Eu odiava o barulho e a fumaça.</p><p>No entanto, trabalhar à noite me deixava livre para escrever</p><p>durante o dia, para fazer o trabalho que eu realmente queria</p><p>fazer. Cada experiência aprimorava o valor da outra. Meu</p><p>emprego noturno me ajudou a aproveitar a tranquila serenidade</p><p>do meu dia e apreciar o tempo sozinha, tão essencial para a</p><p>escrita.</p><p>Sempre que possível, é melhor procurar um emprego que</p><p>amamos e evitar um que odiamos. Entretanto, às vezes</p><p>aprendemos o que precisamos evitar justamente fazendo-o.</p><p>Indivíduos que podem ser economicamente autossuficientes</p><p>fazendo o que amam são abençoados. Suas experiências</p><p>servem como um farol para todos nós, mostrando as maneiras</p><p>como o modo de vida correto é capaz de fortalecer o amor-</p><p>próprio, garantindo a paz e o contentamento na vida que levamos</p><p>para além do trabalho.</p><p>É comum que os trabalhadores acreditem que, se sua vida</p><p>doméstica for boa, não importa que eles se sintam</p><p>desumanizados e explorados no trabalho. Muitos empregos</p><p>corroem o amor-próprio porque exigem que os funcionários</p><p>provem seu valor constantemente. Indivíduos insatisfeitos e</p><p>infelizes no trabalho trazem essa energia negativa para casa.</p><p>Claramente, muito da violência na vida doméstica, tanto física</p><p>como verbal, está relacionada à infelicidade com o trabalho. Nós</p><p>podemos estimular amigos e pessoas que amamos a se</p><p>moverem em direção a mais amor-próprio, apoiando-os em</p><p>qualquer esforço para deixar um emprego que ataque seu bem-</p><p>estar.</p><p>Pessoas que não fazem parte da força de trabalho</p><p>remunerada, mulheres e homens que realizam trabalho</p><p>doméstico sem receber, assim como todas as outras pessoas</p><p>desempregadas e satisfeitas com isso, geralmente estão fazendo</p><p>o que querem. Embora não sejam recompensadas com um</p><p>salário, seu dia a dia frequentemente lhes oferece mais</p><p>satisfação do que se trabalhassem em um emprego bem pago</p><p>num ambiente estressante e desumanizante. Donas e donos de</p><p>casa satisfeitos, as mulheres e os raros homens que escolheram</p><p>ficar em casa, têm muito a ensinar a todos nós a respeito das</p><p>alegrias que vêm da autorrealização. Eles são seus próprios</p><p>chefes, estabelecendo as condições de seu trabalho e a medida</p><p>de suas recompensas. Mais que qualquer um de nós, têm</p><p>liberdade para desenvolver o modo de vida correto.</p><p>Muitos de nós não aprendemos na juventude que nossa</p><p>capacidade de amar a nós mesmos seria moldada pelo trabalho</p><p>que fazemos ou que o trabalho aumenta o nosso bem-estar. Não</p><p>surpreende que tenhamos nos tornado uma nação onde muitos</p><p>trabalhadores se sentem mal. Empregos deprimem o espírito. Em</p><p>vez de aprimorar a autoestima, o trabalho é percebido como um</p><p>fardo, uma necessidade negativa. Trazer amor para o ambiente</p><p>de trabalho pode criar a transformação necessária para que</p><p>qualquer trabalho que façamos, não importa quão subalterno, se</p><p>torne um âmbito em que os trabalhadores possam expressar seu</p><p>melhor. Quando trabalhamos com amor, renovamos nosso</p><p>espírito; essa renovação é um ato de amor-próprio que alimenta</p><p>nosso crescimento. Não é o que você faz, mas como faz.</p><p>Em The Knitting Sutra: Crafts as a Spiritual Practice [O sutra</p><p>do tricô: artesanato como prática espiritual], Susan Lydon</p><p>descreve o trabalho de tricotar como uma atividade manual</p><p>escolhida livremente que aumentou sua consciência do valor do</p><p>modo de vida correto. Ela afirma: “O que descobri nesse</p><p>pequeno mundo doméstico do tricô é infinito; ele se amplia e se</p><p>aprofunda mais do que qualquer um possa imaginar. É infinito e</p><p>aparentemente inesgotável em sua capacidade de inspirar,</p><p>excitar e provocar insights criativos”. Lydon vê o mundo que</p><p>tradicionalmente consideramos “trabalho de mulher” como um</p><p>lugar para descobrir a devoção por meio do êxtase da criação</p><p>doméstica. Um lar feliz é um lugar onde o amor pode florescer.</p><p>Criar felicidade doméstica é especialmente útil para pessoas</p><p>que moram sozinhas e estão aprendendo a amar a si mesmas.</p><p>Quando nos esforçamos intencionalmente para tornar a nossa</p><p>casa um lugar onde estamos prontos para dar e receber amor,</p><p>cada objeto que colocamos ali aumenta o nosso bem-estar. Eu</p><p>crio temas para minhas casas. Meu apartamento na cidade tem</p><p>como tema “lugar de encontrar o amor”. Como uma pessoa de</p><p>cidade pequena que se mudou para a cidade grande, achei que</p><p>precisava que o meu ambiente realmente se parecesse com um</p><p>santuário. Como meu apartamento de um quarto é muito menor</p><p>que os lugares onde me habituei a morar, decidi levar apenas</p><p>objetos que eu realmente amava — as coisas sem as quais eu</p><p>sentia que não poderia ficar. É impressionante a quantidade de</p><p>coisas das quais podemos nos desapegar. Minha casa no interior</p><p>tem como tema o deserto. Eu a chamo de “soledad hermosa”, a</p><p>beleza de estar só. Vou para lá para ficar calma e sossegada,</p><p>para ter a experiência do divino, para me renovar.</p><p>•••</p><p>De todos os capítulos deste livro, este foi o mais difícil de</p><p>escrever. Quando falei com amigos e conhecidos sobre amor-</p><p>próprio, fiquei surpresa em ver como muitos de nós se sentem</p><p>inquietos diante dessa noção, como se a simples ideia implicasse</p><p>narcisismo ou egoísmo demais. Todos nós precisamos nos livrar</p><p>de ideias equivocadas a respeito do amor-próprio. Precisamos</p><p>parar de igualar covardemente o amor-próprio a egoísmo ou</p><p>egocentrismo.</p><p>Amor-próprio é a base de nossa prática amorosa. Sem ele,</p><p>nossos outros esforços amorosos falham. Ao dar amor a nós</p><p>mesmos, concedemos ao nosso ser interior a oportunidade de ter</p><p>o amor incondicional que talvez tenhamos sempre desejado</p><p>receber de outra pessoa. Quando interagimos com os outros, o</p><p>amor que damos e recebemos sempre é necessariamente</p><p>condicional. Embora não seja impossível, é muito difícil e raro</p><p>que sejamos capazes de estender o amor incondicional aos</p><p>outros, em grande parte porque não temos como exercer controle</p><p>sobre o comportamento deles e não podemos prever ou controlar</p><p>totalmente nossas reações a suas ações. Podemos, contudo,</p><p>exercitar controle sobre as nossas. Podemos nos dar o amor</p><p>incondicional que é o fundamento para a aceitação e a afirmação</p><p>sustentadas. Quando nos damos esse presente precioso, somos</p><p>capazes de alcançar os outros a partir de um lugar de satisfação,</p><p>e não de falta.</p><p>Um dos melhores guias para amar a si mesmo é nos dar o</p><p>amor que geralmente sonhamos receber dos outros. Houve uma</p><p>época, depois dos quarenta, em que eu me sentia péssima em</p><p>relação ao meu corpo, me considerava muito gorda, muito isso,</p><p>muito aquilo. No entanto, eu fantasiava encontrar um amante que</p><p>me daria o presente de ser amada como sou. É bobo que eu</p><p>sonhasse com outra pessoa me oferecendo a aceitação e a</p><p>afirmação que eu mesma me negava, não é? Esse foi um</p><p>momento em que a máxima “Se você não se ama, não poderá</p><p>amar mais ninguém” fez todo sentido. E acrescento: “Não espere</p><p>receber de outra pessoa o amor que você não dá a si mesma”.</p><p>Em um mundo ideal, todos aprenderíamos na infância a</p><p>amarmos a nós mesmos. Cresceríamos seguros de nosso valor e</p><p>merecimento, espalhando amor aonde quer que fôssemos,</p><p>deixando nossa luz brilhar. Se não aprendemos o amor-próprio</p><p>na juventude, ainda há esperança. A luz do amor está sempre</p><p>em nós, não importa quão fria esteja a chama. Ele está sempre</p><p>presente, esperando uma fagulha que o inflame, esperando que</p><p>o coração desperte e nos leve de volta</p><p>para a primeira lembrança</p><p>de ser a força da vida dentro de um lugar escuro esperando para</p><p>nascer — esperando para ver a luz.</p><p>05.</p><p>espiritualidade:</p><p>o amor divino</p><p>Como mulher e amante, contudo, sou movida pela</p><p>visão do meu Amado. Onde Ele está, eu quero estar.</p><p>O que Ele sofre, quero partilhar. O que Ele é, eu quero</p><p>ser: crucificada por amor.</p><p>— Santa Teresa d’Ávila</p><p>Viver a vida em contato com espíritos divinos nos permite ver a</p><p>luz do amor em todos os seres vivos. Essa luz é uma força vital</p><p>que ressuscita. Uma cultura que está morta para o amor só pode</p><p>ser ressuscitada pelo despertar espiritual. Na superfície, parece</p><p>que nosso país foi tão longe no caminho do individualismo</p><p>secular, adorando os deuses gêmeos do dinheiro e do poder, que</p><p>parece não haver espaço para a vida espiritual. No entanto, a</p><p>imensa maioria dos estadunidenses, que expressa sua fé no</p><p>cristianismo, no judaísmo, no islamismo, no budismo ou em outra</p><p>tradição religiosa, claramente acredita que a vida espiritual é</p><p>importante. A crise na vida estadunidense não parece ser</p><p>causada por falta de interesse na espiritualidade. Contudo, esse</p><p>interesse é constantemente cooptado pelas forças poderosas do</p><p>materialismo e do consumismo hedonista.</p><p>Na conclusão de A arte de amar, livro perspicaz escrito em</p><p>meados dos anos 1950, mas ainda relevante no mundo de hoje,</p><p>o psicanalista Erich Fromm corajosamente chama atenção para o</p><p>fato de que “o princípio que alicerça a sociedade capitalista e o</p><p>princípio do amor são incompatíveis”. Ele observa: “Nossa</p><p>sociedade é dirigida por uma burocracia gerencial, por políticos</p><p>profissionais; o povo é motivado pela sugestão da massa, seu</p><p>alvo é produzir mais e consumir mais, como finalidades em si”. A</p><p>ênfase cultural no consumo interminável desvia a atenção da</p><p>fome espiritual. Somos ininterruptamente bombardeados por</p><p>mensagens que nos dizem que todas as nossas necessidades</p><p>podem ser satisfeitas pelo acúmulo material. A artista Barbara</p><p>Kruger criou uma obra que proclama “Compro, logo sou” para</p><p>mostrar como o consumismo tomou conta da consciência</p><p>coletiva, fazendo as pessoas pensarem que elas são o que</p><p>possuem. Quando o afã de ter se intensifica, o mesmo acontece</p><p>com a sensação de vazio espiritual. Por nos sentirmos vazios</p><p>espiritualmente, tentamos nos preencher com o consumismo.</p><p>Podemos não ter amor o suficiente, mas sempre podemos</p><p>comprar.</p><p>Em nosso país, a fome espiritual emerge da consciência</p><p>penetrante da ausência emocional em nossa vida. Ela é uma</p><p>reação ao desamor. Ir à igreja ou ao templo não tem satisfeito</p><p>essa fome, que emerge das profundezas da nossa alma. A</p><p>religião organizada tem falhado na satisfação da fome espiritual</p><p>porque ela se acomodou a demandas seculares, interpretando a</p><p>vida espiritual de formas que sustentam os valores de uma</p><p>cultura centrada na produção de mercadorias. Isso é verdade</p><p>tanto para as igrejas cristãs tradicionais quanto para a</p><p>espiritualidade new age. Não por acaso tantos professores</p><p>famosos de espiritualidade new age relacionam seus</p><p>ensinamentos a uma metafísica da vida prática que exalta as</p><p>virtudes da riqueza, do privilégio e do poder. Por exemplo,</p><p>observe a lógica new age que sugere que os pobres escolheram</p><p>ser pobres, escolheram seu sofrimento. Esse pensamento retira</p><p>de todos nós que somos privilegiados o fardo da</p><p>responsabilidade. Em vez de nos convocar para abraçar o amor</p><p>e mais comunhão, ele, na verdade, demanda um investimento na</p><p>lógica da alienação e do distanciamento.</p><p>A interdependência básica da vida é ignorada de modo que a</p><p>separação e o ganho individual possam ser divinizados. O</p><p>fundamentalismo religioso frequentemente é representado como</p><p>uma prática espiritual autêntica e recebe um nível de exposição</p><p>na mídia que o pensamento e a prática religiosa da contracultura</p><p>nunca receberam. Em geral, os fundamentalistas, sejam eles</p><p>cristãos, muçulmanos ou de qualquer fé, moldam e interpretam o</p><p>pensamento religioso para fazê-lo se conformar a um status quo</p><p>conservador, legitimando-o. Pensadores fundamentalistas usam</p><p>a religião para justificar o apoio ao imperialismo, ao militarismo,</p><p>ao machismo, ao racismo e à homofobia. Eles negam a</p><p>mensagem unificadora de amor que está no coração de todas as</p><p>principais tradições religiosas.</p><p>Não surpreende que muitas pessoas que dizem acreditar em</p><p>ensinamentos religiosos não permitam que seus hábitos reflitam</p><p>suas crenças. Por exemplo, as igrejas cristãs continuam entre as</p><p>instituições com mais segregação racial em nossa sociedade. Na</p><p>carta de Martin Luther King Jr. aos cristãos estadunidenses, na</p><p>qual assume a persona do apóstolo Paulo, ele repreende os</p><p>crentes por apoiarem a segregação:</p><p>Estadunidenses, eu devo convocá-los a se livrarem de todos</p><p>os aspectos da segregação. A segregação é uma flagrante</p><p>negação da unidade que nós temos em Cristo. Ela substitui</p><p>um relacionamento entre “mim e você” por uma relação entre</p><p>“mim e aquilo”, e relega as pessoas ao status de coisas. Ela</p><p>deixa cicatrizes na alma e degrada a personalidade. […]</p><p>Destrói a comunidade e torna a fraternidade impossível.</p><p>Esse é apenas um exemplo da forma como as religiões</p><p>organizadas veneram corruptos e violam princípios religiosos</p><p>sobre como deveríamos viver no mundo e como deveríamos agir</p><p>uns em relação aos outros. Imagine como nossa vida seria</p><p>diferente se todos os indivíduos que se dizem cristãos, ou que</p><p>alegam ser religiosos, servissem de exemplo para todos, sendo</p><p>amorosos.</p><p>Flagrantes usos equivocados da espiritualidade e da fé</p><p>religiosa poderiam nos levar ao desespero em relação à vida</p><p>espiritual se não estivéssemos testemunhando, ao mesmo</p><p>tempo, uma preocupação genuína com o despertar espiritual</p><p>expressa pela contracultura. Sejam os budistas estadunidenses</p><p>trabalhando em solidariedade para libertar o Tibete, ou as muitas</p><p>organizações de bases cristãs que oferecem apoio na forma de</p><p>comida e abrigo para necessitados do mundo todo, essas</p><p>manifestações de prática amorosa renovam nossas esperanças e</p><p>restauram a alma. Em todo o mundo, a teologia da libertação</p><p>oferece aos explorados e aos oprimidos uma visão de liberdade</p><p>espiritual ligada às lutas pelo fim da dominação.</p><p>Pouco mais de dez anos depois de Fromm ter lançado A arte</p><p>de amar, a coletânea de sermões de Martin Luther King Jr.,</p><p>Strength to love [Força para amar] foi publicada. O foco principal</p><p>desses discursos era a celebração do amor como uma força</p><p>espiritual que une e interliga todas as vidas. Como a obra de</p><p>Fromm, esses textos defendiam a vida espiritual, criticando o</p><p>capitalismo, o materialismo e a violência usada para impor a</p><p>exploração e a desumanização. Em uma palestra de 1967 contra</p><p>a guerra, King declarou:</p><p>Quando eu falo de amor, não estou falando de uma reação</p><p>sentimental e fraca. Estou falando daquela força que todas as</p><p>grandes religiões veem como o supremo princípio unificador</p><p>da vida. O amor, de alguma forma, é a chave que abre a porta</p><p>que leva à última realidade. Essa crença hindu-muçulmana-</p><p>cristã-judaico-budista na última realidade é lindamente</p><p>resumida na primeira epístola de São João: “Amemo-nos uns</p><p>aos outros, pois o amor é de Deus e todo aquele que ama</p><p>nasceu de Deus e conhece a Deus”.</p><p>Ao longo de sua vida, King foi um profeta do amor. No fim dos</p><p>anos 1970, quando já não era legal falar de espiritualidade, me</p><p>via voltando repetidamente à sua obra e à de Thomas Merton.</p><p>Como pensadores e sujeitos em uma busca religiosa, ambos</p><p>dirigiram sua atenção à prática do amor como forma de</p><p>realização espiritual.</p><p>Exaltando o poder transformador do amor no ensaio “Love</p><p>and Need” [Amor e necessidade], Merton escreve:</p><p>O amor é, de fato, uma intensificação da vida, uma</p><p>completude, uma satisfação, uma inteireza da vida. […] A vida</p><p>se curva para cima atingindo um pico de intensidade, um</p><p>ponto alto de valor e significado, em que todas as suas</p><p>possibilidades criativas latentes entram em ação e a pessoa</p><p>transcende a si mesma no encontro, na reação e na</p><p>comunhão com o outro. É para isso que viemos ao mundo —</p><p>essa comunhão e autotranscendência. Não nos tornamos</p><p>completamente humanos até que nos</p><p>aqui</p><p>não está vinculado à religião, mas a uma força vital presente em</p><p>cada indivíduo. Nesse sentido, a afeição seria apenas um dos</p><p>componentes do amor. Para amar verdadeiramente devemos</p><p>aprender a misturar vários ingredientes: carinho, afeição,</p><p>reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como</p><p>honestidade e comunicação aberta. Uma das contribuições</p><p>fundamentais trazidas por bell hooks é nos fazer pensar que são</p><p>as ações que constroem os sentimentos. Dessa maneira, ao</p><p>pensar o amor como ação, nos vemos obrigados a assumir a</p><p>responsabilidade e o comprometimento com esse aprendizado.</p><p>O segundo capítulo, “Justiça: lições de amor na infância”,</p><p>demonstra que o impacto do patriarcado e a forma da dominação</p><p>masculina sobre mulheres e crianças são barreiras para o amor,</p><p>algo pouco presente na bibliografia sobre o tema. Nós</p><p>aprendemos sobre o amor na infância, e quer nossa família seja</p><p>chamada funcional ou disfuncional, sejam nossos lares felizes ou</p><p>não, são eles as nossas primeiras escolas de amor. Neste</p><p>capítulo, bell hooks levanta a importante discussão sobre a</p><p>necessidade de valorizar, respeitar e assegurar os direitos civis</p><p>básicos das crianças. Caso contrário, a maioria delas não</p><p>conhecerá o amor, tendo em vista que não existe amor sem</p><p>justiça. Nesse ponto, a autora demonstra o quanto o lar da</p><p>família nuclear é uma esfera institucionalizada de poder que pode</p><p>ser facilmente autocrática e fascista. Dessa maneira, continua</p><p>ela, se queremos uma sociedade eticamente amorosa,</p><p>precisamos desmascarar o mito de que abuso e negligência</p><p>podem coexistir com amor. Onde há abuso, a prática amorosa</p><p>fracassou. Não se pode concordar que a punição severa seja</p><p>uma forma aceitável de se relacionar com as crianças. “O amor é</p><p>o que o amor faz”, e é nossa responsabilidade dar amor às</p><p>crianças, reconhecendo que elas não são propriedades e têm</p><p>direitos que nós precisamos garantir.</p><p>No terceiro capítulo, “Honestidade: seja verdadeira com o</p><p>amor”, bell hooks afirma que a verdade é o coração da justiça.</p><p>Somos ensinados desde a infância que não devemos mentir, que</p><p>devemos jogar limpo. Entretanto, na prática, quem diz a verdade</p><p>normalmente é punido, reforçando a ideia de que mentir é</p><p>melhor. Homens mentem para agradar às mães e depois às</p><p>mulheres. Mentir e se dar bem é um traço da masculinidade</p><p>patriarcal. Meninos e homens são encorajados a todo momento a</p><p>fazer o que for preciso para manter sua posição de controle. Por</p><p>sua vez, as mulheres também mentem para os homens como</p><p>forma de agradar e manipular. Vivemos em uma sociedade em</p><p>que a cultura do consumo também encoraja a mentira. A</p><p>publicidade é um dos maiores exemplos disso. As mentiras</p><p>impulsionam o mundo da publicidade predatória e o desamor é</p><p>bênção para o consumismo. Além disso, manter as pessoas em</p><p>um estado constante de escassez fortalece a economia de</p><p>mercado. Dessa maneira, hooks enfatiza que a tarefa de sermos</p><p>amorosos e construirmos uma sociedade amorosa implica</p><p>reafirmar o valor de dizer a verdade e, portanto, estarmos</p><p>dispostos a ouvir as verdades uns dos outros. A confiança é o</p><p>fundamento da intimidade.</p><p>Partindo do pressuposto de que não é fácil amar a si mesmo,</p><p>no quarto capítulo, “Compromisso: que o amor seja amor-</p><p>próprio”, bell hooks nos ensina que, quando somos positivos, não</p><p>só aceitamos e afirmamos quem somos mas também somos</p><p>capazes de afirmar e aceitar os outros. E o movimento feminista</p><p>ajudou as mulheres a compreender o poder pessoal que se</p><p>adquire com uma autoafirmação positiva. Quando temos de fazer</p><p>um trabalho que odiamos, por exemplo, isso ataca a nossa</p><p>autoestima e autoconfiança. O trabalho, quando percebido como</p><p>um fardo, por se realizar em empregos ruins em vez de aprimorar</p><p>a autoestima, deprime o espírito. Como lidar com essa questão</p><p>se a maioria de nós não pode fazer o trabalho que ama? Um dos</p><p>modos de experimentar satisfação seria nos comprometermos</p><p>totalmente com o trabalho a ser realizado, seja ele qual for.</p><p>Trazer o amor para o ambiente laboral pode criar a</p><p>transformação necessária para tornar qualquer trabalho que</p><p>façamos um meio de expressarmos o nosso melhor. Quando</p><p>trabalhamos com amor, renovamos nosso espírito, e essa</p><p>renovação é um ato de amor-próprio que alimenta nosso</p><p>crescimento. E não devemos confundir amor-próprio com</p><p>egoísmo ou egocentrismo. O amor-próprio é a base de nossa</p><p>prática amorosa, pois, ao dar amor a nós mesmos, concedemos</p><p>ao nosso ser interior a oportunidade de ter amor incondicional. É</p><p>o amor-próprio que garante que nossos esforços amorosos com</p><p>as outras pessoas não falhem.</p><p>No quinto capítulo, “Espiritualidade: o amor divino”, hooks</p><p>chama a atenção para o fato de que a crise na vida</p><p>estadunidense não poderia ser causada por falta de interesse na</p><p>espiritualidade, tendo em vista que a imensa maioria das</p><p>pessoas diz seguir alguma religião. Isso indicaria que a vida</p><p>espiritual é algo importante nessa sociedade. No entanto, esse</p><p>interesse é cooptado pelas forças do materialismo e do</p><p>consumismo hedonista, traduzido na lógica do “compro, logo</p><p>sou”. A religião “organizada” falhou em satisfazer a “fome</p><p>espiritual”, e as pessoas procuram preencher esse vazio com o</p><p>consumismo. A autora questiona: “Imagine como nossa vida</p><p>seria diferente se todos os indivíduos que se dizem cristãos, ou</p><p>que alegam serem religiosos, servissem de exemplo para todos,</p><p>sendo amorosos”. A atualidade desse questionamento para o</p><p>Brasil de hoje é desconcertante, tendo em vista os milhões de</p><p>ditos “cristãos” que, ao invés de amar o próximo como a si</p><p>mesmos, destilam ódio e preconceito.</p><p>“Valores: viver segundo uma ética amorosa” é o título do</p><p>capítulo 6, no qual bell hooks reforça que o despertar para o</p><p>amor só pode acontecer se nos desapegarmos da obsessão por</p><p>poder e domínio. Para nos tornarmos pessoas mais alegres e</p><p>mais realizadas, precisamos adotar uma ética amorosa, pois</p><p>nossa alma sente quando agimos de maneira antiética,</p><p>rebaixando o nosso espírito e desumanizando os outros. Viver</p><p>dentro de uma ética amorosa é uma escolha de se conectar com</p><p>o outro. Isso significa, por exemplo, se solidarizar com pessoas</p><p>que vivem sob o jugo de governos fascistas, mesmo estando em</p><p>um país democrático. Neste ponto, hooks retoma a afirmação de</p><p>Cornel West de que uma “política de conversão” restaura a</p><p>sensação de esperança. E reafirma que abraçar a ética amorosa</p><p>significa inserir todas as dimensões do amor — “cuidado,</p><p>compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e</p><p>conhecimento” — em nossa vida cotidiana.</p><p>“Ganância: simplesmente ame”, o sétimo capítulo do livro,</p><p>demonstra que o isolamento e a solidão são as causas centrais</p><p>da depressão e do desespero. O materialismo cria um mundo de</p><p>narcisismo no qual consumir é a coisa mais importante. Nessa</p><p>reflexão, a autora analisa como a participação ativa dos Estados</p><p>Unidos em guerras globais colocou em questão o compromisso</p><p>desse país com a democracia, sacrificando a visão de liberdade,</p><p>amor e justiça em nome do materialismo e do dinheiro. Ela</p><p>aborda também o desespero que tomou conta das pessoas</p><p>quando líderes que lutavam pela paz e pela justiça foram</p><p>assassinados, no final da década de 1960. Nesse momento, as</p><p>pessoas perderam a conexão com a comunidade, e a atenção</p><p>voltou-se para a ideia de ganhar dinheiro, o máximo possível. Os</p><p>líderes passaram a ser os ricos e os famosos, as estrelas do</p><p>cinema e da música. As igrejas e os templos, que antes eram</p><p>espaços de reunião da comunidade, com o advento da teologia</p><p>da prosperidade, tornaram-se lugares onde a ética materialista é</p><p>respaldada e racionalizada. O que vale a partir de então é a</p><p>cultura do consumo desenfreado. Pessoas também são tratadas</p><p>como objetos e são esses os valores que passam a orientar as</p><p>atitudes em relação ao amor. Isso se reflete também nas políticas</p><p>públicas, como no fato de os Estados Unidos serem um dos</p><p>países mais ricos do mundo e não possuírem um sistema</p><p>universal de saúde que possa oferecer serviços aos menos</p><p>favorecidos. Dessa maneira, bell hooks convida as pessoas à</p><p>escolha de viver com simplicidade. Isso necessariamente</p><p>intensifica</p><p>entreguemos uns aos</p><p>outros no amor.</p><p>Os ensinamentos sobre amor oferecidos por Fromm, King e</p><p>Merton diferem de boa parte dos textos de hoje. Em suas obras,</p><p>há sempre uma ênfase no amor como uma força ativa que</p><p>deveria nos levar a uma comunhão mais ampla com o mundo.</p><p>Seus textos apontam que a prática amorosa não está direcionada</p><p>a simplesmente dar ao indivíduo maior satisfação na vida; ela é</p><p>exaltada como a maneira básica de pôr fim à dominação e à</p><p>opressão. Essa importante politização do amor geralmente está</p><p>ausente nos escritos atuais.</p><p>Por mais que eu goste das populares reflexões new age a</p><p>respeito do amor, com frequência me bato com o perigoso</p><p>narcisismo promovido pela retórica espiritual que dá tanta</p><p>atenção ao aprimoramento individual, deixando de lado a prática</p><p>do amor no contexto da comunidade. Embrulhada como um</p><p>produto, a espiritualidade se torna igual a um programa de</p><p>exercícios. Embora possa fazer o consumidor se sentir melhor</p><p>em relação à sua vida, seu poder de melhorar nossa comunhão</p><p>com nós mesmos e com os outros de maneira consistente é</p><p>inibido. Em Vida ativa: nossa jornada num mundo de criatividade,</p><p>espiritualidade e ação, Parker Palmer comenta o valor da vida</p><p>engajada, destacando:</p><p>Estar completamente vivo é agir. […] Compreendo a ação</p><p>como qualquer forma em que podemos cocriar a realidade</p><p>com outros seres e o Espírito. […] A ação, como um</p><p>sacramento, é uma forma visível de um espírito invisível, uma</p><p>manifestação externa de um poder interior. Contudo, conforme</p><p>agimos, não apenas expressamos o que está em nós e</p><p>ajudamos a moldar o mundo; nós também recebemos o que</p><p>está fora de nós e remodelamos nosso eu interior.</p><p>Compromisso com a vida espiritual exige que façamos mais que</p><p>ler um bom livro ou ir a um retiro restaurador. Demanda prática</p><p>consciente, uma disposição de unir a forma como pensamos e a</p><p>forma como agimos.</p><p>A vida espiritual tem a ver, em primeiro lugar, com o</p><p>compromisso com uma forma de pensar e agir que honre os</p><p>princípios de interconexão e simbiose. Quando falo do espiritual,</p><p>me refiro ao reconhecimento dentro de cada um de que existe</p><p>um lugar de mistério na nossa vida onde forças que estão além</p><p>do desejo ou da vontade humana alteram as circunstâncias e/ou</p><p>nos guiam e nos direcionam. Chamo essas forças de “espírito</p><p>divino”. Quando escolhemos levar uma vida preenchida pela</p><p>espiritualidade, reconhecemos e celebramos a presença de</p><p>espíritos transcendentes. Algumas pessoas chamam essa</p><p>presença de alma, de Deus, de Amado, de consciência elevada</p><p>ou de poder superior. Há ainda os que dizem que essa força é o</p><p>que é porque não pode ser nomeada. Para eles, é simplesmente</p><p>o espírito se movendo em nós e através de nós.</p><p>O compromisso com a vida espiritual necessariamente</p><p>significa que abraçamos o princípio eterno de que o amor é tudo,</p><p>todas as coisas, nosso verdadeiro destino. Apesar da pressão</p><p>massacrante para nos conformarmos à cultura do desamor, nós</p><p>ainda buscamos conhecer o amor. Essa busca em si é uma</p><p>manifestação do espírito divino. O niilismo que ameaça a vida é</p><p>abundante na cultura contemporânea, atravessando as fronteiras</p><p>de raça, classe, gênero e nacionalidade. Em algum ponto, ele</p><p>afeta a vida de todos. Todo mundo que conheço às vezes é</p><p>derrubado por sentimentos de depressão e desespero em</p><p>relação à situação do mundo. Seja pela presença mundial da</p><p>violência manifestada na persistência da guerra, da fome e da</p><p>miséria provocadas pelo homem, pela realidade de um cotidiano</p><p>violento, pela presença de doenças que representam risco de</p><p>vida e causam a partida inesperada de amigos, de</p><p>companheiros, de pessoas que amamos, há muitas coisas que</p><p>podem levar alguém à beira do desalento. Conhecer o amor ou a</p><p>esperança de conhecer o amor é a âncora que nos impede de</p><p>cair num mar de desânimo profundo. Em Um caminho com o</p><p>coração: como vivenciar a prática da vida espiritual nos dias de</p><p>hoje, Jack Kornfield afirma: “O anseio pelo amor e o movimento</p><p>do amor estão na base de todas as nossas atividades”.</p><p>A espiritualidade e a vida espiritual nos dão forças para amar.</p><p>É raro que indivíduos que não tiveram contato com pensamentos</p><p>e práticas religiosos tradicionais escolham uma vida no espírito,</p><p>que honre as dimensões sagradas da vida diária. Professores</p><p>espirituais são guias importantes que nos oferecem um</p><p>catalisador para nosso despertar espiritual. Outra fonte de</p><p>crescimento espiritual são a comunhão e o companheirismo com</p><p>almas semelhantes. Quem está numa busca espiritual permite</p><p>que sua luz brilhe para que os outros possam ver, não apenas</p><p>para servir de exemplo, mas também como um lembrete</p><p>constante para si mesmo de que a espiritualidade é manifestada</p><p>da maneira mais gloriosa em nossas ações — em nossos hábitos</p><p>de existência. Jack Kornfield explica com perspicácia:</p><p>Todos os outros ensinamentos espirituais são em vão se não</p><p>pudermos amar. Até mesmo os estados mais exaltados e as</p><p>realizações espirituais mais excepcionais são desimportantes</p><p>se não pudermos ser felizes das formas mais básicas e</p><p>comuns, se, com nosso coração, não pudermos tocar uns aos</p><p>outros e a vida que nos foi dada. O que importa é como</p><p>vivemos.</p><p>Para muitos de nós, a igreja foi o lugar onde ouvimos pela</p><p>primeira vez uma contranarrativa a respeito do amor, que diferia</p><p>das mensagens confusas aprendidas em famílias disfuncionais.</p><p>As dimensões místicas da fé cristã (a crença de que todos somos</p><p>um, de que o amor é tudo) que me foram apresentadas na</p><p>infância pela igreja constituíram um espaço de redenção. Na</p><p>igreja, eu não só aprendi a entender que Deus é amor, mas</p><p>também que as crianças eram especiais no coração e na mente</p><p>do espírito divino. Sonhando em me tornar escritora, valorizando</p><p>a vida intelectual acima de todas as coisas, era especialmente</p><p>incrível aprender de cor passagens da primeira carta do apóstolo</p><p>Paulo aos Coríntios, “o capítulo do amor”. Desde a infância,</p><p>tenho refletido com frequência sobre a passagem que proclama:</p><p>Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos,</p><p>se eu não tivesse o amor, seria como sino ruidoso ou como</p><p>címbalo estridente. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o</p><p>conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda</p><p>que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se</p><p>não tivesse o amor, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse</p><p>todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o</p><p>meu corpo às chamas, se não tivesse o amor, nada disso me</p><p>adiantaria.</p><p>Durante meus anos de pós-graduação, enquanto trabalhava duro</p><p>para terminar o doutorado, me esforçando para manter um</p><p>compromisso com a vida espiritual em um mundo que não a</p><p>valoriza, eu voltava a essas lições sobre a primazia do amor. A</p><p>sabedoria que elas transmitem impedia que eu endurecesse meu</p><p>coração. Manter-me aberta para o amor foi crucial para minha</p><p>sobrevivência acadêmica. Quando o ambiente no qual você vive</p><p>e que conhece mais intimamente não valoriza o amor, a vida</p><p>espiritual oferece um lugar de conforto e renovação.</p><p>Não por acaso, adquirir conhecimento sobre espiritualidade</p><p>não é o mesmo que se comprometer com uma vida espiritual.</p><p>Jack Kornfield relata:</p><p>Ao levar uma vida espiritual, o que importa é simples:</p><p>devemos ter a certeza de que o nosso caminho está</p><p>conectado ao nosso coração. No início de uma verdadeira</p><p>jornada espiritual, temos que ficar próximos do nosso lar, focar</p><p>diretamente aquilo que está diante de nós, ter certeza de que</p><p>o nosso caminho está conectado com nosso amor mais</p><p>profundo.</p><p>Quando começamos a experimentar o sagrado em nossa vida</p><p>diária, trazemos para as tarefas mundanas um tipo de</p><p>concentração e envolvimento que eleva o espírito. Isso é</p><p>especialmente verdadeiro quando enfrentamos dificuldades.</p><p>Muitas pessoas se voltam para o pensamento espiritual apenas</p><p>quando vivenciam problemas, na esperança de que a tristeza e a</p><p>dor desaparecerão milagrosamente. Em geral elas descobrem</p><p>que esse lugar de sofrimento — onde nosso espírito é quebrado</p><p>—, quando aceito e acolhido, é também um lugar de paz e de</p><p>possibilidade. Nossos sofrimentos não se acabam magicamente;</p><p>em vez disso, somos</p><p>capazes de sabiamente reciclá-los com</p><p>alquimia. Eles se tornam os restos que usamos para possibilitar</p><p>um novo crescimento. É por isso que as escrituras bíblicas nos</p><p>aconselham a “contar todas as alegrias quando encontrarmos</p><p>muitos desafios”. Aprender a acolher nosso sofrimento é um dos</p><p>dons oferecidos pela vida e pela prática espirituais.</p><p>Para ser significativa, a prática espiritual não precisa estar</p><p>conectada à religião organizada. Alguns indivíduos encontram</p><p>sua conexão sagrada com a vida em comunhão com o mundo</p><p>natural ou se envolvendo em práticas que honram os</p><p>ecossistemas que mantêm a vida. Nós podemos meditar, rezar, ir</p><p>ao templo, à igreja, à mesquita ou criar um santuário tranquilo</p><p>onde moramos para entrar em contato com os espíritos</p><p>sagrados. Para algumas pessoas, servir diariamente os outros é</p><p>uma prática espiritual afirmativa, que expressa seu amor por</p><p>outrem. Quando estabelecemos o compromisso de estar em</p><p>contato com forças divinas que influenciam nosso mundo interior</p><p>e exterior, estamos escolhendo conduzir a vida no espírito.</p><p>Eu estudo ensinamentos espirituais como um guia para</p><p>reflexão e ação. O despertar espiritual contracultural é visível em</p><p>livros e revistas, assim como em pequenos círculos onde</p><p>indivíduos se reúnem para celebrar e comungar com o divino. O</p><p>companheirismo com pessoas que estão em busca da verdade</p><p>oferece uma inspiração essencial. Uma vez que as raízes iniciais</p><p>da minha prática espiritual se encontravam na tradição cristã,</p><p>ainda considero a igreja tradicional um lugar de culto e</p><p>companheirismo, e também participo da prática budista. Medito e</p><p>rezo. Cada um deve escolher a prática espiritual que mais</p><p>contribui para sua vida. É por isso que pessoas progressistas em</p><p>busca da verdade nos convocam a sermos todos tolerantes — a</p><p>lembrar que, embora nossos caminhos sejam muitos, somos uma</p><p>comunidade no amor.</p><p>O despertar espiritual que lentamente está acontecendo no</p><p>campo da contracultura se tornará mais disseminado conforme</p><p>nos dispusermos a romper os tabus culturais hegemônicos que</p><p>silenciam ou apagam nossa paixão pela prática espiritual. Por um</p><p>bom tempo, muitos dos meus amigos e colegas de trabalho não</p><p>faziam ideia de que eu me devotava a uma prática espiritual.</p><p>Entre acadêmicos e pensadores progressistas, era muito mais</p><p>legal, descolado e aceitável expressar sentimentos de ateísmo</p><p>do que declarar uma devoção apaixonada pelo espírito divino.</p><p>Também não queria que as pessoas pensassem que, ao falar de</p><p>minhas crenças espirituais, estava tentando convertê-las ou</p><p>impor essas crenças a elas de alguma maneira.</p><p>Comecei a falar mais abertamente sobre o papel da</p><p>espiritualidade em minha vida quando testemunhei o desespero</p><p>dos meus alunos, sua sensação de desesperança, seus medos</p><p>de que a vida não tivesse significado, sua solidão e desamor</p><p>profundos. Quando estudantes jovens, brilhantes e belos vinham</p><p>ao meu escritório confessar seu desânimo, eu sentia que era</p><p>irresponsabilidade apenas escutar e me compadecer de suas</p><p>aflições sem ousar lhes mostrar como eu tinha confrontado</p><p>questões semelhantes em minha vida. Frequentemente, eles me</p><p>pediam que contasse como havia mantido a alegria de viver.</p><p>Para dizer a verdade, eu tinha que estar disposta a falar</p><p>abertamente sobre a vida espiritual. E eu tinha que encontrar</p><p>uma maneira de falar das minhas escolhas sem pressupor que</p><p>elas seriam as escolhas certas ou boas para outra pessoa.</p><p>Minha crença de que Deus é amor — de que o amor é tudo,</p><p>nosso verdadeiro destino — me sustenta. Afirmo essas crenças</p><p>por meio de meditação e orações diárias, por meio da</p><p>contemplação e do ato de servir, por meio da adoração e da</p><p>bondade amorosa. Na introdução de Lovingkindness: The</p><p>Revolutionary Art of Happiness [Bondade amorosa: a arte</p><p>revolucionária da alegria], Sharon Salzberg ensina que Buda</p><p>descreveu a prática espiritual como “a libertação do coração que</p><p>é amor”. Ela nos convoca a lembrar que a prática espiritual nos</p><p>ajuda a superar o sentimento de isolamento, que ela “revela o</p><p>coração radiante, cheio de alegria dentro de cada um de nós e</p><p>manifesta essa luminosidade para o mundo”. Todos precisam</p><p>estar em contato com as necessidades de seu espírito. Essa</p><p>conexão nos chama para o despertar espiritual — para o amor.</p><p>No livro bíblico de João, uma passagem nos lembra que “todo</p><p>aquele que não conhece o amor ainda está na morte”.</p><p>Todo despertar para o amor é um despertar espiritual.</p><p>06.</p><p>valores:</p><p>viver segundo</p><p>uma ética</p><p>amorosa</p><p>Devemos viver para o dia e trabalhar pelo dia em que</p><p>a sociedade humana se realinhará com o amor radical</p><p>de Deus. Em um paradigma verdadeiramente</p><p>democrático, não há amor pelo poder como fim em si.</p><p>— Marianne Williamson</p><p>Despertar para o amor só pode acontecer se nos desapegarmos</p><p>da obsessão pelo poder e pela dominação. Culturalmente, todas</p><p>as esferas da vida estadunidense — política, religião, locais de</p><p>trabalho, ambientes domésticos, relações íntimas — deveriam e</p><p>poderiam ter como base uma ética amorosa. Os valores que</p><p>sustentam uma cultura e sua ética moldam e influenciam a forma</p><p>como falamos e agimos. Uma ética amorosa pressupõe que</p><p>todos têm o direito de ser livres, de viver bem e plenamente. Para</p><p>trazer a ética amorosa para todas as dimensões de nossa vida,</p><p>nossa sociedade precisaria abraçar a mudança. No final de A</p><p>arte de amar, Erich Fromm afirma que “importantes e radicais</p><p>mudanças em nossa estrutura social são necessárias, para que o</p><p>amor se torne um fenômeno social, e não um fenômeno</p><p>altamente individualista e marginal”. Indivíduos que escolhem</p><p>amar podem alterar e alteram a própria vida para honrar a</p><p>primazia da ética amorosa. Nós fazemos isso ao escolher</p><p>trabalhar com indivíduos que admiramos e respeitamos; ao nos</p><p>comprometermos a nos entregar inteiramente em nossos</p><p>relacionamentos; ao abraçar uma visão global em que vemos</p><p>nossa vida e nosso destino como intimamente ligados aos de</p><p>todas as outras pessoas do planeta.</p><p>O compromisso com uma ética amorosa transforma nossa</p><p>vida ao nos oferecer um conjunto diferente de valores pelos quais</p><p>viver. Em grande e em pequena escalas, fazemos escolhas</p><p>baseadas na crença de que a honestidade, a franqueza e a</p><p>integridade pessoal precisam ser expressas nas decisões</p><p>públicas e privadas. Decidi me mudar para uma cidade pequena</p><p>para que pudesse viver na mesma região que minha família,</p><p>embora culturalmente não fosse um lugar tão desejável quanto</p><p>aquele onde eu morava antes. Amigos meus vivem com seus</p><p>pais idosos, cuidando deles, embora tenham dinheiro para morar</p><p>em outro lugar. Quando vivemos de acordo com uma ética</p><p>amorosa, aprendemos a valorizar mais a lealdade e o</p><p>compromisso com laços duradouros do que o crescimento</p><p>material. Embora ter uma carreira e ganhar dinheiro continue</p><p>sendo importante, isso nunca vem antes da valorização e do</p><p>cuidado com a vida e o bem-estar humanos.</p><p>Não conheço ninguém que tenha adotado uma ética amorosa</p><p>e não tenha se tornado uma pessoa mais alegre e mais</p><p>realizada. A suposição comum de que o comportamento ético</p><p>acaba com a diversão na vida é falsa. Na realidade, viver</p><p>eticamente garante que os relacionamentos em nossa vida,</p><p>incluindo encontros com estranhos, alimentem o nosso</p><p>crescimento espiritual. Comportar-se de maneira antiética, sem</p><p>pensar nas consequências de nossas ações, é como comer</p><p>toneladas de alimentos ultraprocessados. Embora o sabor possa</p><p>ser bom, no fim, o corpo nunca está adequadamente nutrido e</p><p>permanece num estado constante de falta e anseio. Nossa alma</p><p>sente essa falta quando agimos de maneira antiética, nos</p><p>comportando de formas que rebaixam o nosso espírito e</p><p>desumanizam os outros.</p><p>•••</p><p>Relatos presentes em textos new age evidenciam como abraçar</p><p>uma ética amorosa transforma a vida para melhor. Contudo,</p><p>muitas dessas informações só alcançam aqueles entre nós que</p><p>dispõem de privilégios de classe. E, frequentemente, indivíduos</p><p>cuja vida é próspera em bem-estar material e espiritual, que têm</p><p>diversos amigos por todos os caminhos da vida para nutrir sua</p><p>integridade pessoal, dizem ao restante do mundo que essas</p><p>coisas são impossíveis</p><p>de se conseguir. Estou falando aqui de</p><p>muitos profetas do apocalipse que nos dizem que o racismo</p><p>nunca vai acabar, que o machismo está aqui para ficar, que os</p><p>ricos nunca compartilharão os seus recursos. Nós todos</p><p>ficaríamos surpresos se pudéssemos entrar na vida deles por um</p><p>dia. Muito do que eles nos dizem que não pode ser obtido, eles</p><p>têm. No entanto, ao manter uma noção capitalista de bem-estar,</p><p>eles realmente acreditam que não há o suficiente para todos, que</p><p>uma boa vida só está ao alcance de poucos.</p><p>Recentemente, falando para um público universitário,</p><p>expressei minha fé no poder de as pessoas brancas falarem</p><p>contra o racismo, desafiando e pondo fim ao preconceito —</p><p>declarando de forma enfática que eu definitivamente acredito que</p><p>todos nós podemos transformar nossa mente e ações. Ressaltei</p><p>que essa fé não está enraizada num desejo utópico, que eu</p><p>acredito nisso porque na história de nossa nação muitos</p><p>indivíduos ofereceram sua vida a serviço da justiça e da</p><p>liberdade. Questionada por pessoas que diziam que esses</p><p>indivíduos eram exceção, concordei. Mas então falei da</p><p>necessidade de transformarmos o nosso pensamento para nos</p><p>vermos como seres que mudam, ao invés de estarmos entre os</p><p>que se recusam a fazê-lo. O que tornou esses indivíduos</p><p>excepcionais não foi eles serem mais inteligentes ou mais</p><p>bondosos que seus vizinhos, mas sua vontade de viver a</p><p>verdade de seus valores.</p><p>Aqui vai outro exemplo. Se você sair de porta em porta pelo</p><p>país e conversar com os cidadãos a respeito da violência</p><p>doméstica, quase todo mundo vai insistir que não apoia a</p><p>violência contra a mulher, a qual acredita ser moral e eticamente</p><p>errada. Contudo, quando você explica que só acabaremos com a</p><p>violência contra a mulher ao desafiar o patriarcado, e que isso</p><p>significa não aceitar mais a ideia de que homens deveriam ter</p><p>mais direitos e privilégios que as mulheres por causa de</p><p>diferenças biológicas, ou de que homens deveriam ter poder para</p><p>dominar as mulheres, as pessoas então param de concordar.</p><p>Existe uma distância entre os valores que dizem defender e sua</p><p>disposição de fazer o trabalho necessário para conectar</p><p>pensamento e ação, teoria e prática, para concretizar esses</p><p>valores e assim criar uma sociedade mais justa.</p><p>Infelizmente, muitos cidadãos dos Estados Unidos têm</p><p>orgulho de viver em um dos países mais democráticos do mundo</p><p>enquanto temem agir em favor de pessoas que vivem sob</p><p>governos repressores e fascistas. Eles têm medo de agir de</p><p>acordo com o que acreditam porque isso significaria desafiar o</p><p>status quo conservador. A recusa de tomar atitude em relação ao</p><p>que se acredita enfraquece a moralidade e a ética individuais,</p><p>assim como as de toda a cultura. Assim, embora sejamos uma</p><p>nação formada por pessoas que, em sua maioria,</p><p>independentemente de raça, classe e gênero, se dizem religiosas</p><p>e crentes no poder divino do amor, não surpreende que,</p><p>coletivamente, continuemos incapazes de adotar uma ética</p><p>amorosa e permitir que ela guie o nosso comportamento,</p><p>especialmente quando isso significa apoiar mudanças radicais.</p><p>O medo de mudanças radicais leva muitos cidadãos de nosso</p><p>país a trair sua mente e seu coração. Entretanto, todos somos</p><p>submetidos a mudanças radicais todos os dias. Nós as</p><p>encaramos quando nos movemos a despeito do medo. Essas</p><p>transformações geralmente são impostas pelo status quo. Por</p><p>exemplo, novas tecnologias revolucionárias levaram todos nós a</p><p>aceitar os computadores. Nossa disposição em abraçar esse</p><p>“desconhecido” mostra que todos somos capazes de confrontar o</p><p>medo das mudanças radicais, que somos capazes de lidar com</p><p>ele. Obviamente, não interessa ao status quo conservador nos</p><p>encorajar a confrontar nosso medo coletivo do amor. A adoção</p><p>geral de uma ética amorosa significaria que todos nós nos</p><p>oporíamos a muitas das políticas públicas que os conservadores</p><p>aceitam e apoiam.</p><p>O medo coletivo que a sociedade tem do amor deve ser</p><p>encarado se pretendemos reivindicar uma ética amorosa que</p><p>possa nos inspirar e nos dar a coragem para fazer as mudanças</p><p>necessárias. Ao escrever sobre as transformações que precisam</p><p>ser feitas, Fromm explica:</p><p>A sociedade deve ser organizada de modo tal que a natureza</p><p>social e amorosa do homem não se separe de sua existência</p><p>social, mas se unifique com ela. Se é verdade, como venho</p><p>tentando mostrar, que o amor é a única resposta sadia e</p><p>satisfatória ao problema da existência humana, então qualquer</p><p>sociedade que exclua relativamente o desenvolvimento do</p><p>amor deve, no fim das contas, perecer vitimada por sua</p><p>própria contradição com as necessidades básicas da natureza</p><p>humana. Na verdade, falar de amor não é “pregar”, pela</p><p>simples razão de que significa falar da última e real</p><p>necessidade de todo ser humano. […] Ter fé na possibilidade</p><p>do amor como fenômeno social, e não apenas excepcional-</p><p>individual, é uma fé racional baseada no conhecimento da</p><p>própria natureza do homem.</p><p>A fé permite que superemos o medo. Nós podemos recuperar</p><p>coletivamente a nossa fé no poder transformador do amor</p><p>cultivando a coragem, a força para agir em favor daquilo em que</p><p>acreditamos, para sermos responsáveis em palavras e ações.</p><p>Gosto especialmente da passagem bíblica da primeira</p><p>epístola de João que nos diz: “Não há temor no amor; ao</p><p>contrário, o perfeito amor lança fora o temor, porque o temor</p><p>implica um castigo, e o que teme não chegou à perfeição do</p><p>amor”. Desde a infância, essa passagem das escrituras me</p><p>encanta. Eu era fascinada pela repetição das palavras</p><p>“perfeito”/“perfeição”. Por algum tempo, pensei na palavra</p><p>“perfeito” apenas no sentido de ausência de falhas ou defeitos.</p><p>Ensinada a acreditar que essa compreensão do que significa ser</p><p>perfeito sempre esteve fora do alcance humano, que nós éramos</p><p>essencialmente humanos porque não éramos perfeitos, mas</p><p>sempre estivemos ligados ao mistério do corpo, de nossas</p><p>limitações, essa convocação para conhecer um amor perfeito</p><p>sempre me perturbou. Parecia um chamado importante, mas</p><p>impossível. Isto é, até eu procurar uma compreensão mais</p><p>profunda, mais complexa da palavra “perfeito”, e encontrar uma</p><p>definição que enfatizava o desejo de “refinar”.</p><p>Repentinamente, a passagem se iluminou. O amor como um</p><p>processo que tem sido refinado, alquimicamente alterado</p><p>conforme se move de um estado para outro, é o “amor perfeito”</p><p>que pode espantar o medo. Contrariamente à noção de que é</p><p>preciso trabalhar para alcançar a perfeição, não precisamos lutar</p><p>por esse resultado — ele simplesmente acontece. Esse é o</p><p>presente que o amor perfeito oferece. Para receber o presente,</p><p>precisamos primeiro entender que “não há medo no amor”. No</p><p>entanto, temos medo e o medo nos impede de confiar no amor.</p><p>Culturas de dominação se apoiam no cultivo do medo como</p><p>forma de garantir a obediência. Em nossa sociedade, falamos</p><p>muito do amor e pouco do medo. Todavia, estamos terrivelmente</p><p>apavorados o tempo todo. Como cultura, estamos obcecados</p><p>com a ideia de segurança. Contudo, não questionamos por que</p><p>vivemos em estados de extrema ansiedade e terror. O medo é a</p><p>força primária que mantém as estruturas de dominação. Ele</p><p>promove o desejo de separação, o desejo de não ser conhecido.</p><p>Quando somos ensinados que a segurança está na semelhança,</p><p>qualquer tipo de diferença parece uma ameaça. Quando</p><p>escolhemos amar, escolhemos nos mover contra o medo —</p><p>contra a alienação e a separação. A escolha por amar é uma</p><p>escolha por conectar — por nos encontrarmos no outro.</p><p>Uma vez que muitos de nós estão aprisionados pelo medo, só</p><p>podemos nos mover em direção a uma ética amorosa por meio</p><p>de um processo de conversão. O filósofo Cornel West afirma que</p><p>“uma política de conversão” restaura nossa sensação de</p><p>esperança. Chamando a atenção para o niilismo disseminado em</p><p>nossa sociedade, ele nos lembra:</p><p>O niilismo não é superado por argumentos ou análises, é</p><p>domado pelo amor e pelo carinho. Qualquer doença da alma</p><p>deve ser vencida com uma transformação na alma. Essa</p><p>virada é feita por meio da afirmação do próprio valor — uma</p><p>afirmação abastecida pela preocupação com os outros.</p><p>Em uma tentativa de afastar o</p><p>desespero que ameaça a vida,</p><p>mais e mais indivíduos estão se voltando para uma ética</p><p>amorosa. Em nossa cultura, multiplicam-se os sinais de que essa</p><p>conversão está acontecendo. É reconfortante quando um grande</p><p>número de pessoas lê obras como Care of the Soul: A Guide for</p><p>Cultivating Depth and Sacredness in Everyday Life [O cuidado</p><p>com a alma: um guia para cultivar a profundidade e o sagrado na</p><p>vida cotidiana], de Thomas Moore, um livro que nos convida a</p><p>reavaliar os valores que sustentam nossa vida e a fazer escolhas</p><p>que reforcem nossa interconexão com os outros.</p><p>Abraçar uma ética amorosa significa utilizar todas as</p><p>dimensões do amor — “cuidado, compromisso, confiança,</p><p>responsabilidade, respeito e conhecimento” — em nosso</p><p>cotidiano. Só podemos fazer isso de modo bem-sucedido ao</p><p>cultivar a consciência. Estar consciente permite que examinemos</p><p>nossas ações criticamente para ver o que é necessário para que</p><p>possamos dar carinho, ser responsáveis, demonstrar respeito e</p><p>manifestar disposição de aprender. Entender o conhecimento</p><p>como um elemento essencial do amor é vital, pois somos</p><p>diariamente bombardeados com mensagens que nos dizem que</p><p>o amor está relacionado ao mistério, ao que não podemos</p><p>conhecer. Vemos filmes nos quais as pessoas são representadas</p><p>amando alguém com quem nunca conversam, indo para a cama</p><p>sem nunca discutir sobre seu corpo, suas necessidades sexuais,</p><p>do que gostam e do que não gostam. De fato, a mensagem</p><p>recebida da mídia é de que o conhecimento torna o amor menos</p><p>interessante; que é a ignorância que dá ao amor seu caráter</p><p>erótico e transgressor. Essas mensagens geralmente são</p><p>trazidas até nós por produtores em busca de lucro, que não</p><p>fazem a menor ideia de como é a arte de amar, que apresentam</p><p>suas visões mistificadas porque não sabem de fato como</p><p>representar genuinamente uma interação amorosa.</p><p>Se exigíssemos coletivamente que a mídia retratasse imagens</p><p>que reflitam a realidade amorosa, isso aconteceria. Essa</p><p>mudança alteraria nossa cultura radicalmente. Os meios de</p><p>comunicação de massa insistem numa ética de dominação e</p><p>violência, perpetuando-a, porque nossos criadores audiovisuais</p><p>têm mais intimidade com essas realidades do que com as</p><p>realidades do amor. Todos sabemos como a violência é. Todos os</p><p>projetos de pesquisa no campo dos estudos culturais dedicados</p><p>à análise crítica da mídia, sejam favoráveis ou contrários, indicam</p><p>que imagens de violência, especialmente as que envolvem ação</p><p>e sanguinolência, capturam a atenção dos espectadores mais do</p><p>que imagens calmas e pacíficas. Os pequenos grupos de</p><p>pessoas que produzem a maioria das imagens que vemos em</p><p>nossa cultura não têm demonstrado até agora interesse em</p><p>aprender como representar imagens de amor de formas que</p><p>capturem e mexam com nossa imaginação cultural, prendendo a</p><p>nossa atenção.</p><p>Se eles fizessem seu trabalho informados por uma ética</p><p>amorosa, considerariam importante pensar criticamente a</p><p>respeito das imagens que criam. E isso significaria pensar sobre</p><p>o impacto dessas imagens, sobre as formas como moldam a</p><p>cultura e influenciam as maneiras como pensamos e agimos em</p><p>nosso dia a dia. Se desconhecem o terreno amoroso, deveriam</p><p>contratar consultores que lhes oferecessem os insights</p><p>necessários. Ainda que alguns pesquisadores tentem nos dizer</p><p>que não há conexão direta entre as imagens de violência e a</p><p>violência que nos atinge em nossa vida, resta a constatação</p><p>produzida pelo bom senso: todos somos afetados pelas imagens</p><p>que consumimos e pelo estado de espírito em que estamos</p><p>quando as assistimos. Se os espectadores querem ser</p><p>entretidos, e as imagens que nos são mostradas como</p><p>entretenimento são imagens de desumanização violenta, faz</p><p>sentido que esses atos se tornem mais aceitáveis em nossa</p><p>rotina e que nos tornemos menos propensos a reagir a eles com</p><p>indignação moral ou preocupação. Se estivéssemos vendo mais</p><p>imagens de interação humana amorosa, isso sem dúvida teria</p><p>um impacto positivo em nossa vida.</p><p>Não podemos falar em mudar os tipos de imagens que nos</p><p>são oferecidas pela mídia sem reconhecer que a vasta maioria</p><p>delas é criada a partir de uma perspectiva patriarcal. Essas</p><p>imagens não mudarão até que o pensamento e a perspectiva</p><p>patriarcais mudem. Homens e mulheres que não se veem</p><p>individualmente como vítimas do poder patriarcal têm dificuldade</p><p>para levar a sério a necessidade de questionar e alterar o</p><p>pensamento patriarcal. No entanto, a reeducação é sempre</p><p>possível. Inúmeras pessoas são afetadas negativamente pelas</p><p>instituições patriarcais e, mais especificamente, pela dominação</p><p>masculina. Uma vez que a maioria das imagens que vemos é</p><p>produzida por indivíduos comprometidos com o avanço do</p><p>patriarcado, eles investem em nos oferecer imagens que refletem</p><p>os seus valores e as instituições sociais que desejam apoiar. O</p><p>patriarcado, como qualquer sistema de dominação (como o</p><p>racismo, por exemplo), precisa socializar todo mundo para</p><p>acreditar que em todas as relações humanas há um lado superior</p><p>e um inferior, que uma pessoa é forte e a outra, fraca, e,</p><p>consequentemente, é natural que o poderoso domine o que não</p><p>tem poder. Para aqueles que apoiam o poder patriarcal, é</p><p>aceitável manter o poder e o controle por qualquer meio.</p><p>Naturalmente, alguém socializado para pensar dessa forma se</p><p>interessaria e se estimularia mais por cenas de dominação e</p><p>violência do que por cenas de amor e carinho. Contudo, eles</p><p>precisam ter uma audiência para quem vender seus produtos. É</p><p>aí que reside nosso poder de exigir mudanças.</p><p>Ainda que o movimento feminista contemporâneo tenha feito</p><p>muito para intervir nesse tipo de pensamento, para questioná-lo e</p><p>alterá-lo de modo a oferecer a mulheres e homens a</p><p>oportunidade de levarem uma vida mais satisfatória, o</p><p>pensamento patriarcal ainda é a norma dos que estão no poder.</p><p>Isso não significa que não tenhamos o direito de exigir</p><p>mudanças. Nós temos poder enquanto consumidores. Podemos</p><p>exercer esse poder o tempo todo escolhendo não investir tempo,</p><p>energia ou recursos para apoiar a produção e a disseminação de</p><p>imagens na mídia que não reflitam valores que melhorem a vida,</p><p>que debilitem a ética do amor. Não se trata de um argumento a</p><p>favor da censura. A maioria dos males em nosso mundo não foi</p><p>criada pela mídia. É claro que a mídia não inventou a violência</p><p>doméstica, por exemplo. A violência nos lares era difundida</p><p>mesmo quando não havia televisão. Entretanto, todo mundo sabe</p><p>que todas as formas de violência são glamourizadas e</p><p>construídas pela mídia para parecerem interessantes e</p><p>sedutoras. Os produtores dessas imagens poderiam facilmente</p><p>usar a comunicação de massa para questionar e intervir na</p><p>violência. Quando as imagens que vemos justificam a</p><p>brutalidade, levando ou não algum de nós a ser “mais” violento,</p><p>elas reforçam a ideia de que este é um meio aceitável de controle</p><p>social, de que está tudo bem se um indivíduo ou um grupo</p><p>dominar outros.</p><p>A dominação não pode existir em qualquer situação social em</p><p>que prevaleça uma ética amorosa. É importante lembrar a</p><p>percepção de Jung, de que, se o desejo de poder predomina, o</p><p>amor estará ausente. Quando o amor está presente, o desejo de</p><p>dominar e exercer poder não pode ser a ordem do dia. Todos os</p><p>grandes movimentos sociais pela liberdade em nossa sociedade</p><p>têm promovido uma ética amorosa. A preocupação em relação</p><p>ao bem coletivo de nosso país, de nossa cidade ou vizinhança,</p><p>baseada em valores amorosos, faz com que todos busquemos</p><p>nutrir e proteger esse bem. Se todas as políticas públicas fossem</p><p>criadas no espírito do amor, não teríamos que nos preocupar</p><p>com o desemprego, as pessoas em situação de rua, o fracasso</p><p>de escolas em ensinar às crianças ou os vícios.</p><p>Se uma ética amorosa influenciasse todas as políticas</p><p>públicas nas metrópoles e nas cidades, os indivíduos</p><p>convergiriam e planejariam programas voltados ao bem de todos.</p><p>O maravilhoso livro de Melody Chavis, Altars in the Street: A</p><p>Neighborhood Fights to Survive [Altares nas ruas: um bairro que</p><p>luta para sobreviver], conta a história de pessoas reais que se</p><p>unem apesar das diferenças de raça e classe</p><p>para melhorar o</p><p>ambiente onde vivem. Ela fala da perspectiva de uma mulher</p><p>branca que se muda com sua família para um bairro</p><p>predominantemente negro. Como alguém que adota uma ética</p><p>amorosa, Melody se une aos seus vizinhos para criar paz e amor</p><p>em seu ambiente. O trabalho dessas pessoas dá certo, mas é</p><p>minado pela falta de apoio das políticas públicas e da prefeitura.</p><p>Simultaneamente, ela também trabalha para ajudar prisioneiros</p><p>no corredor da morte. Amando sua comunidade em toda a sua</p><p>diversidade, Melody afirma: “Às vezes acho que venho tentando,</p><p>no corredor da morte e no meu bairro, obter algum controle em</p><p>relação à violência em minha vida. Quando criança, eu era</p><p>completamente indefesa em face da violência”. Seu livro mostra</p><p>as mudanças que uma ética amorosa pode trazer mesmo nas</p><p>comunidades mais problemáticas. Ele também registra as</p><p>consequências trágicas para a vida humana quando o terror e a</p><p>violência se tornam a norma aceita.</p><p>Quando pequenas comunidades organizam sua vida em torno</p><p>de uma lógica amorosa, todos os aspectos do dia a dia podem</p><p>ser proveitosos para todo mundo. Em sua obra em prosa, o poeta</p><p>Wendell Berry, do Kentucky, escreve eloquentemente sobre os</p><p>valores positivos que existem em comunidades rurais que</p><p>abraçam uma ética comunal e o compartilhamento de recursos.</p><p>Em Another Turn of the Crank [Mais um giro da manivela], Berry</p><p>expõe como os interesses dos grandes negócios levam ao</p><p>esfacelamento de comunidades rurais, nos lembrando que a</p><p>destruição está rapidamente se tornando a norma em todos os</p><p>tipos de comunidade. Ele nos encoraja a aprender com a vida de</p><p>pessoas que vivem em comunidades governadas por um espírito</p><p>de amor e comunhão. Compartilhando alguns dos valores</p><p>preservados pelos cidadãos dessas comunidades, ele afirma:</p><p>Eles são pessoas que têm e mantêm uma visão generosa e</p><p>sociável de autopreservação; não acreditam que podem</p><p>sobreviver e florescer conforme a regra de que o homem é o</p><p>lobo do homem; não acreditam que podem ter sucesso</p><p>derrotando ou destruindo ou vendendo ou esgotando tudo a</p><p>não ser a si mesmos. Eles duvidam que boas soluções</p><p>possam ser produzidas pela violência. Querem preservar o</p><p>que há de precioso na natureza da cultura humana e</p><p>transmitem isso para seus filhos […]. Eles veem que nenhuma</p><p>comunidade de afinidade pode ser definida pela ganância […].</p><p>Eles sabem que o trabalho deve ser necessário; deve ser bom;</p><p>deve ser satisfatório e dignificar as pessoas que o realizam; e</p><p>verdadeiramente útil e prazeroso para o povo em favor de</p><p>quem ele é feito.</p><p>Gosto de morar em cidades pequenas precisamente porque, em</p><p>sua maioria, elas costumam ser os lugares onde os princípios</p><p>básicos que sustentam uma ética amorosa existem e são os</p><p>padrões segundo os quais grande parte das pessoas tenta viver</p><p>sua vida. Na cidade pequena onde vivo (atualmente, apenas</p><p>parte do tempo), existe um espírito de vizinhança — de</p><p>companheirismo, cuidado e respeito. Esses mesmos valores</p><p>existiam nos bairros da cidade onde cresci. Embora eu passe a</p><p>maior parte do tempo em Nova York, vivo num prédio que</p><p>funciona como uma cooperativa, onde todos se conhecem. Nós</p><p>nos protegemos e alimentamos o nosso bem-estar. Nós nos</p><p>esforçamos para fazer de nossa casa um ambiente positivo para</p><p>todos. Todos concordamos que a integridade e o cuidado</p><p>melhoram a vida de todos nós. Tentamos viver pelos princípios</p><p>de uma ética amorosa.</p><p>Para vivermos nossa vida com base em princípios de uma</p><p>ética amorosa (demonstrando cuidado, respeito, conhecimento,</p><p>integridade e vontade de cooperar), temos de ser corajosos.</p><p>Aprender como encarar nossos medos é uma das formas de</p><p>abraçar o amor. Talvez nosso medo não vá embora, mas já não</p><p>ficará no caminho. Aqueles de nós que já escolheram adotar uma</p><p>ética amorosa, permitindo que ela governe e oriente o modo</p><p>como pensamos e agimos, sabemos que, ao deixar nossa luz</p><p>brilhar, atraímos e somos atraídos por outras pessoas que</p><p>também mantêm sua chama acesa. Não estamos sozinhos.</p><p>07.</p><p>ganância: simplesmente</p><p>ame</p><p>O desaparecimento da ganância e do ódio são o</p><p>fundamento da libertação. A libertação é “o indubitável</p><p>desprendimento do coração” — um entendimento tão</p><p>poderoso da verdade que não há como voltar atrás.</p><p>— Sharon Salzberg</p><p>Embora vivamos em contato com o próximo, em nossa</p><p>sociedade inúmeras pessoas se sentem alienadas, excluídas,</p><p>sozinhas. Isolamento e solidão são causas centrais da depressão</p><p>e do desespero. São, também, o resultado da vida numa cultura</p><p>em que as coisas recebem mais importância que as pessoas. O</p><p>materialismo cria um mundo de narcisismo, no qual o foco da</p><p>vida é apenas comprar e consumir. Em uma cultura narcísica, o</p><p>amor não pode desabrochar. A emergência da cultura do “eu” é</p><p>consequência direta da incapacidade de nosso país de pôr em</p><p>prática, de fato, a visão de democracia enunciada em nossa</p><p>Constituição e na Declaração de Direitos. Abandonados na</p><p>cultura do “eu”, consumimos e consumimos, sem pensar nos</p><p>outros. A ganância e a exploração se tornam a norma quando</p><p>uma ética de dominação prevalece. Elas trazem consigo</p><p>alienação e falta de amor. Uma intensa ausência emocional e</p><p>espiritual em nossa vida é o terreno perfeito para o cultivo da</p><p>avareza material e do consumo desenfreado. Em um mundo sem</p><p>amor, o desejo de conexão pode ser substituído pelo desejo de</p><p>possuir. Ao passo que as necessidades emocionais são difíceis</p><p>— frequentemente, impossíveis — de satisfazer, os desejos</p><p>materiais são mais fáceis de atender. Nossa nação caiu na</p><p>armadilha do narcisismo patológico, na esteira de guerras que</p><p>traziam recompensas econômicas enquanto enfraqueciam a</p><p>visão de liberdade e justiça que é essencial para sustentar a</p><p>democracia.</p><p>Atualmente, vivemos num mundo em que adolescentes</p><p>pobres estão dispostos a ferir e matar por um par de tênis ou</p><p>uma jaqueta de marca, mas isso não é consequência da</p><p>pobreza. Em situações extremas de miséria em outras épocas da</p><p>história de nosso país, seria impensável para os pobres</p><p>assassinarem alguém por um objeto de luxo. Embora fosse</p><p>comum roubar ou atacar alguém com o objetivo de conseguir</p><p>recursos — dinheiro, comida ou algo tão simples quanto um</p><p>casaco de inverno para se proteger do frio —, não havia um</p><p>sistema de valores estabelecido que tornasse uma vida menos</p><p>importante que o desejo material por um objeto supérfluo.</p><p>Em meados dos anos 1950, a maioria dos cidadãos dos</p><p>Estados Unidos, ricos ou pobres, sentia que se tratava do melhor</p><p>lugar para se viver porque era uma democracia, um lugar onde</p><p>os direitos humanos importavam. Essa forma de ver o país</p><p>sustentava seus cidadãos e servia como catalisador, fortalecendo</p><p>lutas pela libertação em nossa sociedade. No artigo “Chicken</p><p>Little, Cassandra and the Real Wolf: So Many Ways to Think</p><p>About the Future” [Chicken Little, Cassandra e o verdadeiro lobo:</p><p>muitas formas de pensar o futuro], Donella Meadows descreve a</p><p>importância de um ponto de vista visionário:</p><p>Uma visão articula um futuro que alguém deseja intensamente,</p><p>e faz isso com tanta clareza e de forma tão convincente que</p><p>evoca a energia, a concordância, a simpatia, a vontade</p><p>política, a criatividade, os recursos ou o que mais for</p><p>necessário para transformar essa visão em realidade.</p><p>A participação ativa dos Estado Unidos em guerras globais pôs</p><p>em questão seu compromisso com a democracia, tanto aqui</p><p>quanto em países estrangeiros.</p><p>Essa visão perdeu força na esteira da Guerra do Vietnã. Antes</p><p>da guerra, uma visão esperançosa do amor e da justiça havia</p><p>sido evocada com a luta pelos direitos civis, o movimento</p><p>feminista e a libertação sexual. Entretanto, no final dos anos</p><p>1970, depois do fracasso dos movimentos radicais por justiça</p><p>social que buscavam transformar o mundo num lugar</p><p>democrático, pacífico, onde os recursos pudessem ser</p><p>compartilhados e uma vida significativa se tornasse uma</p><p>possibilidade para todos, as pessoas pararam de falar de amor. A</p><p>perda de vidas no país e no estrangeiro havia criado abundância</p><p>econômica, mas deixado em seu rastro devastação e ausência.</p><p>Pediu-se aos estadunidenses que sacrificassem sua visão de</p><p>liberdade,</p><p>amor e justiça, pondo em seu lugar a adoração do</p><p>materialismo e do dinheiro. Essa visão de sociedade sustentou a</p><p>necessidade de guerras imperialistas e injustiça. Um grande</p><p>sentimento de desespero se abateu sobre nosso país quando os</p><p>líderes que haviam conduzido lutas por paz, justiça e amor foram</p><p>assassinados.</p><p>Psicologicamente, estávamos em desespero mesmo</p><p>enquanto o crescimento econômico criava empregos para</p><p>mulheres e homens de grupos antes marginalizados. Em vez de</p><p>buscar justiça na esfera pública, os indivíduos se voltaram para a</p><p>vida privada, procurando um lugar de consolo e escape.</p><p>Inicialmente, muitas pessoas se voltaram para suas famílias e</p><p>relacionamentos para reencontrar um senso de conexão e</p><p>estabilidade. Encarar um desamor desenfreado em casa criou</p><p>uma sensação incontrolável de quebra cultural. Os indivíduos</p><p>não apenas se desesperavam em relação à sua capacidade de</p><p>mudar o mundo, mas começavam a sentir um desespero imenso</p><p>quanto à sua capacidade de fazer mudanças positivas básicas no</p><p>tecido emocional de sua vida diária. A taxa de divórcios era o</p><p>principal indicador de que o casamento não era mais um abrigo</p><p>seguro. E o crescente conhecimento público de que a violência</p><p>doméstica e todas as formas de abuso infantil eram</p><p>disseminadas revelava claramente que a família patriarcal não</p><p>era capaz de oferecer refúgio.</p><p>Confrontadas com um universo emocional com o qual era</p><p>aparentemente impossível lidar, algumas pessoas adotaram uma</p><p>nova ética protestante do trabalho, convencidas de que o</p><p>sucesso da vida seria mensurado pela quantidade de dinheiro</p><p>que se ganhava e pelos bens que se podia comprar com esse</p><p>dinheiro. A boa vida não era mais encontrada na comunidade e</p><p>na conexão, mas na acumulação e na satisfação do desejo</p><p>hedonista e materialista. Seguindo essa mudança de valores, de</p><p>uma sociedade orientada para as pessoas para uma sociedade</p><p>orientada para as coisas, os ricos e os famosos, especialmente</p><p>as estrelas de cinema e os músicos, começaram a ser vistos</p><p>como os únicos ícones culturais relevantes. Os líderes políticos e</p><p>ativistas visionários estavam mortos. De repente, não era mais</p><p>importante incorporar uma dimensão ética à vida do trabalho;</p><p>fazer dinheiro era o objetivo, não importa o meio. A prevalência</p><p>da corrupção minou qualquer chance de que uma ética amorosa</p><p>ressurgisse e restaurasse a esperança.</p><p>No final dos anos 1970, entre as pessoas privilegiadas, a</p><p>adoração do dinheiro se expressava na aceitação da corrupção e</p><p>na transformação da ostentação do luxo material em regra. Para</p><p>muitas pessoas, a aceitação da corrupção como a nova ordem</p><p>do dia em nosso país começou com a exposição inédita da</p><p>desonestidade presidencial e da falta de comportamento ético e</p><p>moral na Casa Branca. Essa ausência de ética foi minimizada</p><p>pelos representantes do governo, usando a segurança nacional e</p><p>o domínio global como justificativas para o apoio de grandes</p><p>empresas à expansão do imperialismo. Isso coincidiu nitidamente</p><p>com o declínio da influência da religião institucionalizada, que até</p><p>então havia fornecido orientações morais. A igreja e os templos</p><p>se tornaram lugares onde uma ética materialista era respaldada e</p><p>racionalizada.</p><p>Entre os pobres e outras subclasses, a adoração do dinheiro</p><p>se tornou mais evidente com o crescimento inédito do comércio</p><p>de drogas, um dos raros lugares onde o capitalismo funcionava</p><p>bem para uns poucos indivíduos. O dinheiro rápido, geralmente</p><p>obtido em grandes quantidades com o tráfico de drogas, permitiu</p><p>que o pobre satisfizesse os mesmos desejos materiais que o rico.</p><p>Ainda que os objetos desejados variassem, a satisfação em</p><p>adquirir e consumir era a mesma. A ganância era a ordem do dia.</p><p>Espelhando-se na cultura capitalista dominante, uns poucos</p><p>indivíduos em comunidades pobres prosperaram enquanto a</p><p>vasta maioria sofria com intermináveis necessidades insatisfeitas.</p><p>Imagine uma mãe vivendo na pobreza, que sempre ensinou aos</p><p>filhos a diferença entre certo e errado, que lhes ensinou a</p><p>valorizar a honestidade porque queria lhes dar um universo moral</p><p>e ético, e que de repente aceita que um filho venda drogas</p><p>porque isso traz para casa recursos financeiros para despesas</p><p>essenciais e supérfluas. Seus valores éticos são erodidos pela</p><p>intensidade do desejo e da escassez. No entanto, ela não se vê</p><p>mais na contramão da cultura de consumo em que vive; ela se</p><p>conectou com a cultura de consumo, passando a ser orientada</p><p>por suas demandas.</p><p>O amor não é algo em que ela pense. Sua vida tem sido</p><p>caracterizada por falta de amor. Ela descobriu que a vida se torna</p><p>mais fácil quando ela endurece o coração e volta sua atenção a</p><p>objetivos mais alcançáveis — conseguir abrigo e comida, fazer o</p><p>dinheiro durar até o fim do mês e encontrar maneiras de</p><p>satisfazer os desejos por pequenos luxos materiais. Pensar no</p><p>amor pode simplesmente lhe causar dor. Ela e inúmeras</p><p>mulheres como ela já sofreram o bastante. Ela pode até se voltar</p><p>para o vício para experimentar o prazer e a satisfação que nunca</p><p>encontrou quando buscava o amor.</p><p>A disseminação do vício tanto em comunidades pobres como</p><p>nas ricas está ligada ao nosso desejo psicótico pelo consumo</p><p>material. Ele nos mantém incapazes de amar. A fixação em</p><p>desejos e necessidades, estimulada pelo consumismo, promove</p><p>um estado psicológico de interminável anseio. Isso leva a uma</p><p>angústia de espírito e a um tormento tão intensos que as</p><p>substâncias entorpecentes oferecem libertação e alívio, embora</p><p>tragam em sua esteira o problema do vício. Milhões de cidadãos</p><p>dos Estados Unidos são viciados em álcool e drogas lícitas e</p><p>ilegais. Nas comunidades pobres, onde o vício é a regra, não há</p><p>uma cultura de reabilitação. Os pobres que são viciados e que</p><p>não dispõem de meios para manter o vício são capturados por</p><p>sofrimentos físicos e psicológicos imensos. Viciados querem se</p><p>livrar da dor; eles não estão pensando no amor.</p><p>Uma leitura útil, Love and Addiction [Amor e vício], de Stanton</p><p>Peele, apresenta um ponto de vista perspicaz ao afirmar que o</p><p>“vício não tem a ver com a capacidade de se relacionar”. O vício</p><p>torna o amor impossível. A maioria dos adictos está mais</p><p>preocupada em conseguir e usar a sua droga, seja ela álcool,</p><p>cocaína, heroína, sexo ou compras. Portanto, o vício é ao mesmo</p><p>tempo causa e consequência do desamor amplamente difundido.</p><p>Somente a droga é sagrada para o viciado. Relações de</p><p>intimidade e proximidade são destruídas conforme o adicto se</p><p>envolve em uma busca gananciosa por satisfação. A ganância</p><p>caracteriza a natureza dessa busca, porque ela é infinita; o</p><p>desejo é contínuo e nunca pode ser totalmente satisfeito.</p><p>É claro que a devastação do vício é mais inegavelmente óbvia</p><p>na vida dos pobres e necessitados porque eles não têm meios</p><p>para ocultar efetivamente o problema, como os viciados</p><p>privilegiados, nem acesso a programas de reabilitação. Quando o</p><p>julgamento de O. J. Simpson ocupava o noticiário nacional, havia</p><p>pouco debate sobre o papel desempenhado pelo abuso de</p><p>drogas ao facilitar o distanciamento emocional numa família já</p><p>disfuncional. Ao passo que se destacava a violência doméstica, e</p><p>todos concordam que não se tratou de um comportamento</p><p>aceitável, o abuso de substâncias não recebeu atenção. Não era</p><p>visto como um fator importante, que havia destruído as condições</p><p>necessárias para interações emocionais positivas.</p><p>Por exemplo, não era aceitável que alguém falasse com</p><p>compaixão (de uma maneira que não culpasse a vítima) sobre a</p><p>possibilidade de Nicole Simpson ter mantido a si e a seus filhos</p><p>num ambiente perigoso, que punha sua vida em risco, em parte</p><p>porque não estava disposta a sacrificar seu apego a um estilo de</p><p>vida superficialmente glamouroso entre os ricos e famosos. Nos</p><p>bastidores, quando não têm medo de serem vistas como</p><p>politicamente incorretas, mulheres que se relacionam com</p><p>homens abusivos ricos e poderosos falam com desenvoltura</p><p>sobre seu vício por poder e riqueza. Homens e mulheres</p><p>permanecem em relacionamentos disfuncionais, sem amor,</p><p>quando isso é oportuno do ponto de vista material.</p><p>Por todo o país, a ganância motiva os indivíduos</p><p>a se</p><p>colocarem em situações que arriscam sua vida. Nossas prisões</p><p>estão cheias de pessoas que cometeram crimes motivados pela</p><p>ganância, geralmente pelo desejo por dinheiro. Ao passo que</p><p>esse desejo é a resposta natural de qualquer um que tenha</p><p>abraçado totalmente os valores do consumismo, quando esses</p><p>indivíduos agridem os outros em sua busca pela riqueza, somos</p><p>encorajados a ver seu comportamento como anormal. Somos</p><p>todos encorajados a acreditar que eles não são como nós, mas</p><p>estudos mostram que muitas pessoas estão dispostas a mentir</p><p>para obter vantagens financeiras. A maioria das pessoas é</p><p>tentada por desejos de consumir infinitamente ou de tentar</p><p>adquirir bens de luxo de qualquer maneira. Nos últimos anos, o</p><p>apoio público aos jogos de azar, em loterias e cassinos,</p><p>aumentou a consciência de que o desejo por dinheiro pode ser</p><p>viciante. Porém, nunca aparece no noticiário nacional o fato de</p><p>que grandes quantidades de trabalhadores e pessoas de classe</p><p>média apostam salários obtidos com trabalho duro na esperança</p><p>de ficarem ricos. Muitos desses laboriosos cidadãos mentem e</p><p>traem outros integrantes da família para sustentar seu vício.</p><p>Mesmo que não sejam detidos ou presos, seu comportamento</p><p>disfuncional mina a confiança e o cuidado em suas famílias. Eles</p><p>têm mais em comum com prisioneiros que arriscam tudo na</p><p>esperança de fazer dinheiro fácil do que com seus familiares que</p><p>desejam que as conexões amorosas sejam mais importantes do</p><p>que o anseio por sucesso material.</p><p>Em As sete leis do dinheiro, Michael Phillips chama a atenção</p><p>para o fato de que a maioria dos prisioneiros que conheceu,</p><p>presos por roubar tentando “ficar ricos rapidamente”, eram</p><p>indivíduos inteligentes, criativos, que poderiam ter alcançado o</p><p>conforto material trabalhando. Ganhar dinheiro com trabalho</p><p>diário teria levado tempo. Não por acaso, a combinação de</p><p>desejo pela riqueza material e desejo por satisfação imediata é</p><p>um sinal de que o materialismo se tornou viciante. A necessidade</p><p>de gratificação instantânea é um componente da ganância.</p><p>Essa mesma política da ganância está em jogo quando as</p><p>pessoas buscam o amor. Com frequência, elas querem</p><p>satisfação imediata. O amor verdadeiro raramente é um espaço</p><p>emocional em que as necessidades são recompensadas</p><p>instantaneamente. Para conhecer o amor verdadeiro, temos que</p><p>investir tempo e compromisso. Como John Welwood nos lembra</p><p>em Journey of the Heart: The Path of Conscious Love [A jornada</p><p>do coração: o caminho do amor consciente], “sonhar que o amor</p><p>nos salvará, que resolverá todos os nossos problemas ou que</p><p>nos dará um estado de felicidade estável ou de segurança</p><p>apenas nos mantém estagnados num devaneio fantasioso,</p><p>enfraquecendo o verdadeiro poder do amor — que é nos</p><p>transformar”. Muitas pessoas querem que o amor funcione como</p><p>uma droga, dando-lhes um êxtase imediato e prolongado. Elas</p><p>não querem fazer nada, apenas receber passivamente uma</p><p>sensação boa. Na cultura patriarcal, os homens são</p><p>especialmente inclinados a ver o amor como algo que deveriam</p><p>receber sem esforço. Frequentemente, eles não querem fazer o</p><p>trabalho que o amor demanda. Quando a prática do amor nos</p><p>convida a entrar num espaço de felicidade potencial, que é ao</p><p>mesmo tempo um espaço de despertar crítico e dor, muitos de</p><p>nós viramos as costas para o amor.</p><p>Toda a ênfase em relacionamentos disfuncionais difundida em</p><p>nossa sociedade poderia facilmente levar à suposição de que</p><p>somos uma nação comprometida em acabar com essa disfunção,</p><p>em criar uma cultura onde o amor possa florescer. A verdade é</p><p>que somos um país que normaliza a disfunção. Quanto mais se</p><p>põe atenção em laços disfuncionais, mais a mensagem de que</p><p>famílias são todas um pouco ferradas se torna o senso comum,</p><p>mais popular se torna a ideia de que famílias são assim mesmo.</p><p>Assim como no consumo hedonista, somos encorajados a</p><p>acreditar que os excessos da família são normais, e que anormal</p><p>é acreditar que alguém possa ter uma família funcional, amorosa.</p><p>Esse é o resultado de se viver numa cultura em que a política</p><p>da ganância é normalizada. A mensagem que recebemos é de</p><p>que todo mundo quer ter mais dinheiro para comprar mais coisas,</p><p>de modo que não é problemático se mentirmos e enganarmos</p><p>um pouco para passar na frente. Em contraste com o amor, os</p><p>desejos por objetos materiais podem ser satisfeitos</p><p>instantaneamente se tivermos dinheiro ou cartão de crédito à</p><p>mão, ou mesmo se estivermos dispostos a assinar alguns papéis</p><p>para conseguir o que queremos agora e pagar mais caro depois.</p><p>Ao mesmo tempo, quando se trata das questões do coração,</p><p>somos encorajados a tratar os parceiros com dureza, como se</p><p>fossem objetos que podemos pegar, usar e então descartar à</p><p>vontade, tomando como único critério a satisfação de nossos</p><p>desejos individuais.</p><p>Quando o consumo ganancioso é a ordem do dia, a</p><p>desumanização se torna aceitável. Assim, tratar as pessoas</p><p>como objetos não é um comportamento apenas plausível, mas</p><p>necessário. É a cultura da troca, a tirania dos valores do</p><p>mercado. Esses valores orientam as atitudes em relação ao</p><p>amor. O cinismo em relação ao amor leva jovens adultos a</p><p>acreditar que não há amor a ser encontrado e que os</p><p>relacionamentos são necessários apenas na medida em que</p><p>satisfazem desejos. Quantas vezes ouvimos alguém dizer: “Bem,</p><p>se essa pessoa não está satisfazendo as suas necessidades,</p><p>você deveria se livrar dela”? Relacionamentos são tratados como</p><p>copos descartáveis. São todos iguais. São dispensáveis. Se um</p><p>não funciona, deixe para lá, jogue fora, arrume outro. Quando</p><p>essa é a lógica predominante, laços de compromisso (incluindo</p><p>casamentos) não podem durar. E amizades ou comunidades</p><p>amorosas não podem ser valorizadas e mantidas.</p><p>A maioria de nós não sabe ao certo o que fazer para proteger</p><p>e fortalecer os laços carinhosos quando nossas necessidades</p><p>autocentradas não são atendidas. A maioria das pessoas</p><p>gostaria de poder encontrar o amor onde está, na vida e na</p><p>relação que escolheu, mas sente que não conta com estratégias</p><p>úteis para sustentar esses laços. Elas então se voltam para a</p><p>mídia à procura de respostas. Cada vez mais, a grande mídia é o</p><p>principal veículo para a promoção e o reforço da ganância;</p><p>oferece-se pouca informação sobre o estabelecimento e a</p><p>manutenção de relacionamentos significativos. Caso o desejo de</p><p>acumular já não esteja presente no espectador de televisão ou</p><p>cinema, ele será implantado por imagens que bombardeiam a</p><p>psique com a mensagem de que consumir com os outros, e não</p><p>se conectar, deveria ser o nosso objetivo. Hoje em dia, vamos ao</p><p>cinema e primeiro temos que assistir aos comerciais. O estado</p><p>de entrega relaxado e receptivo que gostamos de reservar para o</p><p>prazer de entrar no espaço estético de um filme numa sala</p><p>escura agora é entregue à publicidade, onde nossos sentidos e</p><p>sensibilidades são assaltados contra a nossa vontade.</p><p>A avareza é acertadamente considerada um “pecado capital”</p><p>porque desgasta os valores morais que nos encorajam a nos</p><p>importar com o bem comum. A ganância viola o espírito de</p><p>conexão e comunidade que é natural para a sobrevivência</p><p>humana. Ela destrói o reconhecimento individual das</p><p>necessidades e preocupações de todos, substituindo essa</p><p>consciência por um egocentrismo perigoso. O narcisismo</p><p>saudável (a autoaceitação e a percepção do próprio valor, pedras</p><p>fundamentais do amor-próprio) foi substituído por um narcisismo</p><p>patológico (em que apenas o “eu” importa), que justifica qualquer</p><p>ação que permita a satisfação de desejos. O desejo de se</p><p>sacrificar em favor dos outros, sempre presente onde há amor, é</p><p>aniquilado pela ganância. Sem dúvidas isso explica a disposição</p><p>dos Estados Unidos de privar os cidadãos pobres de serviços</p><p>sociais bancados pelo governo enquanto enormes somas de</p><p>dinheiro abastecem a crescente cultura do imperialismo violento.</p><p>Os profetas que lucram com a ganância nunca estão satisfeitos;</p><p>para este país, não é o bastante ser consumido por uma política</p><p>gananciosa: ela precisa se tornar o modo de vida natural em</p><p>escala global.</p><p>A generosidade e a caridade militam contra a proliferação da</p><p>avareza, seja na forma de uma gentileza para um vizinho,</p><p>criando-se um sistema progressivo de distribuição de trabalho,</p><p>seja apoiando programas de bem-estar social financiados pelo</p><p>Estado. Quando a política da ganância se torna uma norma</p><p>cultural, todos os atos de caridade são vistos equivocadamente</p><p>como suspeitos e são representados como demonstrações de</p><p>fraqueza. Como consequência, os cidadãos de nosso país se</p><p>tornam menos caridosos a cada dia, defendendo com arrogância</p><p>políticas que os beneficiam individualmente, que protegem os</p><p>interesses dos ricos, alegando que os pobres e necessitados não</p><p>trabalharam duro o suficiente. Eu fiquei chocada ao ouvir sujeitos</p><p>que herdaram fortunas na infância se posicionarem contra o</p><p>compartilhamento de recursos, afirmando que pessoas</p><p>necessitadas deveriam trabalhar pelo dinheiro para que apreciem</p><p>o seu valor. Fortunas e/ou recursos materiais substanciais</p><p>herdados raramente são abordados pela mídia, porque aqueles</p><p>que os recebem não desejam validar a ideia de que dinheiro</p><p>recebido sem ser resultado de trabalho duro é algo benéfico. A</p><p>forma como aceitam e usam esse dinheiro para fortalecer sua</p><p>autossuficiência econômica expõe a realidade de que trabalhar</p><p>duro raramente é o meio pelo qual muitos de nós têm acesso a</p><p>recursos materiais que possibilitam a riqueza. Uma das ironias da</p><p>cultura da ganância é que as pessoas que mais lucram com</p><p>ganhos que lhes pertencem sem terem trabalhado para obtê-los</p><p>são as mais enfáticas na insistência de que os pobres e a classe</p><p>trabalhadora só podem valorizar os recursos materiais obtidos</p><p>por meio do trabalho árduo. É claro que eles estão apenas</p><p>estabelecendo um sistema de crenças que protege seus</p><p>interesses de classe e reduz sua responsabilidade com aqueles</p><p>que não têm privilégios.</p><p>Marianne Williamson, no livro The Healing of America [A cura</p><p>dos Estados Unidos], aborda o cinismo disseminado em relação</p><p>ao compartilhamento de recursos, que ameaça o bem-estar</p><p>espiritual de nossa nação. Ela argumenta:</p><p>Há tanta injustiça nos Estados Unidos e tal conspiração para</p><p>que não se fale sobre isso; e tanto sofrimento e muita esquiva</p><p>para que não a notemos. Dizem-nos que esses problemas são</p><p>secundários ou que seria muito custoso consertá-los — como</p><p>se o dinheiro fosse o mais importante. A ganância é</p><p>considerada legítima agora, enquanto o amor fraternal não é.</p><p>Embora Williamson seja uma guru new age, sua disposição</p><p>corajosa de falar sobre o inaceitável não reduziu sua</p><p>popularidade: a maioria dos leitores apenas decidiu ignorar esse</p><p>livro em particular. Sem negar que é privilegiada, ela admoesta a</p><p>si própria e a nós por não compartilharmos a riqueza.</p><p>Todo mundo acha difícil resistir aos ditames da ganância.</p><p>Desapegar-se de desejos materiais pode nos levar a adentrar o</p><p>espaço onde nossos desejos emocionais estão expostos.</p><p>Quando entrevistei a famosa rapper Lil’ Kim, achei fascinante que</p><p>ela não tivesse interesse pelo amor. Ainda que falasse</p><p>articuladamente a respeito da falta de amor em sua vida, o</p><p>assunto que mais recebia sua atenção era ganhar dinheiro. Saí</p><p>da nossa conversa admirada com o fato de que uma jovem</p><p>mulher negra, oriunda de um lar problemático, sem o ensino</p><p>médio completo, pudesse lutar contra todas as espécies de</p><p>empecilhos e acumular riquezas materiais, mas não ter</p><p>esperanças de que conseguiria superar as barreiras que a</p><p>impediam de saber como dar e receber amor.</p><p>A cultura da ganância valida e legitima a adoração que Lil’</p><p>Kim tem pelo dinheiro; não está nem um pouco interessada em</p><p>seu crescimento emocional. Quem liga se ela vai conhecer o</p><p>amor? Infelizmente, como muitos estadunidenses, ela acredita</p><p>que a busca e a obtenção de riqueza compensarão toda a</p><p>ausência emocional. Como muitos cidadãos de nosso país, ela</p><p>não presta muita atenção às mensagens da mídia que nos falam</p><p>sobre o sofrimento emocional dos ricos. Se o dinheiro realmente</p><p>compensasse a perda e o desamor, os ricos seriam as pessoas</p><p>mais felizes do planeta. Em vez disso, faríamos bem ao lembrar</p><p>outra vez da letra profética cantada pelos Beatles: “Money can’t</p><p>buy me love”.7</p><p>Ironicamente, os ricos que se tornam mais gananciosos e</p><p>superprotetores de suas riquezas estão cada vez mais tão</p><p>eternamente estressados e insatisfeitos quanto os pobres</p><p>gananciosos que sofrem de desejos intermináveis. Os ricos</p><p>nunca estão satisfeitos; eles não conseguem se contentar.</p><p>Porém, todo mundo quer ser como os ricos. Em Freedom of</p><p>Simplicity: Finding Harmony in a Complex World [A liberdade da</p><p>simplicidade: encontrando harmonia em um mundo complexo],</p><p>Richard Foster observa:</p><p>Pense na miséria que entra em nossa vida por causa de nossa</p><p>incansável ganância corrosiva. Mergulhamos em dívidas</p><p>imensas e então assumimos dois ou três empregos para nos</p><p>mantermos acima da linha d’água. Desenraizamos nossas</p><p>famílias com mudanças desnecessárias para que possamos</p><p>ter uma casa com mais prestígio. Acumulamos e acumulamos,</p><p>e nunca temos o suficiente. E o mais destrutivo de tudo:</p><p>nossos carros chamativos e eventos esportivos e piscinas nos</p><p>quintais têm a capacidade de desviar grande parte dos nossos</p><p>interesses dos direitos civis, da pobreza das cidades do</p><p>interior ou das multidões passando fome na Índia. A ganância</p><p>sempre dá um jeito de cortar os laços da compaixão.</p><p>Na verdade, ignoramos as massas famintas em nossa</p><p>sociedade, as 38 milhões de pessoas pobres cujas vidas são a</p><p>evidência do fracasso de nosso país em compartilhar recursos de</p><p>forma caridosa e igualitária. A adoração do dinheiro leva a um</p><p>endurecimento do coração. E isso pode levar qualquer um de nós</p><p>a justificar, ativa ou passivamente, a exploração e a</p><p>desumanização dos outros e de nós mesmos.</p><p>Bastante se tem dito sobre o fato de que muitos dos radicais</p><p>dos anos 1960 se tornaram capitalistas selvagens, lucrando com</p><p>o sistema que antes criticavam e queriam destruir. Mas ninguém</p><p>assume a responsabilidade pela mudança de valores que fez a</p><p>cultura da paz e do amor se voltar para uma política de lucro e</p><p>poder. Essa mudança aconteceu porque o amor livre que</p><p>florescia em enclaves utópicos de comunidades hippies, onde</p><p>todos eram jovens e despreocupados, não se enraizou na vida</p><p>diária de trabalhadores comuns e pessoas aposentadas. Jovens</p><p>progressistas comprometidos com justiça social e que achavam</p><p>fácil apoiar políticas radicais quando viviam no limite, à margem,</p><p>não quiseram fazer o trabalho duro de mudar e reorganizar nosso</p><p>sistema existente de maneiras que reforçassem os valores da</p><p>paz e do amor, da democracia e da justiça. Eles caíram em</p><p>desespero. E esse desespero fez com que se rendessem à</p><p>ordem social existente, o único lugar de conforto.</p><p>Não demorou muito para essa geração descobrir que amava o</p><p>conforto material mais do que a justiça. Uma coisa era passar</p><p>alguns anos sem conforto lutando por justiça, por direitos civis</p><p>para pessoas não brancas e mulheres de todas as raças, mas</p><p>outra bem diferente era considerar uma vida inteira em que se</p><p>pudesse passar necessidade material ou ser obrigado a</p><p>compartilhar recursos. Quando muitos dos radicais e/ou hippies</p><p>que se rebelaram contra o excesso de privilégio começaram a</p><p>criar seus filhos, queriam que tivessem acesso aos mesmos</p><p>privilégios materiais que tiveram — assim como o luxo de se</p><p>rebelar contra eles; queriam que seus filhos estivessem seguros</p><p>em termos materiais. Ao mesmo tempo, muitos dos radicais e/ou</p><p>hippies que vinham de contextos marcados por necessidades</p><p>materiais também estavam ansiosos para encontrar um mundo</p><p>de abundância material que pudesse sustentá-los. Todos temiam</p><p>que, se continuassem praticando uma visão de comunalismo, de</p><p>compartilhamento de recursos, teriam de viver com menos.</p><p>Ultimamente, tenho me sentado em mesas de jantar com</p><p>comidas e bebidas sofisticadas, desalentada enquanto ouço</p><p>radicais reformados fazerem piada com o fato de que, anos atrás,</p><p>nunca imaginariam que se tornariam “liberais nos costumes e</p><p>conservadores na economia”, pessoas que querem acabar com</p><p>políticas de bem-estar social enquanto apoiam grandes</p><p>empresas. Williamson observa com perspicácia:</p><p>A reação</p><p>contra o bem-estar social nos Estados Unidos hoje</p><p>não é realmente uma reação contra o abuso de serviços</p><p>sociais; é um ataque contra a compaixão na esfera pública. Ao</p><p>passo que os Estados Unidos estão cheios de pessoas que</p><p>policiariam nossa moral privada, há pouquíssimo</p><p>questionamento de nossa moral social. Estamos entre os</p><p>países mais ricos da Terra, mas gastamos uma quantia ínfima</p><p>com nossos pobres em comparação com o que todas as</p><p>outras nações ocidentais industrializadas gastam. Um quinto</p><p>das crianças dos Estados Unidos vive na pobreza. Metade das</p><p>crianças afro-estadunidenses vive na pobreza. Nós somos a</p><p>única nação ocidental industrializada que não tem sistema de</p><p>saúde universal.</p><p>Essas são as verdades que ninguém quer encarar. Muitos</p><p>cidadãos de nosso país temem adotar uma ética de compaixão</p><p>porque isso ameaça a sua segurança. Sob o efeito de uma</p><p>lavagem cerebral que os fez acreditar que só podem estar</p><p>seguros se tiverem mais do que o próximo, eles acumulam e</p><p>continuam a se sentir inseguros, porque sempre existe alguém</p><p>que acumulou mais.</p><p>•••</p><p>Todos nós estamos observando o aumento da desigualdade</p><p>entre ricos e pobres, entre os que têm e os que não têm. Quem</p><p>possui privilégios de classe vive em bairros onde a riqueza e a</p><p>abundância são expostas explicitamente e celebradas.</p><p>Entretanto, o custo oculto dessa riqueza não é aparente. Nós não</p><p>precisamos contemplar o sofrimento de tantos para que poucos</p><p>possam viver num mundo de luxo excessivo. Uma vez, perguntei</p><p>a um homem rico, que havia alcançado aquela posição não havia</p><p>muito, de que ele mais gostava em sua nova situação. Ele disse</p><p>que gostava de ver o que as pessoas eram capazes de fazer por</p><p>dinheiro, como o dinheiro podia transformá-las e fazer com que</p><p>violassem os seus valores. Ele personificava a cultura da</p><p>ganância. Seu prazer em ser rico estava enraizado não apenas</p><p>no desejo de ter mais que os outros, mas de usar esse poder</p><p>para degradá-los e humilhá-los. Para manter e satisfazer a</p><p>ganância, é preciso apoiar a dominação. E um mundo de</p><p>dominação sempre é um mundo sem amor.</p><p>•••</p><p>Todos nós estamos vulneráveis. Todos somos tentados. Mesmos</p><p>aqueles entre nós que estão comprometidos com uma ética</p><p>amorosa às vezes são tentados por desejos gananciosos. São</p><p>tempos perigosos. Não é apenas o corrupto que fica balançado</p><p>pela ganância. Indivíduos com boas intenções e coração terno</p><p>podem ser arrastados ao ter um acesso sem precedentes ao</p><p>poder e ao privilégio. Quando nosso presidente explora seu</p><p>poder e seduz uma jovem que trabalha para o governo, com o</p><p>consentimento dela, ele expressa publicamente sua ganância.8</p><p>Suas ações revelam disposição de arriscar tudo que ele</p><p>considera de valor pela satisfação de um prazer hedonista. O fato</p><p>de muitos cidadãos de nosso país terem considerado que esse</p><p>mau uso do poder era apenas o jeito como as coisas são — e</p><p>que ele apenas teve o azar de ser pego — é mais uma evidência</p><p>de que a política da ganância é tolerada. Essa posição</p><p>exemplifica a mentalidade gananciosa que ameaça consumir</p><p>nossa capacidade de amar e, com ela, nossa capacidade de nos</p><p>sacrificarmos por aqueles que amamos. Ao mesmo tempo, a</p><p>jovem envolvida manipula fatos e detalhes e, em última instância,</p><p>se prostitui ao vender sua história por ganhos materiais, porque</p><p>ela cobiça a fama e o dinheiro, e a sociedade tolera esse</p><p>esquema fique-rica-rápido. Sua ganância é ainda mais intensa,</p><p>porque ela também quer ser vista como vítima. Com a ousadia</p><p>de qualquer vigarista trabalhando com o vício capitalista pela</p><p>fantasia, ela tenta reescrever o roteiro de sua relação consensual</p><p>de prazer para que pareça uma história de amor. Sua esperança</p><p>era que todos fossem seduzidos pela fantasia e ignorassem o</p><p>fato de que mentira, traição e falta de cuidado com os</p><p>sentimentos dos outros nunca podem ser um lugar onde o amor</p><p>desabrocha. Isso não é uma história de amor. É uma</p><p>dramatização pública da política da ganância em andamento,</p><p>uma ganância tão intensa que destrói o amor.</p><p>A ganância subordina o amor e a compaixão; viver com</p><p>simplicidade abre espaço para eles. Viver com simplicidade é a</p><p>principal forma de resistir à ganância diariamente. Pessoas de</p><p>todo o mundo estão cada vez mais cientes da importância de</p><p>viver com simplicidade e compartilhar recursos. Embora</p><p>globalmente o comunismo tenha sofrido uma derrota política, as</p><p>políticas do comum continuam importantes. Todos nós podemos</p><p>resistir à tentação da ganância. Podemos trabalhar para</p><p>transformar políticas públicas. Podemos desligar a televisão.</p><p>Podemos demonstrar respeito ao amor. Para salvar o nosso</p><p>planeta, podemos parar com o desperdício inconsequente.</p><p>Podemos reciclar e apoiar estratégias de sobrevivência</p><p>ecologicamente avançadas. Podemos celebrar e honrar o</p><p>comunalismo e a interdependência, compartilhando recursos.</p><p>Todos esses gestos mostram respeito e gratidão pela vida.</p><p>Quando valorizamos o adiamento da recompensa e assumimos</p><p>responsabilidade por nossas ações, simplificamos nosso</p><p>universo emocional. Viver com simplicidade faz com que amar</p><p>seja simples. A escolha por viver com simplicidade</p><p>necessariamente intensifica a nossa capacidade de amar. É</p><p>como aprendemos a praticar a compaixão, afirmando todos os</p><p>dias nossa conexão com uma comunidade mundial.</p><p>7. Em tradução livre: “O dinheiro não pode me comprar amor”. [�.�.]</p><p>8. Em 1998, veio a público a relação sexual que o presidente dos Estados Unidos, Bill</p><p>Clinton, manteve com a estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky durante 1995 e</p><p>1997. A revelação tornou-se um escândalo internacional que motivou um pedido de</p><p>impeachment, do qual Clinton, que negava ter tido relações com Lewinsky, foi</p><p>absolvido. [�.�.]</p><p>08.</p><p>comunidade:</p><p>uma comunhão</p><p>amorosa</p><p>Uma comunidade não pode florescer em uma vida</p><p>dividida. Muito antes de uma comunidade assumir uma</p><p>forma e uma aparência externas, ela deve estar</p><p>presente como uma semente num self íntegro: apenas</p><p>se estivermos em comunhão com nós mesmos</p><p>poderemos encontrar a comunidade com os outros.</p><p>— Parker Palmer</p><p>Para garantir a sobrevivência humana em todos os lugares do</p><p>mundo, mulheres e homens se organizam em comunidades.</p><p>Comunidades alimentam a vida — não as famílias nucleares nem</p><p>o “casal”, e tampouco a dureza individualista. Não há lugar</p><p>melhor para aprender a arte do amor que numa comunidade. M.</p><p>Scott Peck começa o livro The Different Drum: Community</p><p>Making and Peace [A batida diferente: a construção de</p><p>comunidades e a paz] com uma declaração profunda: “Nas</p><p>comunidades e através delas reside a salvação do mundo”. Peck</p><p>define comunidade como a reunião de um grupo de indivíduos</p><p>que aprenderam como se comunicar honestamente uns com</p><p>os outros, cujos relacionamentos são mais profundos que suas</p><p>máscaras de compostura, e que desenvolveram o</p><p>compromisso significativo de “alegrar-se juntos, lamentar</p><p>juntos” e de “deleitar-se uns nos outros, transformar em suas</p><p>as condições dos outros”.</p><p>Todos nós nascemos num mundo de comunidade. Raramente,</p><p>talvez nunca, uma criança vem ao mundo em isolamento, com</p><p>apenas um ou dois cuidadores. Crianças vêm ao mundo</p><p>cercadas pela possibilidade de comunidade. Família, médicos,</p><p>enfermeiros, parteiras e mesmos admiradores estranhos</p><p>compõem esse campo de conexões, umas mais íntimas que as</p><p>outras.</p><p>Em nossa sociedade, boa parte das discussões sobre “valores</p><p>familiares” destacam a família nuclear, constituída por mãe, pai e</p><p>preferencialmente um ou dois filhos. Nos Estados Unidos, essa</p><p>unidade é apresentada como a organização mais importante e</p><p>desejável para a criação dos filhos, aquela que garantirá o bem-</p><p>estar ideal de todos. Trata-se, é claro, de uma imagem fantasiosa</p><p>de família. Dificilmente alguém em nossa sociedade vive num</p><p>ambiente como esse. Mesmo indivíduos criados em famílias</p><p>nucleares geralmente as experimentam simplesmente como uma</p><p>pequena unidade no interior de uma unidade maior formada pela</p><p>família estendida. Juntos, o capitalismo e o patriarcado, como</p><p>estruturas de dominação, têm feito hora extra para destruir essa</p><p>unidade mais ampla de parentesco. Substituir a comunidade da</p><p>família por</p><p>uma unidade autocrática menor e mais privada ajudou</p><p>a aumentar a alienação e a possibilidade de abusos de poder.</p><p>Isso deu controle absoluto ao pai e controle secundário, sobre as</p><p>crianças, à mãe. Com o estímulo ao afastamento das famílias</p><p>nucleares da família estendida, mulheres foram obrigadas a se</p><p>tornar mais dependentes de um homem, e as crianças, mais</p><p>dependentes de uma única mulher. É essa dependência que se</p><p>tornou e continua sendo o solo fértil para os abusos de poder.</p><p>O fracasso da família nuclear patriarcal tem sido amplamente</p><p>documentado. Frequentemente exposta como disfuncional, como</p><p>um lugar de caos emocional, negligência e abuso, apenas</p><p>aqueles em negação continuam a insistir que esse é o melhor</p><p>ambiente para educar crianças. Embora eu não queira sugerir</p><p>que as famílias estendidas não sejam também propensas a ser</p><p>disfuncionais, em virtude de seu tamanho e da inclusão de</p><p>parentes sem laços consanguíneos (isto é, indivíduos que</p><p>passam a integrar a família pelo casamento), elas são diversas e,</p><p>portanto, têm mais chances de incluir a presença de alguns</p><p>indivíduos sãos e amorosos.</p><p>Quando comecei a falar publicamente sobre minha família</p><p>disfuncional, minha mãe se enfureceu. Para ela, minhas</p><p>realizações eram um sinal de que eu não poderia ter sofrido</p><p>“tanto assim”. No entanto, sei que sobrevivi e prosperei, apesar</p><p>das dores da minha infância, precisamente porque havia</p><p>indivíduos amorosos em nossa família estendida que me nutriram</p><p>e me deram um senso de esperança e possibilidade. Eles</p><p>mostraram que as interações da nossa família não constituíam a</p><p>norma, que havia outros jeitos de pensar e de se comportar,</p><p>diferentes dos padrões considerados aceitáveis em nossa casa.</p><p>Essa história é comum. Sobreviver e triunfar diante de famílias</p><p>disfuncionais por vezes depende da presença do que a</p><p>psicanalista Alice Miller chama de “testemunhas iluminadas”.</p><p>Praticamente todo adulto que experimentou sofrimento</p><p>desnecessário na infância tem uma história para contar de</p><p>alguém cuja bondade, ternura e preocupação restauraram seu</p><p>senso de esperança. Isso só pôde acontecer porque essas</p><p>famílias existiam como parte de comunidades maiores.</p><p>A familiar nuclear patriarcal e privada é uma forma de</p><p>organização social relativamente recente. A maioria dos cidadãos</p><p>do mundo não tem e nunca terá os recursos materiais para viver</p><p>em pequenas unidades separadas de comunidades familiares</p><p>maiores. Estudos apontam que, nos Estados Unidos, fatores</p><p>econômicos (o alto custo das moradias, o desemprego) estão</p><p>rapidamente criando um clima cultural em que filhos crescidos</p><p>saem de casa mais tarde e muitas vezes regressam, ou nunca</p><p>saem. Pesquisas de antropólogos e sociólogos indicam que</p><p>pequenas unidades privadas, especialmente aquelas</p><p>organizadas em torno do pensamento patriarcal, são ambientes</p><p>pouco saudáveis para todos. Mundialmente, a criação de filhos</p><p>esclarecida, saudável, é mais bem realizada no contexto das</p><p>redes da comunidade e da família estendida.</p><p>A família estendida é um bom lugar para aprender o poder da</p><p>comunidade. Contudo, ela só pode se tornar uma comunidade se</p><p>houver comunicação honesta entre seus indivíduos. Famílias</p><p>estendidas disfuncionais, assim como as unidades menores das</p><p>famílias nucleares, costumam ser caracterizadas por terem uma</p><p>comunicação turva. Manter segredos familiares geralmente</p><p>impossibilita que grupos estendidos construam uma comunidade.</p><p>Havia uma propaganda com o seguinte slogan: “Família que ora</p><p>unida permanece unida”. Uma vez que a oração é uma forma de</p><p>comunicação, isso sem dúvidas ajuda seus membros a</p><p>permanecerem vinculados. Eu me lembro de ouvir esse slogan</p><p>quando criança, geralmente em situações nas quais figuras de</p><p>autoridade nos forçavam a orar, e de modificá-lo para: “Família</p><p>que conversa unida permanece unida”. Conversar é uma forma</p><p>de criar comunidade.</p><p>•••</p><p>Se não experimentamos o amor em nossas famílias estendidas</p><p>de origem (o primeiro âmbito de comunidade que nos é</p><p>oferecido), o outro âmbito onde as crianças, em particular, têm</p><p>oportunidade de construir uma comunidade e conhecer o amor é</p><p>no da amizade. Uma vez que escolhemos nossos amigos, muitos</p><p>de nós, da infância à vida adulta, temos nos voltado para eles em</p><p>busca de carinho, respeito, conhecimento e do empenho geral</p><p>para promover o nosso crescimento que não encontramos na</p><p>família. Em seu comovente livro de memórias, Never Let Me</p><p>Down [Nunca me decepcione], Susan Miller recorda:</p><p>Eu ficava pensando: o amor deve estar aqui, em algum lugar.</p><p>Eu olhava e olhava dentro de mim, mas não conseguia</p><p>encontrá-lo. Eu sabia o que o amor era. Era o sentimento que</p><p>eu tinha pelas minhas bonecas, por coisas bonitas, por certos</p><p>amigos. Anos depois, quando conheci Debbie, minha melhor</p><p>amiga, tive ainda mais certeza de que o amor era o que fazia</p><p>você se sentir bem. O amor não era o que fazia você se sentir</p><p>mal, se odiar. Era o que confortava, o que libertava por dentro,</p><p>o que fazia sorrir. Às vezes, Debbie e eu brigávamos, mas era</p><p>diferente, porque estávamos basicamente, essencialmente,</p><p>conectadas.</p><p>Amizades amorosas nos dão espaço para experimentarmos a</p><p>alegria da comunidade num relacionamento em que aprendemos</p><p>a processar todos os nossos problemas, a lidar com diferenças e</p><p>conflitos enquanto nos mantemos vinculados.</p><p>A maioria de nós é educada para acreditar que encontraremos</p><p>o amor em nossa primeira família (nossa família de origem) ou,</p><p>se não lá, na segunda família, que se espera que formemos</p><p>comprometendo-nos em relacionamentos amorosos,</p><p>particularmente aqueles que levam ao casamento e/ou a vínculos</p><p>que durem a vida inteira. Muitos de nós aprendem ainda na</p><p>infância que amizades nunca deveriam ser vistas como tão</p><p>importantes quanto laços familiares. Entretanto, a amizade é o</p><p>espaço em que a maioria de nós tem seu primeiro vislumbre de</p><p>amor redentor e comunidade carinhosa. Aprender a amar em</p><p>amizades nos fortalece de formas que nos permitem levar esse</p><p>amor para outras interações com a família ou com laços</p><p>românticos. Uma amiga querida perdeu a mãe no início da vida</p><p>adulta. Uma vez, enquanto eu reclamava da minha mãe</p><p>discutindo comigo, ela contou que daria qualquer coisa para ouvir</p><p>a voz da mãe chamando sua atenção. Encorajando-me a ser</p><p>paciente, falou da dor de perder a mãe e de como desejava que</p><p>elas tivessem se esforçado mais para encontrar um lugar de</p><p>comunicação e reconciliação. Suas palavras me lembravam de</p><p>ter compaixão, de me concentrar no que eu realmente gosto em</p><p>minha mãe. Nas amizades, podemos ouvir comentários honestos</p><p>e críticos. Nós confiamos que um amigo verdadeiro deseja o</p><p>nosso bem. Minha amiga quer que eu aproveite a presença da</p><p>minha mãe.</p><p>É comum não darmos o devido valor às amizades, mesmo</p><p>quando elas são interações nas quais experimentamos prazer</p><p>mútuo. Nós as colocamos numa posição secundária,</p><p>especialmente em relação a laços românticos. Essa</p><p>desvalorização das amizades cria um vazio que podemos não</p><p>ver quando devotamos toda a nossa atenção a encontrar alguém</p><p>para amar romanticamente, ou quando damos toda a nossa</p><p>atenção para alguém que escolhemos amar. Há muito mais</p><p>chances de relacionamentos românticos se tornarem</p><p>codependentes quando cortamos todos os nossos laços com</p><p>amigos para dar atenção exclusiva a essas relações que</p><p>consideramos primárias. Eu já me senti especialmente devastada</p><p>quando amigos íntimos até então solteiros se apaixonaram e</p><p>simultaneamente se afastaram de nossa amizade. Quando uma</p><p>de minhas melhores amigas escolheu um companheiro que não</p><p>se deu tão bem comigo, isso me magoou. Eles não só</p><p>começaram a fazer tudo juntos, como ela ficou mais próxima dos</p><p>amigos de quem ele gostava.</p><p>A força de nossa amizade foi revelada pela nossa disposição</p><p>de confrontar abertamente a alteração em nossos laços e fazer</p><p>as mudanças necessárias. Não nos vemos tanto quanto antes, e</p><p>não telefonamos uma para a outra diariamente, mas os laços</p><p>positivos que nos unem permanecem intactos. Quanto mais</p><p>verdadeiros nossos amores românticos, menos nos sentimos</p><p>compelidos a enfraquecer ou cortar laços com amigos para</p><p>fortalecer os</p><p>a nossa capacidade de amar, nos ensina a praticar a</p><p>compaixão e afirma nossa conexão com a comunidade.</p><p>O oitavo capítulo, “Comunidade: uma comunhão amorosa”,</p><p>afirma, conforme as palavras de M. Scott Peck, que “nas</p><p>comunidades e por meio delas reside a salvação do mundo”.</p><p>Para desenvolver suas reflexões sobre essa questão, bell hooks</p><p>lembra que o capitalismo e o patriarcado, juntos, como estrutura</p><p>de dominação, produziram o afastamento das famílias nucleares</p><p>de suas respectivas famílias estendidas. Por essa razão,</p><p>aumentaram os abusos de poder no ambiente familiar, pois a</p><p>família estendida é um lugar onde podemos aprender o poder da</p><p>comunidade. Outra possibilidade importante dessa experiência</p><p>de comunidade é a amizade, que para muitos é o primeiro</p><p>contato com uma “comunidade carinhosa”. hooks reforça que</p><p>amar em amizades nos fortalece de tal maneira que nos permite</p><p>levar esse amor para as interações familiares e românticas. E,</p><p>embora seja comum afrouxarmos os laços de amizade quando</p><p>criamos laços românticos, quanto mais verdadeiros forem nossos</p><p>amores românticos, menos teremos de nos afastar das nossas</p><p>amizades, pois “a confiança é a pulsação do verdadeiro amor”.</p><p>Ao nos engajarmos em uma prática amorosa, podemos</p><p>estabelecer as bases para a construção de uma comunidade</p><p>com desconhecidos. Esse amor que criamos em comunidade</p><p>permanece conosco aonde quer que vamos, diz hooks.</p><p>“Reciprocidade: o coração do amor”, o nono capítulo, se inicia</p><p>com os dizeres: “O amor nos permite adentrar o paraíso”. Para</p><p>falar da construção amorosa entre casais, a autora parte dos</p><p>equívocos ocorridos nos seus dois relacionamentos afetivos mais</p><p>intensos, de um lado devido à falta de definição do que seria o</p><p>amor e, de outro, pela confusão de esperar receber do</p><p>companheiro o amor que não recebeu da família. Aponta que,</p><p>mesmo em relacionamentos não heterossexuais, a tendência é o</p><p>casal assumir uma lógica de que um dos parceiros deve</p><p>sustentar o amor e o outro, apenas o seguir. Acrescenta ainda o</p><p>fato de que as mulheres são encorajadas pelo pensamento</p><p>patriarcal a acreditar que deveriam ser sempre amorosas, porém,</p><p>isso não significa dizer que estão mais capacitadas do que os</p><p>homens para fazer isso. Por essa razão, é comum que mulheres</p><p>procurem livros de autoajuda para aprender a amar e manter o</p><p>relacionamento. No entanto, grande parte desses livros</p><p>normalizam o machismo e ensinam a manipular, a jogar um jogo</p><p>de poder que nada tem a ver com o amor.</p><p>No décimo capítulo, “Romance: o doce amor”, bell hooks</p><p>afirma categoricamente que poucas pessoas entram num</p><p>relacionamento romântico possuindo a capacidade de realmente</p><p>receber amor. Isso porque criamos envolvimentos amorosos que</p><p>estão condenados a repetir os nossos dramas familiares.</p><p>Comentando sobre o romance O olho mais azul, de Toni</p><p>Morrison, ela diz que “a ideia de amor romântico é uma das</p><p>ideias mais destrutivas na história do pensamento humano”. Esse</p><p>amor que se dá num “estalo”, num “clique”, que não necessita de</p><p>construção e depende apenas de “química” atrapalha o nosso</p><p>caminho para o amor. O amor é tanto uma intenção como uma</p><p>ação. Nossa cultura valoriza demais o amor como fantasia ou</p><p>mito, mas não faz o mesmo em relação à arte de amar. Ao não</p><p>atingirem esse mito, as pessoas se decepcionam. No entanto, é</p><p>preciso entender que essa decepção é pelo amor romântico não</p><p>alcançado. O amor verdadeiro, quando buscado, nem sempre</p><p>nos levará ao “felizes para sempre” e, mesmo se o fizer, é</p><p>preciso que saibamos: amar dá trabalho, não é essa história</p><p>perfeita e pronta dos contos de fadas.</p><p>Em “Perda: amar na vida e na morte”, o décimo primeiro</p><p>capítulo, a autora trata do medo coletivo da morte, apresentando-</p><p>o como uma doença do coração para a qual a única cura é o</p><p>amor. Da mesma maneira, somos incapazes de falar sobre a</p><p>nossa necessidade de amar e sermos amados. Por medo de que</p><p>nos vejam como fracos, raramente compartilhamos nossos</p><p>pensamentos sobre a mortalidade e a perda. É isso que bell</p><p>hooks nos convida a fazer.</p><p>O capítulo 12, “Cura: o amor redentor”, nos leva a refletir</p><p>sobre nossas dores, pois, ainda que tenham nos ensinado o</p><p>contrário, sofrimentos desnecessários nos ferem. A escolha que</p><p>temos é não permitir que tais sofrimentos nos deixem cicatrizes</p><p>por toda a vida. O que faremos dessas marcas está em nossas</p><p>mãos. O poder curativo da mente e do coração está sempre</p><p>presente, e nós temos a capacidade de renovar nosso espírito e</p><p>nossa alma. No entanto, é bastante difícil conseguirmos nos</p><p>curar em isolamento: a cura é um ato de comunhão. bell hooks</p><p>diz que precisamos conhecer a compaixão e nos envolver num</p><p>processo de perdão para nos livrarmos de toda bagagem que</p><p>carregamos e que impede a nossa cura. O perdão intensifica</p><p>nossa capacidade de apoiarmos uns aos outros. Fazer as pazes</p><p>com nós mesmos e com os outros é o presente que a compaixão</p><p>e o perdão nos oferecem. A autora nos ensina que ser positivo e</p><p>viver em um estado permanente de esperança renova o espírito</p><p>e que, quando reavivamos nossa fé na promessa do amor, a</p><p>esperança se torna nossa cúmplice.</p><p>O capítulo 13, “Destino: quando os anjos falam de amor”,</p><p>fecha o livro apresentando a relação de bell hooks com os anjos.</p><p>Anjos são aqueles que trazem as notícias que darão alívio ao</p><p>nosso coração. São os guardiães do bem-estar da alma.</p><p>Revelam nosso desejo coletivo de regressar ao amor. A autora</p><p>relata que as primeiras histórias de anjos lhe foram contadas</p><p>ainda na infância, quando frequentava a igreja, onde aprendeu</p><p>que os anjos eram consoladores sábios nos momentos de</p><p>solidão. E, conforme foi crescendo, hooks passou a descobrir</p><p>muitos anjos em seus autores preferidos, cujos livros permitem</p><p>entender a vida com mais complexidade. Ela finaliza dizendo</p><p>que, depois de tanto ficar sozinha, no escuro do quarto, agarrada</p><p>à metafísica do amor, tentando entender seu mistério, pôde</p><p>finalmente alcançar uma nova visão do amor. E a essa prática</p><p>espiritual disciplinada ela chama de “prática de abrir o coração”.</p><p>Foi isso que desde então a levou a seguir o caminho do amor e a</p><p>“falar cara a cara com os anjos”.</p><p>Na teoria sobre o amor de bell hooks é possível perceber</p><p>inspirações das igrejas cristãs negras do sul dos Estados Unidos</p><p>e também da filosofia budista, especialmente com base no</p><p>mestre zen vietnamita Thich Nhat Hanh, cuja atuação disseminou</p><p>o conceito de “budismo engajado”, que diz respeito a somar a</p><p>observação dos preceitos básicos do budismo com uma prática</p><p>cotidiana socialmente comprometida. Ao lermos Tudo sobre o</p><p>amor, podemos encontrar também diversos pontos de contato</p><p>com as ideias trazidas pela filósofa burquinense Sobonfu Somé,</p><p>em seu livro O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais</p><p>africanos sobre maneiras de se relacionar, sobretudo no que se</p><p>refere ao conceito de comunidade. Nesse sentido, ao propor que</p><p>as transformações desejadas para a sociedade ocorram por meio</p><p>da prática do amor, bell hooks nos afasta dos paradigmas</p><p>eurocêntricos e coloniais que construíram a sociedade ocidental,</p><p>baseada em exploração, injustiça, racismo e sexismo, e</p><p>(re)direciona o nosso pensamento e a nossa prática rumo à</p><p>ancestralidade.</p><p>A tradução deste livro, trazendo a ideia do amor como</p><p>transformação política, chega num momento muito oportuno e</p><p>necessário. Por aqui, essa semente já brotou. Existem pessoas</p><p>pensando o amor para além do “amor romântico”, como o pastor</p><p>Henrique Vieira, que destaca a força poderosa do amor para a</p><p>destruição de preconceitos e a construção de uma sociedade</p><p>mais justa em seu livro O amor como revolução, ou como o</p><p>professor Renato Noguera, especialista em estudos africanos,</p><p>que se dedica a produzir reflexões sobre o amor e é autor do livro</p><p>Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o</p><p>amor. Nesse caminho segue também a pensadora Carla</p><p>Akotirene que, ancorada nos estudos do feminismo negro e na</p><p>ancestralidade, discute o papel político das afetividades,</p><p>inserindo no debate a urgência do combate à violência</p><p>doméstica. Pesquisadores voltados para a filosofia africana tem</p><p>(re)construído conhecimentos</p><p>vínculos com nossos parceiros. A confiança é a</p><p>pulsação do amor verdadeiro. E nós confiamos que a atenção</p><p>que nossos parceiros dão aos amigos e vice-versa não tira nada</p><p>de nós — não nos diminui. O que aprendemos com a experiência</p><p>é que nossa capacidade de estabelecer conexões de amizade</p><p>profundas fortalece todos os nossos laços íntimos.</p><p>Quando vemos o amor como o desejo de alimentar o próprio</p><p>crescimento espiritual ou o de alguém, demonstrado por gestos</p><p>de carinho, respeito, conhecimento e tomada de</p><p>responsabilidade, a base de todo o amor em nossa vida é a</p><p>mesma. Não há amor especial reservado exclusivamente para</p><p>parceiros românticos. O amor verdadeiro é a base de nosso</p><p>envolvimento com nós mesmos, com a família, com os amigos,</p><p>com companheiros, com todos que escolhemos amar. Embora</p><p>necessariamente nos comportemos de forma diferente</p><p>dependendo da natureza da relação, ou tenhamos diferentes</p><p>graus de compromisso, os valores que orientam nosso</p><p>comportamento, quando baseados numa ética amorosa, são</p><p>sempre os mesmos para cada interação. Em um dos</p><p>relacionamentos românticos mais longos da minha vida, me</p><p>comportei da maneira mais tradicional, colocando-o acima de</p><p>todas as outras interações. Quando ele se tornou destrutivo,</p><p>achei difícil ir embora. Eu me vi aceitando comportamentos</p><p>(abuso físico e verbal) que não toleraria em uma amizade.</p><p>Fui criada de forma convencional para acreditar que esse</p><p>relacionamento era “especial” e deveria ser reverenciado acima</p><p>de todos os outros. A maioria dos homens e das mulheres</p><p>nascidos nos anos 1950 ou antes era socializada para passar</p><p>que casamentos e/ou compromissos românticos de qualquer tipo</p><p>deveriam ter prioridade sobre todos os outros relacionamentos.</p><p>Se eu tivesse avaliado meu relacionamento de um ponto de vista</p><p>que enfatizasse o crescimento em vez do dever e da obrigação,</p><p>teria compreendido que o abuso enfraquece irreparavelmente os</p><p>laços. É muito comum as mulheres acreditarem que é um sinal</p><p>de compromisso, uma expressão de amor, suportar grosseria ou</p><p>crueldade, perdoar e esquecer. Na realidade, quando amamos</p><p>corretamente, sabemos que a resposta saudável e amorosa à</p><p>crueldade e ao abuso é nos retirarmos do caminho dos danos.</p><p>Ainda que em minha juventude eu fosse uma feminista</p><p>comprometida, tudo o que eu sabia e no que acreditava</p><p>politicamente a respeito da igualdade foi, por um tempo,</p><p>obscurecido por uma educação familiar e religiosa que tinha me</p><p>socializado para acreditar que tudo deve ser feito para salvar “o</p><p>relacionamento”.</p><p>Em retrospecto, vejo como a ignorância em relação à arte de</p><p>amar pôs o relacionamento em risco desde o começo. Nos mais</p><p>de catorze anos em que ficamos juntos, estivemos muito</p><p>ocupados repetindo velhos padrões aprendidos na infância,</p><p>agindo a partir de informações equivocadas sobre a natureza do</p><p>amor, em vez de percebermos as mudanças que precisaríamos</p><p>fazer em nós mesmos para sermos capazes de amar outra</p><p>pessoa. Notadamente, como muitas outras mulheres e homens</p><p>(independentemente de sua orientação sexual) que estão em</p><p>relacionamentos nos quais são objetos de terrorismo íntimo, eu</p><p>teria sido capaz de sair desse relacionamento antes ou de me</p><p>recuperar em seu interior se eu tivesse trazido para essa relação</p><p>o nível de respeito, cuidado, conhecimento e responsabilidade</p><p>que eu trazia para minhas amizades. Mulheres que não</p><p>tolerariam amizades em que fossem emocional e fisicamente</p><p>abusadas permanecem em relacionamentos românticos em que</p><p>essas violações acontecem com regularidade. Se trouxessem</p><p>para esses vínculos os mesmos padrões que levam para suas</p><p>amizades, não aceitariam a vitimização.</p><p>Naturalmente, quando saí desse relacionamento de longa</p><p>duração, que tinha me tomado tanto tempo e energia, eu estava</p><p>terrivelmente sozinha e solitária. Compreendi então que era mais</p><p>gratificante viver a vida num círculo de amor, interagindo com as</p><p>pessoas amadas com quem nos comprometemos. Muitos de nós</p><p>aprendem essa lição da pior maneira, ao nos vermos sozinhos e</p><p>sem conexões significativas com amigos. E são as experiências</p><p>de viver o medo do abandono em relações românticas e de ser</p><p>abandonado que nos mostraram que os princípios do amor são</p><p>sempre os mesmos em qualquer vínculo significativo. Amar bem</p><p>é a tarefa em todas as relações significativas, não apenas nos</p><p>laços românticos. Conheço indivíduos que aceitam</p><p>desonestidade em suas relações mais importantes, ou que são</p><p>eles próprios desonestos, quando jamais aceitariam isso vindo de</p><p>seus amigos. Amizades satisfatórias nas quais compartilhamos</p><p>amor mútuo nos oferecem um guia de comportamento para</p><p>outras relações, incluindo as românticas. Elas dão a nós todos</p><p>uma maneira de conhecer a comunidade.</p><p>Dentro de uma comunidade amorosa, sustentamos laços por</p><p>meio da compaixão e do perdão. Em Life is for Loving: Discover</p><p>the Healing Power of Love [A vida é para amar: descubra o poder</p><p>curativo do amor], Eric Butterworth apresenta um capítulo sobre</p><p>“o amor e o perdão”. Com perspicácia, ele observa:</p><p>Não conseguimos persistir sem amor e não há outra maneira</p><p>de regressar a um amor curativo, reconfortante e harmonioso</p><p>que não seja por meio de um perdão total e completo: se</p><p>queremos liberdade e paz e a experiência de amar e ser</p><p>amado, devemos deixar as coisas para trás e perdoar.</p><p>O perdão é um ato de generosidade. Ele exige que coloquemos a</p><p>libertação de outra pessoa da prisão de sua própria culpa ou</p><p>angústia acima de nossos sentimentos de ofensa ou raiva. Ao</p><p>perdoarmos, abrimos caminho para o amor. É um gesto de</p><p>respeito. O verdadeiro perdão exige que compreendamos as</p><p>ações negativas dos outros.</p><p>Embora o perdão seja essencial para o crescimento espiritual,</p><p>ele não faz com que tudo fique bem ou maravilhoso</p><p>imediatamente. Com frequência, livros new age sobre o amor</p><p>fazem parecer que tudo será sempre maravilhoso, basta que</p><p>estejamos amando. De modo realista, ser parte de uma</p><p>comunidade amorosa não significa que não vamos encarar</p><p>conflitos, traições, ações positivas com resultados negativos ou</p><p>coisas ruins acontecendo com pessoas boas. O amor nos</p><p>permite enfrentar essas realidades negativas de uma forma que</p><p>afirma e eleva a vida. Quando uma colega cujo trabalho eu</p><p>admirava, alguém que eu considerava amiga, por razões que</p><p>nunca ficaram claras para mim, começou a escrever críticas</p><p>maldosas atacando os meus livros, fiquei chocada. Suas críticas</p><p>eram cheias de mentiras e exageros. Eu tinha sido uma amiga</p><p>cuidadosa. As atitudes dela me magoaram. Para curar essa dor,</p><p>comecei uma identificação empática com ela, para poder</p><p>entender quais seriam suas motivações. Em Forgiveness: A Bold</p><p>Choice for a Peaceful Heart [Perdão: uma escolha ousada para</p><p>um coração em paz], Robin Casarjian explica:</p><p>O perdão é um modo de vida que gradualmente nos</p><p>transforma do estado de vítimas indefesas de nossas</p><p>circunstâncias em seres poderosos e amorosos “cocriadores”</p><p>de nossa realidade. […] É o esmorecimento dessas</p><p>percepções que nublam a nossa capacidade de amar.</p><p>Por meio da prática da compaixão e do perdão, fui capaz de</p><p>preservar minha admiração pelo trabalho dela e lidar com o luto e</p><p>a decepção que sentia em relação à perda desse</p><p>relacionamento. Praticar a compaixão me permitiu compreender</p><p>por que ela agiu daquela maneira e perdoá-la. Perdoar significa</p><p>que eu ainda sou capaz de vê-la como membro da minha</p><p>comunidade, alguém que tem um lugar no meu coração, se</p><p>quiser retomá-lo.</p><p>Todos nós ansiamos por uma comunidade amorosa. Ela eleva</p><p>a alegria da vida. No entanto, muitos de nós buscam a</p><p>comunidade apenas para escapar do medo da solidão. Saber</p><p>como estar sozinho é central para a arte de amar. Quando somos</p><p>capazes de ficar sozinhos, podemos estar com os outros sem</p><p>usá-los como válvula de escape. Ao longo de sua vida, o teólogo</p><p>Henri Nouwen enfatizou o valor do recolhimento. Em muitos de</p><p>seus livros e ensaios, ele nos desencorajava a ver o recolhimento</p><p>como uma necessidade de privacidade, compartilhando a</p><p>percepção de que, ao estarmos sós, encontramos o lugar onde</p><p>podemos olhar para nós verdadeiramente e abandonar o falso</p><p>self. Em seu livro</p><p>Reaching Out [Alcançar], ele destaca que a</p><p>“solidão é uma das fontes mais universais do sofrimento humano</p><p>hoje”.</p><p>Nouwen aponta que “não há amigo ou amante, esposo ou</p><p>esposa, comunidade ou comuna capaz de amainar nossos</p><p>desejos mais profundos por unidade e integridade”. Sabiamente,</p><p>ele sugere que acalmemos esses sentimentos abraçando o estar</p><p>só, permitindo que o espírito divino se revele ali:</p><p>A estrada difícil é a estrada da conversão, a conversão da</p><p>solidão em recolhimento. Em vez de fugirmos de nossa solidão</p><p>e de tentar esquecê-la ou negá-la, temos que protegê-la e</p><p>transformá-la num recolhimento proveitoso. […] A solidão é</p><p>dolorosa, o recolhimento é pacífico. A solidão faz com que nos</p><p>apeguemos aos outros por desespero; o recolhimento nos</p><p>permite respeitar os outros no que eles têm de singular e criar</p><p>uma comunidade.</p><p>Quando as crianças são ensinadas a aproveitar o tempo de</p><p>quietude, a estar sozinhas com seus pensamentos e devaneios,</p><p>elas levam essa habilidade para a vida adulta. No esforço para</p><p>superar o medo de ficarem sozinhos, jovens, adultos e idosos</p><p>frequentemente adotam a prática da meditação como uma forma</p><p>de abraçar o estar só. Aprender como se “sentar” quieto, parado,</p><p>pode ser o primeiro passo para conhecer o conforto de estar</p><p>sozinho.</p><p>O movimento que parte do estar só para a comunidade</p><p>aumenta a nossa capacidade de companheirismo. Por meio do</p><p>companheirismo, aprendemos como servir uns aos outros. O</p><p>serviço é outra dimensão do amor comunal. No fim de sua</p><p>autobiografia, A roda da vida, Elisabeth Kübler-Ross enfatiza:</p><p>“Posso garantir que as maiores recompensas da vida inteira virão</p><p>do fato de vocês abrirem seus corações para os que estão</p><p>precisando. As maiores bênçãos vêm sempre de ajudar os</p><p>outros”. Mulheres têm sido e são as grandes professoras do</p><p>mundo acerca do significado do servir. Nós honramos</p><p>publicamente a memória de mulheres excepcionais como Madre</p><p>Teresa, que fizeram do servir a sua vocação, mas há outras, em</p><p>toda parte, cujas identidades nunca serão reconhecidas</p><p>publicamente, que servem com paciência, graça e amor. Todas</p><p>nós podemos aprender com o exemplo dessas mulheres</p><p>caridosas.</p><p>Anteriormente, mencionei minha impaciência em relação à</p><p>minha mãe. Refletindo sobre a vida dela, fui surpreendida pelo</p><p>quanto serviu aos outros. Ela me ensinou, e a todos os seus</p><p>filhos, o valor e o significado de servir. Na infância, testemunhei</p><p>seu cuidado e paciência com os doentes e os moribundos. Ela</p><p>lhes dava abrigo e cuidava deles sem reclamar. Com suas ações,</p><p>aprendi o valor de dar sem esperar retribuição. Lembrar desses</p><p>atos é importante. É muito fácil para todos nós esquecer dos</p><p>serviços que mulheres oferecem aos outros todos os dias — os</p><p>sacrifícios que as mulheres fazem. O pensamento machista com</p><p>frequência obscurece o fato de que essas mulheres fazem a</p><p>escolha de servir, que elas se doam a partir de um lugar de livre-</p><p>arbítrio, não porque seja seu destino biológico. Há muitas</p><p>pessoas que não estão interessadas em servir, que desprezam a</p><p>caridade. Quando alguém pensa que uma mulher que serve “se</p><p>doa porque é isso que as mulheres fazem”, nega sua</p><p>humanidade completa e, assim, falha em ver a generosidade</p><p>inerente aos seus atos. Há muitas mulheres que não estão</p><p>interessadas na caridade e que inclusive a desvalorizam.</p><p>A disposição para se sacrificar é uma dimensão necessária da</p><p>prática do amor e da vida em comunidade. Nenhuma de nós</p><p>pode ter tudo do jeito como queremos o tempo todo. Abrir mão</p><p>de alguma coisa é uma maneira de sustentar um compromisso</p><p>com o bem-estar coletivo. Nossa disposição de fazer sacrifícios</p><p>reflete nossa consciência da interdependência. Ao escrever</p><p>sobre a necessidade de diminuir o abismo entre ricos e pobres,</p><p>Martin Luther King Jr. pregou: “Todos os homens [e mulheres]</p><p>estão envolvidos em uma rede inescapável de mutualismo,</p><p>unidos em uma mesma vestimenta do destino. O que afeta um</p><p>indiretamente afeta todos os outros”. Esse abismo é reduzido</p><p>pelo compartilhamento de recursos. Todos os dias, indivíduos</p><p>que não são ricos, mas que são privilegiados materialmente,</p><p>fazem a escolha de compartilhar com os outros. Alguns de nós</p><p>fazem isso por meio do dízimo consciente (doando regularmente</p><p>uma parte de nossos ganhos); outros, por meio de uma prática</p><p>diária de bondade amorosa, dando para os necessitados com</p><p>quem nos encontramos ao acaso. Doar mutuamente fortalece a</p><p>comunidade.</p><p>Apreciar os benefícios de viver e amar em comunidade nos</p><p>empodera para lidar com estranhos sem ter medo, e lhes</p><p>estender o dom da abertura e do reconhecimento. O simples ato</p><p>de falar com um estranho, reconhecer sua presença no planeta,</p><p>cria uma conexão. Todos os dias, todos nós temos oportunidade</p><p>de praticar as lições que aprendemos em comunidade. Ser</p><p>bondosos e gentis nos conecta uns aos outros. No livro The</p><p>Different Drum, Peck nos lembra de que o verdadeiro objetivo da</p><p>verdadeira comunidade é “buscar maneiras de viver com nós</p><p>mesmos e com os outros em paz e com amor”. Em contraste</p><p>com outros movimentos por mudança social, que demandam se</p><p>juntar a organizações e participar de reuniões, podemos começar</p><p>o processo de criar comunidade onde quer que estejamos.</p><p>Podemos começar com um sorriso, um cumprimento caloroso,</p><p>um pouco de conversa, fazendo um ato de bondade ou</p><p>reconhecendo a gentileza que nos é oferecida. Podemos</p><p>trabalhar diariamente para tornar nossas famílias comunidades</p><p>mais amplas. Meu irmão ficou satisfeito quando sugeri que ele</p><p>pensasse em se mudar para a cidade onde moro, para que</p><p>pudéssemos nos ver mais. Isso reforçou o seu sentimento de</p><p>pertencimento. E fez com que eu me sentisse amada, pois ele</p><p>queria estar no mesmo lugar que eu. Toda vez que ouço meus</p><p>amigos falarem sobre o distanciamento em relação a seus</p><p>familiares, eu os encorajo a buscar um caminho de cura, uma</p><p>restauração dos laços. Num determinado momento, minha irmã,</p><p>que é lésbica, sentiu que queria se afastar da família, porque os</p><p>parentes eram homofóbicos com frequência. Ao mesmo tempo</p><p>que concordei com a raiva e o desapontamento dela, e</p><p>compartilhei desses sentimentos, também a estimulei a encontrar</p><p>maneiras de se manter vinculada. Com o tempo, ela observou</p><p>mudanças positivas importantes; viu o medo perder espaço para</p><p>a compreensão, o que não teria acontecido se ela aceitasse o</p><p>distanciamento como a única resposta para a dor da rejeição.</p><p>Sempre que curamos feridas familiares, fortalecemos a</p><p>comunidade. Fazendo isso, nos engajamos em uma prática</p><p>amorosa. É o amor que estabelece as bases para a construção</p><p>de uma comunidade com estranhos. O amor que criamos em</p><p>comunidade permanece conosco aonde quer que vamos.</p><p>Orientados por esse conhecimento, fazemos de qualquer lugar</p><p>um local em que podemos regressar ao amor.</p><p>09.</p><p>reciprocidade:</p><p>o coração</p><p>do amor</p><p>Doar verdadeiramente é uma coisa feliz de se fazer.</p><p>Experimentamos a felicidade quando concebemos a</p><p>intenção de dar, no próprio gesto de doar e na</p><p>recordação do fato de que doamos. Generosidade é</p><p>uma celebração. Quando damos algo a alguém, nos</p><p>sentimos conectados a essa pessoa, e nosso</p><p>compromisso com o caminho da paz e da consciência</p><p>se aprofunda.</p><p>— Sharon Salzberg</p><p>O amor nos permite adentrar o paraíso. Ainda assim, muitos de</p><p>nós esperam do lado de fora, incapazes de cruzar o portal,</p><p>incapazes de deixar para trás todas as coisas que acumulamos e</p><p>que se interpõem entre nós e o caminho para o amor. Se,</p><p>durante a maior parte de nossa vida, não fomos guiados no</p><p>caminho do amor, geralmente não saberemos como começar a</p><p>amar, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir. Muito do</p><p>desespero que os jovens sentem em relação ao amor vem de</p><p>sua crença de que estão fazendo tudo “certo”, e ainda assim o</p><p>amor não está acontecendo. Seus esforços para amar e serem</p><p>amados só produzem estresse, conflito e descontentamento sem</p><p>fim.</p><p>Entre os meus vinte e poucos anos e o começo dos trinta, eu</p><p>tinha confiança de que sabia tudo sobre o amor. No entanto, a</p><p>cada vez que eu “me apaixonava”, me via sofrendo. Os dois</p><p>relacionamentos mais intensos da minha vida foram com homens</p><p>cujos pais eram</p><p>alcoólatras. Nenhum dos dois têm lembranças</p><p>de interações positivas com o pai. Ambos foram criados por</p><p>mães divorciadas, que trabalhavam e nunca se casaram</p><p>novamente. Esses namorados tinham temperamento semelhante</p><p>ao do meu pai: calados, muito trabalhadores e contidos</p><p>emocionalmente. Lembro de quando levei o primeiro deles à</p><p>minha casa. Minhas irmãs ficaram chocadas por ele ser, na</p><p>percepção delas, “tão parecido com o papai”, sendo que “você</p><p>sempre odiou o papai”. Na época, achei ridícula tanto a ideia de</p><p>que eu odiava meu pai quanto a de que eu tinha escolhido, para</p><p>compartilhar minha vida, um parceiro que se parecia com ele —</p><p>de jeito algum.</p><p>Depois de quinze anos de relacionamento, não só percebi que</p><p>ele se parecia muito com o meu pai, como também precisei</p><p>encarar meu desejo desesperado de receber dele o amor que</p><p>não recebi do meu pai. Eu queria que ele se tornasse tanto o pai</p><p>amoroso quanto o companheiro afetivo, oferecendo-me, assim,</p><p>um espaço de cura. Na minha fantasia, se ele apenas me</p><p>amasse, se me desse todo o carinho que eu não havia recebido</p><p>quando criança, isso repararia meu espírito ferido e eu seria</p><p>capaz de confiar e amar novamente. Ele era incapaz de fazer</p><p>isso. Ele nunca tinha sido educado no caminho do amor. Com ele</p><p>tateando nas sombras do amor tanto quanto eu, cometemos</p><p>sérios erros juntos. Ele queria que eu lhe desse o amor</p><p>incondicional e a doação que sua mãe sempre lhe ofereceu sem</p><p>esperar nada em troca. Constantemente frustrada por sua</p><p>indiferença em relação às necessidades dos outros e por sua</p><p>convicção presunçosa de que a vida deveria ser desse jeito,</p><p>tentei fazer o trabalho emocional por nós dois.</p><p>É desnecessário dizer que não consegui o amor que</p><p>desejava. O que consegui foi permanecer num lugar já</p><p>conhecido, um lugar de luta familiar. Nós nos envolvemos numa</p><p>guerra de gênero privada. Nessa batalha, eu lutava para destruir</p><p>o modelo Marte e Vênus, para que pudéssemos romper com</p><p>ideias preconcebidas de papéis de gênero e sermos honestos</p><p>com nossos desejos profundos. Ele continuou apegado ao</p><p>paradigma da diferença sexual baseado na presunção de que</p><p>homens são intrinsecamente diferentes das mulheres, com</p><p>necessidades e desejos diferentes. Na mente dele, meu</p><p>problema era a recusa em aceitar esses papéis “naturais”. Como</p><p>muito homens progressistas na era do feminismo, ele acreditava</p><p>que as mulheres deveriam ter acesso igualitário a empregos e</p><p>receber salários iguais aos dos homens, mas, quando se tratava</p><p>das questões domésticas e do coração, ele ainda acreditava que</p><p>o cuidado era papel da mulher. Como muito homens, ele queria</p><p>uma mulher que fosse “como a mamãe”, para que ele não tivesse</p><p>de fazer o trabalho de amadurecer.</p><p>Ele era o tipo de homem descrito pelo psicólogo Dan Kiley em</p><p>seu pioneiro livro Síndrome de Peter Pan. Publicado</p><p>originalmente no início dos anos 1980, o livro, conforme indicado</p><p>na capa, abordava um sério fenômeno social e psicológico que</p><p>assolava os estadunidenses do sexo masculino — sua recusa</p><p>em se tornarem homens:</p><p>Embora eles tenham atingido a idade adulta, esses homens</p><p>são incapazes de encarar os sentimentos e as</p><p>responsabilidades adultas; distantes de suas verdadeiras</p><p>emoções, com medo de dependerem até mesmo das pessoas</p><p>que lhes são mais próximas, autocentrados e narcisistas, eles</p><p>se escondem atrás de máscaras, repletos de sentimentos</p><p>vazios e de solidão.</p><p>Essa nova geração de homens estadunidenses experimentou a</p><p>revolução cultural feminista. Muitos deles foram criados em lares</p><p>nos quais os homens não estavam presentes. Eles ficaram mais</p><p>que felizes quando as pensadoras feministas lhes disseram que</p><p>não precisavam ser machões. Entretanto, a única alternativa para</p><p>não se tornar um macho convencional era não se tornar homem</p><p>de jeito algum, permanecendo um menino.</p><p>Ao escolherem continuar meninos, não precisavam sofrer a</p><p>dor de romper os laços apertados demais com mães que os</p><p>sufocaram com cuidados incondicionais. Podiam simplesmente</p><p>encontrar mulheres para cuidar deles do mesmo jeito que suas</p><p>mães faziam. Quando as mulheres fracassavam em ser como a</p><p>mamãe, eles faziam birra. Inicialmente, como uma jovem</p><p>militante feminista, eu estava animada por ter encontrado um</p><p>homem que não pretendia ser patriarca. E mesmo a tarefa de</p><p>arrastá-lo aos gritos e pontapés em direção à vida adulta parecia</p><p>valer a pena. Afinal, eu acreditava que teria um parceiro em</p><p>igualdade, amor entre semelhantes. Contudo, o preço que paguei</p><p>por querer que ele se tornasse adulto foi ele abandonar suas</p><p>brincadeiras de menino e se tornar o machão com quem eu</p><p>nunca quis estar. Eu era o alvo de suas agressões, culpada por</p><p>persuadi-lo a deixar sua infância para trás, culpada por seus</p><p>temores de não estar à altura da tarefa de ser homem. Quando</p><p>nosso relacionamento acabou, havia desabrochado em mim uma</p><p>mulher feminista plena e autorrealizada, mas quase tinha perdido</p><p>minha fé no poder transformador do amor. Meu coração estava</p><p>partido. Saí do relacionamento com medo de que nossa cultura</p><p>ainda não estivesse pronta para afirmar o amor mútuo entre</p><p>mulheres livres e homens livres.</p><p>•••</p><p>Em meu segundo relacionamento, com um homem bem mais</p><p>jovem, disputas de poder similares emergiram conforme ele se</p><p>debatia com a questão de se tornar totalmente adulto numa</p><p>sociedade em que a masculinidade é sempre associada à</p><p>dominância. Ele não era dominante. No entanto, tinha de</p><p>confrontar um mundo que só via o nosso relacionamento em</p><p>termos de poder, de quem manda. Ao passo que algumas</p><p>pessoas enxergavam o silêncio de meu companheiro mais velho</p><p>como intimidador e ameaçador — um sinal de seu “poder” —, o</p><p>silêncio de meu companheiro mais jovem era frequentemente</p><p>interpretado como consequência da minha dominância.</p><p>Inicialmente, eu me senti atraída por esse companheiro mais</p><p>novo porque a “masculinidade” dele representava uma alternativa</p><p>à norma patriarcal. No fim das contas, porém, ele não sentia essa</p><p>masculinidade reconhecida no mundo mais amplo e começou a</p><p>confiar mais em pensamentos convencionais sobre os papéis</p><p>masculino e feminino, permitindo que a socialização machista</p><p>moldasse suas ações. Observando sua luta, vi como os homens</p><p>recebiam muito pouco apoio quando escolhiam não ser leais ao</p><p>patriarcado. Embora esses dois homens progressistas</p><p>estivessem separados por mais de duas gerações, nenhum dos</p><p>dois pensava muito a respeito da questão do amor. Embora</p><p>apoiassem a igualdade de gênero na esfera pública, no privado,</p><p>no seu íntimo, ainda viam o amor como coisa de mulher. Para</p><p>eles, relacionamento tinha a ver com encontrar alguém que</p><p>cuidasse de todas as suas necessidades.</p><p>No universo de gênero Marte-e-Vênus, homens querem poder</p><p>e mulheres querem apego emocional e conexão. Ninguém deste</p><p>planeta realmente tem oportunidade de conhecer o amor, uma</p><p>vez que é o poder, não o amor, que está na ordem do dia. O</p><p>privilégio do poder está no coração do pensamento patriarcal.</p><p>Meninas e meninos, mulheres e homens que foram ensinados a</p><p>pensar assim quase sempre acreditam que o amor não é</p><p>importante, ou ao menos não tão importante quanto ser</p><p>poderoso, dominante, estar no controle, por cima — estar certo.</p><p>Mulheres que aparentemente dedicam adoração altruísta e</p><p>cuidado aos homens em sua vida parecem estar obcecadas com</p><p>o “amor”, mas, na realidade, suas ações frequentemente</p><p>encobrem manobras para obter poder. Como seus companheiros</p><p>do sexo masculino, elas entram em relacionamentos falando</p><p>palavras de amor, mesmo que suas atitudes indiquem que</p><p>manter o poder e o controle é seu objetivo principal. Isso não</p><p>significa que cuidado e afeição não estejam presentes; eles</p><p>estão. É precisamente por isso que é tão difícil para as mulheres,</p><p>e para alguns homens, deixar relacionamentos nos quais a</p><p>dinâmica central é a luta pelo poder. O fato de que essa dinâmica</p><p>de poder sadomasoquista pode coexistir — e frequentemente</p><p>coexiste — com afeição, cuidado, ternura e lealdade torna mais</p><p>fácil que indivíduos movidos por poder neguem seus objetivos,</p><p>até para si mesmos. Suas ações positivas dão esperança de que</p><p>o amor prevalecerá.</p><p>Infelizmente,</p><p>o amor não prevalecerá em qualquer situação</p><p>em que uma das partes, seja feminina ou masculina, queira</p><p>manter o controle. Meus relacionamentos eram agridoces. Todos</p><p>os ingredientes para o amor estavam presentes, mas meus</p><p>companheiros não estavam comprometidos em fazer do amor</p><p>uma prioridade. Para alguém que não conheceu o amor, é difícil</p><p>confiar que a satisfação e o crescimento mútuos possam ser o</p><p>fundamento mais importante de uma relação a dois. É possível</p><p>que esse alguém só compreenda e acredite em dinâmicas de</p><p>poder, nas quais um precisa estar em cima e o outro, embaixo,</p><p>em uma luta sadomasoquista por dominação; ironicamente, ele</p><p>talvez se sinta “mais seguro” quando opera dentro desses</p><p>paradigmas. Íntima da traição, essa pessoa pode ter fobia à</p><p>confiança. Pelo menos quando se apega a dinâmicas de poder,</p><p>você nunca precisa temer o desconhecido; você conhece as</p><p>regras do jogo. Seja lá o que aconteça, o resultado é previsível.</p><p>Já a prática do amor não oferece um lugar de segurança. Nós</p><p>nos arriscamos a perder, a nos magoarmos, a sentir dor. Nós nos</p><p>arriscamos a ser afetados por forças além do nosso controle.</p><p>Quando indivíduos são feridos no espaço onde conheceriam o</p><p>amor durante a infância, essa ferida pode ser tão traumática que</p><p>qualquer tentativa de voltar a habitar aquele espaço parece</p><p>extremamente insegura e, às vezes, até mesmo uma ameaça à</p><p>vida. Esse é o caso especialmente para os homens. As</p><p>mulheres, independentemente dos nossos traumas de infância,</p><p>recebemos apoio cultural para cultivar um interesse pelo amor.</p><p>Embora uma lógica machista sustente esse apoio, isso ainda</p><p>significa que mulheres são muito mais propensas a receber</p><p>suporte tanto para pensar no amor quanto para valorizar o seu</p><p>significado. Nosso anseio pelo amor pode ser expresso e</p><p>afirmado. Entretanto, isso não significa que as mulheres sejam</p><p>mais capazes de amar do que os homens.</p><p>Mulheres são encorajadas pelo pensamento patriarcal a</p><p>acreditar que deveríamos ser amorosas, mas isso não significa</p><p>que sejamos mais equipadas emocionalmente do que nossos</p><p>semelhantes do sexo masculino para fazer o trabalho amoroso.</p><p>Com medo do amor, muitas de nós nos concentramos em</p><p>encontrar um parceiro. O grande sucesso de livros como The</p><p>Rules: Time-Tested Secrets for Capturing the Heart of Mister</p><p>Right [As regras: segredos testados através dos tempos para</p><p>capturar o coração do homem certo], que estimulam mulheres a</p><p>enganar e manipular para conseguir parceiros, expressam o</p><p>cinismo dos nossos tempos. Esses livros validam as ideias</p><p>machistas e antiquadas em torno da diferença sexual e</p><p>estimulam as mulheres a acreditarem que nenhum</p><p>relacionamento entre um homem e uma mulher pode ser</p><p>baseado em respeito mútuo, franqueza e carinho. A mensagem</p><p>que transmitem às mulheres é de que relacionamentos são</p><p>sempre e apenas associados ao poder, à manipulação e à</p><p>coerção, que têm a ver com conseguir que alguém faça o que</p><p>você quer, mesmo contra a vontade da pessoa. Eles ensinam</p><p>mulheres a usar ardis femininos para jogar o jogo do poder, mas</p><p>não oferecem orientações sobre como amar e ser amada.</p><p>Muitos livros populares de autoajuda normalizam o machismo.</p><p>Em vez de associar modos de ser, geralmente considerados</p><p>inatos, a comportamentos aprendidos que ajudam a sustentar a</p><p>dominação masculina, agem como se essas diferenças não</p><p>estivessem carregadas de valores ou não fossem políticas, e sim</p><p>intrínsecas e místicas. Nesses livros, a incapacidade e/ou recusa</p><p>masculina de expressar sentimentos de forma honesta é tratada</p><p>com frequência como uma virtude masculina que as mulheres</p><p>deveriam aprender a aceitar, em vez de um hábito aprendido que</p><p>cria isolamento emocional e alienação. John Gray se refere a</p><p>isso como “homens entrando na caverna”, e considera como</p><p>dado que uma mulher que incomoda seu companheiro quando</p><p>ele quer se isolar será punida. Gray acredita que é o</p><p>comportamento feminino que precisa mudar. Livros de autoajuda</p><p>que são contra a igualdade de gênero frequentemente</p><p>apresentam o excesso de investimento feminino no cuidado</p><p>como “natural”, uma qualidade inerente em vez de uma forma</p><p>aprendida de cuidado. Há todo um malabarismo para fazer</p><p>parecer que as evocações místicas new age ao yin e yang, à</p><p>androginia masculina e feminina, e por aí vai, não são os</p><p>mesmos estereótipos machistas empacotados numa embalagem</p><p>mais sedutora.</p><p>Para conhecer o amor, devemos abrir mão do nosso apego ao</p><p>pensamento machista em todas as formas pelas quais ele se</p><p>apresenta em nossa vida. Esse apego sempre nos fará voltar ao</p><p>conflito de gênero, uma forma de pensar nos papéis sexuais que</p><p>diminui mulheres e homens. Para praticar a arte do amor,</p><p>primeiro temos que escolher o amor — admitir para nós mesmas</p><p>que queremos conhecer o amor e amar, ainda que não saibamos</p><p>o que isso significa. Os profundamente cínicos, que deixaram</p><p>completamente de acreditar no poder do amor, precisam ter fé e</p><p>dar um passo em direção ao desconhecido. Em O caminho para</p><p>o amor: renovando o poder do espírito em sua vida, Deepak</p><p>Chopra nos convoca a lembrar de que tudo o que o amor se</p><p>propõe a fazer é possível:</p><p>A necessidade dolorosa criada pela falta de amor só pode ser</p><p>preenchida aprendendo outra vez a amar e ser amado. Nós</p><p>devemos descobrir por contra própria que o amor é uma força</p><p>tão real quanto a gravidade, e que ser sustentado pelo amor</p><p>todos os dias, a cada hora, a cada minuto, não é fantasia — é</p><p>desejado que este seja o nosso estado natural.</p><p>Ninguém diz à maioria dos homens que eles precisam ser</p><p>diariamente sustentados pelo amor. O pensamento machista</p><p>geralmente os impede de reconhecer seu anseio por amor ou a</p><p>aceitação de uma mulher como alguém que possa guiá-los no</p><p>caminho do amor.</p><p>Com bastante frequência, as mulheres são ensinadas desde a</p><p>infância, seja pelos adultos responsáveis ou pela mídia, a como</p><p>dar cuidados básicos que são parte da prática do amor. Nós</p><p>recebemos orientações sobre como sermos empáticas, como</p><p>cuidar e, o mais importante, como ouvir. Geralmente não somos</p><p>socializadas nessas práticas para sermos amorosas ou</p><p>compartilharmos esse conhecimento com os homens, mas para</p><p>que sejamos maternais em relação às crianças. De fato, muitas</p><p>mulheres adultas abandonam prontamente sua compreensão</p><p>básica das formas de demonstrar carinho e respeito (ingredientes</p><p>importantes do amor) para se ressocializar de modo que possam</p><p>se unir a parceiros patriarcais (homens ou mulheres) que não</p><p>sabem nada sobre o amor ou sobre os fundamentos básicos do</p><p>cuidado. Uma mulher que nunca se submeteria a ser xingada e</p><p>humilhada por uma criança pode tolerar esse comportamento de</p><p>um homem. O respeito que uma mulher exige e mantém numa</p><p>relação entre mãe e filho/a não é considerado importante em</p><p>vínculos entre adultos caso exigir respeito de um homem interfira</p><p>em seu desejo de conseguir e manter um companheiro.</p><p>Poucos cuidadores parentais ensinam as crianças a mentir.</p><p>No entanto, mentir continuamente, seja enganando abertamente</p><p>ou omitindo, muitas vezes é considerado um comportamento</p><p>aceitável e perdoável para homens adultos. Escolher agir com</p><p>honestidade é o primeiro passo no processo do amor. Não há um</p><p>praticante do amor que engane. Uma vez feita a escolha de ser</p><p>honesta, o próximo passo a ser dado pela pessoa no caminho do</p><p>amor é a comunicação. Refletindo sobre a importância de ouvir,</p><p>em The Healing of America, Marianne Williamson chama atenção</p><p>para a insistência do filósofo Paul Tillich de que a primeira</p><p>responsabilidade do amor é ouvir:</p><p>Não podemos aprender a nos comunicar profundamente até</p><p>que aprendamos a ouvir, não apenas uns aos outros, mas</p><p>também a nós mesmos e a Deus. O silêncio devocional é uma</p><p>ferramenta poderosa para a cura de um coração ou a cura de</p><p>uma nação […]. Dali, nos movemos ao próximo patamar da</p><p>escada da cura: nossa capacidade de comunicar nossa</p><p>verdade autêntica e de curar e sermos curadas por seu poder.</p><p>Escutar não significa simplesmente ouvir outras vozes quando</p><p>elas falam conosco, mas aprender a ouvir a voz de nosso próprio</p><p>coração, assim como nossa voz interior.</p><p>Entrar em contato com o desamor</p><p>interior e deixar que essa</p><p>ausência de amor expresse sua dor é uma forma de retomar a</p><p>jornada em direção ao amor. Nos relacionamentos, sejam</p><p>heterossexuais ou homossexuais, o parceiro que está sofrendo</p><p>geralmente acha que seu companheiro não está disposto a</p><p>“ouvir” a dor. É comum que mulheres me digam que se sentem</p><p>emocionalmente derrotadas quando seus parceiros se recusam a</p><p>ouvir ou falar. Quando mulheres se comunicam a partir de um</p><p>lugar de dor, isso em geral é qualificado como “irritante”. Às</p><p>vezes, mulheres escutam repetidamente que seus companheiros</p><p>estão “de saco cheio de ouvir essa merda”. Em ambos os casos,</p><p>a autoestima se enfraquece. Nós, que fomos feridas na infância,</p><p>muitas vezes fomos constrangidas e humilhadas quando</p><p>expressamos dor. É emocionalmente devastador quando os</p><p>companheiros que escolhemos não nos ouvem. Companheiros</p><p>que são incapazes de reagir com compaixão quando nos</p><p>escutam falar sobre nossa dor, possam eles compreendê-la ou</p><p>não, quase sempre são incapazes de ouvir, porque a dor</p><p>expressada serve de gatilho para seus próprios sentimentos de</p><p>impotência e desamparo. Muitos homens nunca querem se sentir</p><p>desamparados e vulneráveis. Às vezes, eles escolherão silenciar</p><p>uma companheira com violência em vez de testemunhar</p><p>vulnerabilidade emocional. Quando um casal consegue identificar</p><p>essa dinâmica, pode trabalhar a questão do cuidado, de ouvir as</p><p>dores um do outro engajando-se em conversas curtas em</p><p>momentos adequados (isto é, não adianta tentar falar da sua dor</p><p>para quem está exausto, irritado, preocupado até os ossos etc.).</p><p>Definir um momento em que os dois indivíduos se reúnem para</p><p>ter uma conversa com escuta compassiva melhora a</p><p>comunicação e a conexão. Quando estamos comprometidos em</p><p>fazer o trabalho do amor, nós escutamos até quando nos dói.</p><p>O popular tratado A trilha menos percorrida, de M. Scott Peck,</p><p>destaca e reforça a importância do compromisso. Disciplina e</p><p>devoção são necessárias para a prática do amor, ainda mais no</p><p>início dos relacionamentos. De acordo com Peck:</p><p>Seja ou não superficial, o compromisso é a base de qualquer</p><p>relacionamento genuinamente amoroso. O compromisso</p><p>profundo não garante o sucesso da relação, mas ajuda mais a</p><p>garanti-la do que qualquer outro fator. […] Qualquer um que</p><p>esteja realmente preocupado com o crescimento espiritual do</p><p>outro sabe, consciente ou instintivamente, que só pode</p><p>alimentar esse crescimento através de um relacionamento</p><p>constante.</p><p>Viver numa cultura em que somos encorajados a procurar alívio</p><p>rápido para qualquer dor ou desconforto criou uma nação de</p><p>indivíduos facilmente devastados pela dor emocional, embora ela</p><p>seja relativa. Quando encaramos a dor nos relacionamentos,</p><p>nossa primeira reação geralmente é cortar os laços em vez de</p><p>manter o compromisso.</p><p>Quando seguimos o caminho do amor e o conflito emerge</p><p>dentro de nós, ou entre nós e outras pessoas, é desanimador,</p><p>especialmente quando não conseguimos lidar com nossas</p><p>dificuldades facilmente. No caso dos relacionamentos</p><p>românticos, muitas pessoas temem ficar aprisionadas num</p><p>vínculo que não está funcionando, então fogem no início do</p><p>conflito. Ou, de modo autoindulgente, criam conflitos</p><p>desnecessários como forma de evitar o compromisso. Elas</p><p>fogem do amor antes de conhecer a sua graça. A dor pode ser o</p><p>limiar que precisam cruzar para participar da felicidade do amor.</p><p>Ao fugir da dor, elas nunca conhecem a totalidade do prazer de</p><p>amar.</p><p>Falsas noções sobre o amor nos ensinam que ele é o lugar</p><p>onde não sentiremos dor, onde estaremos constantemente em</p><p>êxtase. Temos de expor a falsidade dessas crenças para ver e</p><p>aceitar a realidade de que o sofrimento e a dor não acabam</p><p>quando começamos a amar. Em alguns casos, quando estamos</p><p>fazendo a lenta jornada de regresso do desamor para o amor,</p><p>nosso sofrimento pode se tornar mais intenso. Como a letra de</p><p>antigos spirituals 9 testemunha, “o choro pode durar uma noite,</p><p>mas a alegria vem pela manhã”. A aceitação da dor é parte da</p><p>prática do amor. Ela nos permite distinguir o sofrimento</p><p>construtivo da dor autoindulgente. Como a promessa do amor</p><p>nunca foi realizada na nossa vida, talvez a prática mais difícil do</p><p>amor seja confiar que a passagem pelo abismo doloroso conduz</p><p>ao paraíso. Em Lessons in Love: The Transformation of Spirit</p><p>Through Intimacy [Lições sobre o amor: a transformação do</p><p>espírito através da intimidade], Guy Corneau sugere que muitos</p><p>homens têm tanto medo de sentir a dor emocional que ficou</p><p>trancada dentro deles por tanto tempo que voluntariamente</p><p>escolhem uma vida de desamor: “Um grande número de homens</p><p>simplesmente decide não se comprometer, porque não consegue</p><p>lidar com a dor emocional do amor e com os conflitos que ele</p><p>engendra”. Mulheres frequentemente são diminuídas por</p><p>tentarem ressuscitar esses homens e trazê-los de volta à vida e</p><p>ao amor. Eles são, de fato, as verdadeiras belas adormecidas.</p><p>Poderíamos estar vivendo num mundo ainda mais alienado e</p><p>violento se as mulheres não realizassem o trabalho de ensinar</p><p>aos homens que perderam o contato consigo mesmos como</p><p>viver novamente. Esse trabalho do amor só é fútil quando os</p><p>homens em questão se recusam a acordar, se recusam a</p><p>crescer. Nesse ponto, é um gesto de amor-próprio das mulheres</p><p>romper a relação e seguir em frente.</p><p>Mulheres têm se esforçado em guiar homens para o amor</p><p>porque o pensamento patriarcal sanciona esse trabalho ainda</p><p>que o sabote, ensinando os homens a recusarem tais</p><p>orientações. Cria-se um arranjo generificado no qual os homens</p><p>dispõem de mais chances de ter suas necessidades emocionais</p><p>atendidas, enquanto as mulheres se mantêm em privação. Ter</p><p>suas necessidades emocionais atendidas ajuda a criar maior</p><p>bem-estar psicológico. Como consequência disso, os homens</p><p>recebem uma vantagem que coincide claramente com a</p><p>insistência patriarcal de que são superiores e, portanto, mais</p><p>adequados para governar os outros. Caso as necessidades</p><p>emocionais das mulheres fossem atendidas, se a reciprocidade</p><p>fosse a norma, a dominação masculina perderia o seu encanto.</p><p>Infelizmente, o movimento de homens que surgiu como resposta</p><p>à crítica feminista a uma masculinidade machista com frequência</p><p>encorajava os homens a entrar em contato com seus</p><p>sentimentos, mas a só compartilhá-los em um contexto “seguro”,</p><p>geralmente entre outros homens. Robert Bly, um dos principais</p><p>líderes desse movimento, tinha pouco a dizer sobre os homens e</p><p>o amor. Os homens no movimento não estimulavam uns aos</p><p>outros a buscar mulheres conscientes à procura de orientações</p><p>no caminho do amor.</p><p>Aqueles que escolhem seguir a trilha do amor estão bem</p><p>servidos caso tenham um guia. Esse guia pode nos ajudar a</p><p>ultrapassar o medo se confiarmos que ele não nos levará pelo</p><p>mau caminho nem nos abandonará no meio da jornada. Sempre</p><p>me surpreendo com quanto confiamos corajosamente em</p><p>estranhos. Ficamos doentes e entramos em hospitais onde</p><p>depositamos nossa confiança num grupo de pessoas que não</p><p>conhecemos, na esperança de que elas nos façam melhorar.</p><p>Contudo, frequentemente tememos depositar nossa confiança</p><p>emocional em indivíduos queridos que podem ser amigos leais</p><p>por toda a vida. Isso é simplesmente um pensamento</p><p>equivocado, e que deve ser superado para sermos</p><p>transformados pelo amor.</p><p>A prática do amor exige tempo. Sem dúvida, a maneira como</p><p>trabalhamos nesta sociedade deixa os indivíduos com tão pouco</p><p>tempo que, quando não estamos trabalhando, estamos física ou</p><p>emocionalmente cansados para trabalhar na arte de amar.</p><p>Quantas vezes ouvimos alguém dizer que trabalhava tanto que</p><p>não tinha tempo para o amor, de modo que precisou diminuir o</p><p>ritmo ou sair do emprego para criar espaço para amar? Embora</p><p>filmes como Uma Segunda Chance (1991) e O Pescador de</p><p>Ilusões (1991) teçam narrativas sentimentais sobre homens de</p><p>classe alta sofrendo de doenças que põem sua vida em risco e</p><p>os levam a reavaliar como gastam seu tempo, na vida real ainda</p><p>não vemos muitos exemplos de homens e mulheres poderosos</p><p>fazendo pausas a fim de criar um espaço para realizar o trabalho</p><p>do amor em sua vida. Certamente, indivíduos que amam alguém</p><p>que está mais preocupado com o trabalho sentem uma imensa</p><p>frustração quando se arriscam a guiar o parceiro no caminho do</p><p>amor. Sinceramente, não haveria problema de desemprego em</p><p>nosso país se nossos impostos subsidiassem escolas onde todos</p><p>pudessem aprender a amar. Empregos compartilhados poderiam</p><p>se tornar a norma. Com o amor no centro de nossa vida, o</p><p>trabalho poderia ter um significado e um foco diferentes.</p><p>Quando praticamos o amor, queremos nos doar mais. O</p><p>egoísmo e a recusa em aceitar o outro são motivos centrais do</p><p>fracasso nos relacionamentos amorosos. Em Love the Way You</p><p>Want It: Using Your Head in Matters of the Heart [Ame do jeito</p><p>que você quiser: usando a cabeça para assuntos do coração],</p><p>Robert Sternberg confirma:</p><p>Se nos perguntassem a causa mais frequente da destruição</p><p>de relacionamentos […] eu diria que é o egoísmo. Vivemos</p><p>numa era de narcisismo, e muitas pessoas nunca aprenderam</p><p>ou esqueceram como ouvir as necessidades dos outros. A</p><p>verdade é que, se você quiser fazer uma única mudança em si</p><p>mesmo que melhore o seu relacionamento — literalmente, do</p><p>dia para a noite —, essa mudança seria pôr os interesses de</p><p>seu parceiro em pé de igualdade com os seus.</p><p>Dar generosamente nas relações românticas e em todos os</p><p>outros vínculos significa reconhecer quando a outra pessoa</p><p>precisa da nossa atenção. Atenção é um recurso importante.</p><p>O compartilhamento generoso de recursos é uma forma</p><p>concreta de expressar amor. Esses recursos podem ser tempo,</p><p>atenção, objetos materiais, habilidades, dinheiro etc. Uma vez</p><p>que embarcamos no caminho do amor, vemos como é fácil doar.</p><p>Um presente útil que todo praticante do amor pode oferecer é o</p><p>perdão. Ele não apenas permite que nos movamos para além da</p><p>culpa, deixando de ver os outros como a causa de nosso</p><p>desamor constante, como nos possibilita experimentar a</p><p>capacidade de agir, sabendo que podemos ser responsáveis por</p><p>dar e encontrar amor. Precisamos não culpar os outros pelos</p><p>nossos sentimentos de escassez, pois sabemos como supri-los.</p><p>Nós sabemos como nos dar amor e como reconhecer o amor que</p><p>existe em tudo à nossa volta. Muito da raiva e da fúria que</p><p>sentimos em relação à ausência emocional é liberada quando</p><p>perdoamos a nós mesmos e aos outros. O perdão nos abre e nos</p><p>prepara para receber amor. Prepara o caminho para que doemos</p><p>de todo o coração.</p><p>Dar nos põe em comunhão com todos. É uma forma de</p><p>compreendermos que há realmente o suficiente de tudo para</p><p>todos. Na tradição cristã, ouvimos que dar “abre as janelas do</p><p>paraíso”, sendo-nos oferecida “uma bênção que não temos</p><p>espaço suficiente para receber”. Na sociedade patriarcal, a</p><p>melhor maneira de homens que querem romper com a</p><p>dominação começarem a prática do amor é a doação e a</p><p>generosidade. É por isso que pensadoras feministas exaltavam</p><p>as virtudes da atuação dos homens na criação dos filhos.</p><p>Trabalhando como cuidadores de crianças pequenas, muitos</p><p>homens são capazes de experimentar pela primeira vez a alegria</p><p>de servir.</p><p>Ao darmos uns aos outros, aprendemos a experimentar a</p><p>reciprocidade. Para curar a guerra entre os gêneros baseada em</p><p>lutas por poder, mulheres e homens escolhem fazer da</p><p>reciprocidade a base de seus vínculos, garantindo que o</p><p>crescimento de cada pessoa seja importante e seja estimulado.</p><p>Isso aprimora nossa capacidade de conhecer a alegria. Em A</p><p>Heart as Wide as the World: Stories on the Path of</p><p>Lovingkindness [Um coração tão vasto quanto o mundo: histórias</p><p>sobre o caminho da gentileza amorosa], Sharon Salzberg</p><p>escreve: “A prática da generosidade nos liberta da sensação de</p><p>isolamento que emerge do apego e da busca por segurança”.</p><p>Cultivar um coração generoso, que é, de acordo com Salzberg,</p><p>“a qualidade mais importante de uma mente desperta”, fortalece</p><p>os laços românticos. Dar é o modo de aprender a receber. A</p><p>prática de dar e receber mutuamente é um ritual diário quando</p><p>conhecemos o amor verdadeiro. Um coração generoso está</p><p>sempre aberto, sempre pronto para receber nossas idas e</p><p>vindas. Em meio a tal amor, nunca precisamos temer o</p><p>abandono. Este é o presente mais precioso que o amor</p><p>verdadeiro nos oferece: a experiência de saber que sempre</p><p>fazemos parte.</p><p>Doar cura o espírito. Somos exortados pela tradição espiritual</p><p>a presentear aqueles que conhecem o amor. O amor é uma</p><p>ação, uma emoção participativa. Quando nos engajamos num</p><p>processo de amor-próprio ou de amar os outros, devemos nos</p><p>mover além do reino do sentimento para tornar o amor real. É por</p><p>isso que é útil ver o amor como uma prática. Quando agimos,</p><p>não precisamos nos sentir inadequados ou impotentes; podemos</p><p>confiar que existem passos concretos para trilhar o caminho do</p><p>amor. Aprendemos a nos comunicar, a nos aquietar e a ouvir as</p><p>necessidades de nossos corações, e aprendemos a ouvir os</p><p>outros. Aprendemos compaixão ao estarmos dispostos a ouvir a</p><p>dor, assim como a alegria, daqueles que amamos. O caminho</p><p>para o amor não é árduo ou oculto, mas precisamos escolher dar</p><p>o primeiro passo. Se não conhecemos o caminho, sempre há um</p><p>espírito amoroso com uma mente aberta e iluminada, capaz de</p><p>nos mostrar como pegar a trilha que leva ao coração do amor, o</p><p>caminho que nos leva de volta ao amor.</p><p>9. Spirituals são um tipo de canção religiosa popular muito associada à experiência da</p><p>escravidão no sul dos Estados Unidos, e que se difundiu do final do século ����� até a</p><p>abolição, nos anos 1860. [�.�.]</p><p>10.</p><p>romance:</p><p>o doce amor</p><p>Doce amor, diz</p><p>Onde, como e quando</p><p>O que queres tu de mim?</p><p>[…]</p><p>Sou tua, para ti nasci:</p><p>O que queres tu de mim?</p><p>— Santa Teresa d’Ávila</p><p>Para regressar ao amor, para alcançar o amor que sempre</p><p>quisemos mas nunca tivemos, para ter o amor que queremos</p><p>mas não estamos preparados para dar, procuramos</p><p>relacionamentos românticos. Nós acreditamos que esses</p><p>relacionamentos, mais que quaisquer outros, vão nos resgatar e</p><p>nos redimir. O amor verdadeiro de fato tem o poder de redimir,</p><p>mas só se estivermos prontos para a redenção. O amor nos</p><p>salva apenas se quisermos ser salvos. Muitas pessoas que</p><p>buscam o amor foram ensinadas na infância a se sentirem</p><p>indignas, a sentir que ninguém poderia amá-las como realmente</p><p>eram, e construíram um falso self. Na vida adulta, elas conhecem</p><p>pessoas que se apaixonam por esse falso self. No entanto, esse</p><p>amor não dura. Em algum ponto, relances do verdadeiro self</p><p>emergem e a decepção vem. Com a rejeição pela pessoa</p><p>amada, a mensagem recebida na infância se confirma: ninguém</p><p>poderia amá-las como realmente são.</p><p>Poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo</p><p>capacidade de receber amor. Criamos envolvimentos amorosos</p><p>condenados a repetir nossos dramas familiares. Geralmente não</p><p>sabemos que isso vai acontecer, precisamente porque</p><p>crescemos numa cultura que nos diz que não importa o que</p><p>experimentamos ou vivemos em nossa infância, não importa a</p><p>dor, a tristeza, a alienação, o vazio, pouco importa a extensão de</p><p>nossa desumanização, o amor romântico será nosso.</p><p>Acreditamos que vamos encontrar a garota dos nossos sonhos.</p><p>Acreditamos que “um dia o nosso príncipe chegará”. Eles</p><p>aparecem do jeito como imaginamos que seria. Queríamos que a</p><p>pessoa amada aparecesse, mas a maioria de nós não tinha</p><p>realmente clareza do que fazer com ela — o que era o amor, o</p><p>que queríamos fazer e como faríamos. Não estávamos prontos</p><p>para abrir completamente nosso coração.</p><p>Em seu primeiro livro, O olho mais azul, a romancista Toni</p><p>Morrison identifica a ideia do amor romântico como uma “das</p><p>ideias mais destrutivas na história do pensamento humano”. Sua</p><p>destrutividade habita na noção de que alcançamos o amor sem</p><p>vontade e sem capacidade de escolher. Essa ilusão, perpetuada</p><p>por tantas narrativas românticas, se mantém como uma barreira</p><p>que nos impede de aprender a amar. Para preservar nossa</p><p>fantasia, substituímos o amor pelo romance.</p><p>Quando a relação romântica é representada como um projeto</p><p>— ou, pelo menos, assim a mídia, especialmente o cinema,</p><p>gostaria que acreditássemos —, mulheres são as arquitetas e</p><p>projetistas. Todo mundo gosta de imaginar que mulheres são</p><p>românticas, sentimentais em relação ao</p><p>amor, e que os homens</p><p>as acompanham até onde elas querem chegar. Mesmo em</p><p>relações não heterossexuais, o paradigma de líder e seguidor</p><p>frequentemente prevalece, com uma pessoa assumindo o papel</p><p>considerado feminino e a outra, o papel designado como</p><p>masculino. Sem dúvida foi alguém desempenhando o papel de</p><p>líder que surgiu com a ideia de que “caímos de amor” ao nos</p><p>apaixonarmos, de que não temos escolha e decisão quando</p><p>escolhemos um parceiro porque, quando existe química, quando</p><p>há um clique, simplesmente acontece — somos subjugados —,</p><p>perdemos o controle. Essa forma de pensar o amor parece ser</p><p>especialmente útil para homens que são socializados por meio</p><p>de ideias patriarcais de masculinidade para não entrar em</p><p>contato com o que sentem. No ensaio “Love and Need”, Thomas</p><p>Merton argumenta: “A expressão ‘cair de amores’ reflete uma</p><p>atitude peculiar em relação ao amor e à própria vida — uma</p><p>mistura de medo, espanto, fascinação e confusão. Ela implica</p><p>suspeita, dúvida, hesitação na presença de algo inevitável,</p><p>embora não de todo confiável”. Se você não sabe o que sente, é</p><p>difícil escolher amar; é melhor cair. Assim você não precisa ser</p><p>responsável por suas ações.</p><p>Ainda que psicanalistas — de Fromm, nos anos 1950, a Peck,</p><p>nos dias de hoje — critiquem a ideia de que “caímos de amores”,</p><p>continuamos a reforçar a fantasia de uma união sem esforço.</p><p>Seguimos acreditando que somos arrastados, arrebatados, que</p><p>não temos escolha nem vontade. Em A arte de amar, Fromm fala</p><p>diversas vezes do amor como uma ação, “essencialmente um ato</p><p>da vontade”. Ele afirma: “Amar alguém não é apenas um</p><p>sentimento forte: é uma decisão, um julgamento, uma promessa.</p><p>Se o amor fosse apenas um sentimento, não haveria base para a</p><p>promessa de amar um ao outro para sempre. O sentimento vem</p><p>e pode ir-se”. Peck trabalha a partir da definição de Fromm</p><p>quando descreve o amor como a vontade de se empenhar para</p><p>promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa,</p><p>acrescentando: “O desejo de amar não é amor. O amor se</p><p>expressa amando. É um ato da vontade — isto é, tanto uma</p><p>intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha.</p><p>Nós não temos de amar. Escolhemos amar”. Apesar desses</p><p>insights brilhantes e dos conselhos sábios que oferecem, a</p><p>maioria das pessoas continua relutante em abraçar a ideia de</p><p>que é mais verdadeiro, mais real, pensar em escolher amar que</p><p>se apaixonar.</p><p>Ao descrever nossos desejos românticos em Life Preservers</p><p>[Preservadores da vida], a terapeuta Harriet Lerner observa que</p><p>a maioria das pessoas quer um parceiro “que seja maduro e</p><p>inteligente, leal e confiável, amoroso e atento, sensível e franco,</p><p>gentil e estimulante, competente e responsável”.</p><p>Independentemente da intensidade desse desejo, ela conclui:</p><p>“Poucos de nós avaliamos um possível parceiro com a mesma</p><p>objetividade e clareza que podemos usar para avaliar um</p><p>eletrodoméstico ou um carro”. Para sermos capazes de avaliar</p><p>criticamente um parceiro, precisaríamos dar um passo atrás e</p><p>olhar criticamente para nós mesmos, nossas necessidades,</p><p>desejos e anseios. Para mim, foi difícil pegar de fato um pedaço</p><p>de papel e me avaliar para saber se eu era capaz de dar o amor</p><p>que eu queria receber. E ainda mais difícil foi fazer uma lista das</p><p>qualidades que gostaria de encontrar num parceiro. Listei dez</p><p>itens. E então, quando apliquei essa lista a homens que eu tinha</p><p>escolhido como parceiros em potencial, me confrontei</p><p>dolorosamente com a discrepância entre o que eu queria e o que</p><p>eu havia escolhido aceitar. Ao avaliar nossas necessidades e</p><p>então escolher nossos parceiros cuidadosamente, tememos</p><p>descobrir que não há ninguém para amar. A maioria de nós</p><p>prefere ter um parceiro em quem falte algo a não ter parceiro</p><p>algum. Pode-se concluir que talvez estejamos mais interessadas</p><p>em encontrar companhia que em conhecer o amor.</p><p>Várias vezes, quando falo com alguém sobre abordar o amor</p><p>com vontade e intencionalidade, ouço a manifestação do medo</p><p>de que isso acabe com o romance. Simplesmente não vai.</p><p>Abordar o amor romântico a partir de uma base de cuidado,</p><p>conhecimento e respeito na verdade intensifica o romance. Ao</p><p>dedicarmos tempo para nos comunicarmos com um parceiro em</p><p>potencial, não ficamos mais aprisionados pelo medo e pela</p><p>ansiedade subjacentes às interações românticas que acontecem</p><p>sem conversa ou compartilhamento de intenções e desejos.</p><p>Conversei com uma amiga que declarou que sempre teve medo</p><p>extremo de relações sexuais, mesmo com alguém que conhecia</p><p>bem e a quem desejava. Seu medo se enraizava na vergonha</p><p>que ela sentia de seu corpo, aprendida na infância.</p><p>Anteriormente, seus encontros com homens só intensificaram tal</p><p>vergonha. Geralmente, os homens não levavam a ansiedade</p><p>dela a sério. Sugeri que ela poderia tentar convidar o novo</p><p>homem em sua vida para um almoço, com a intenção de</p><p>conversar com ele sobre prazer sexual, do que gostavam e do</p><p>que não gostavam, de suas esperanças e medos. Depois, ela me</p><p>contou que o almoço foi incrivelmente erótico; estabeleceu um</p><p>terreno comum para que os dois se sentissem sexualmente à</p><p>vontade um com o outro quando finalmente alcançaram esse</p><p>estágio em seu relacionamento.</p><p>•••</p><p>A atração erótica frequentemente serve como catalisador para</p><p>uma conexão íntima entre duas pessoas, mas não é um sinal de</p><p>amor. O sexo excitante e prazeroso pode acontecer entre duas</p><p>pessoas que nem sequer se conhecem. No entanto, a vasta</p><p>maioria dos homens em nossa sociedade está convencida de</p><p>que seus desejos eróticos indicam quem eles deveriam e</p><p>poderiam amar. Guiados pelo pênis, seduzidos pelo desejo</p><p>erótico, eles frequentemente acabam em relacionamentos com</p><p>parceiras com quem não compartilham interesses ou valores em</p><p>comum. Na sociedade patriarcal, a pressão sobre os homens</p><p>para apresentarem uma boa “performance” sexual é tão grande</p><p>que eles frequentemente se sentem satisfeitos por estar com</p><p>alguém com quem têm prazer no sexo, ignorando todo o resto.</p><p>Eles encobrem esses erros ao trabalhar demais, ou encontrando</p><p>colegas de quem gostam fora do casamento ou do compromisso</p><p>romântico. É comum que levem muito tempo para identificar o</p><p>desamor que podem sentir. E esse reconhecimento geralmente</p><p>precisa ser ocultado para resguardar a insistência machista de</p><p>que homens nunca admitem fracasso.</p><p>Mulheres raramente escolhem homens apenas com base na</p><p>conexão erótica. Embora a maioria das mulheres reconheça a</p><p>importância do prazer sexual, elas consideram que não é o único</p><p>ingrediente necessário para construir relacionamentos fortes. E,</p><p>vamos encarar a realidade, o fato de o machismo estereotipar as</p><p>mulheres como cuidadoras torna aceitável que elas articulem</p><p>necessidades emocionais. Então, as mulheres são socializadas</p><p>para se preocupar mais com a conexão emocional. Mulheres que</p><p>só passaram a nomear seus anseios eróticos na esteira da</p><p>permissão concedida pelo movimento feminista e pela libertação</p><p>sexual sempre puderam falar de sua fome de amor. Isso não</p><p>significa que encontramos o amor que desejamos. Como os</p><p>homens, nós geralmente nos conformamos com o desamor</p><p>porque somos atraídas por outros aspectos que compõem um</p><p>parceiro. Compartilhar a paixão sexual pode ser uma força que</p><p>une e sustenta um relacionamento problemático, mas não é o</p><p>campo de testes para o amor.</p><p>Essa é uma das grandes tristezas da vida. Com muita</p><p>frequência, mulheres e alguns homens têm seus prazeres</p><p>eróticos mais intensos com parceiros que os ferem de outras</p><p>maneiras. A intensidade da intimidade sexual não serve de</p><p>catalisador para o respeito, o carinho, a confiança, a</p><p>compreensão e o compromisso. Casais que raramente ou nunca</p><p>fazem sexo podem conhecer o amor duradouro. O prazer sexual</p><p>fortalece os laços do amor, mas eles podem existir e ser</p><p>satisfatórios quando o desejo sexual está ausente. No fim, a</p><p>maioria de nós escolheria um grande amor em vez de paixão</p><p>sexual constante, se tivéssemos de optar. Por sorte, não temos</p><p>que fazer essa escolha, porque geralmente temos prazer erótico</p><p>satisfatório com quem amamos.</p><p>O melhor sexo e o sexo mais satisfatório não são a mesma</p><p>coisa. Tive ótimas</p><p>relações sexuais com homens que eram</p><p>terroristas íntimos, homens que seduzem e atraem dando</p><p>justamente o que você sente que o seu coração precisa e então,</p><p>gradual ou abruptamente, param quando percebem ter</p><p>conquistado a sua confiança. E eu me senti intensamente</p><p>realizada sexualmente em vínculos com parceiros amorosos que</p><p>tinham menos habilidade e experiência. Por causa da</p><p>socialização machista, mulheres tendem a pôr a satisfação numa</p><p>perspectiva adequada. Reconhecemos seu valor sem permitir</p><p>que se torne a régua absoluta para uma conexão íntima.</p><p>Mulheres esclarecidas querem encontros eróticos prazerosos</p><p>tanto quanto os homens, mas, no limite, preferimos a satisfação</p><p>erótica dentro de um contexto em que exista conexão íntima,</p><p>amorosa. Se os homens fossem socializados para desejar amor</p><p>tanto quanto são ensinados a desejar sexo, veríamos uma</p><p>revolução cultural. Na situação atual, a maioria dos homens</p><p>tende a se preocupar mais com a performance e a satisfação</p><p>sexual do que com a capacidade de dar e receber amor.</p><p>Ainda que o sexo seja importante, a maioria de nós não é</p><p>mais hábil em articular nossas necessidades e desejos sexuais</p><p>do que em verbalizar o desejo pelo amor. Ironicamente, a</p><p>presença de uma doença sexualmente transmissível que põe a</p><p>vida das pessoas em risco se tornou o motivo pelo qual mais</p><p>casais passaram a se comunicar a respeito de seu</p><p>comportamento erótico. As mesmas pessoas (em especial,</p><p>homens) que até agora declaravam que “muita conversa” tornava</p><p>as coisas menos românticas descobrem que falar não ameaça o</p><p>prazer de modo algum; apenas altera a sua natureza. Onde</p><p>antes o desconhecido era a base para a excitação e a</p><p>intensidade erótica, agora esse papel é desempenhado pelo</p><p>conhecimento. Muitas pessoas que temiam a perda da</p><p>intensidade romântica e/ou erótica fizeram essa mudança radical</p><p>em sua forma de pensar e se surpreenderam ao descobrir que</p><p>suas suposições anteriores de que a conversa matava o romance</p><p>estavam erradas.</p><p>A aceitação cultural dessa mudança mostra que todos somos</p><p>capazes de alterar nossos paradigmas, as formas estruturais de</p><p>pensar e fazer as coisas que se tornam habituais. Somos todos</p><p>capazes de mudar nossas atitudes em relação a “cair de</p><p>amores”. Podemos reconhecer o “clique” que sentimos quando</p><p>conhecemos alguém novo apenas como isso — uma sensação</p><p>misteriosa de conexão que pode ter ou não a ver com amor.</p><p>Podemos vivê-la ou não como sendo a conexão primeva e ao</p><p>mesmo tempo reconhecer que ela nos levará ao amor. Como as</p><p>coisas poderiam ser diferentes se, em vez de dizer “acho que me</p><p>apaixonei”, disséssemos “tenho uma conexão com alguém de um</p><p>jeito que me faz achar que estou a caminho de conhecer o amor”.</p><p>Ou se, em vez de dizermos “estou apaixonada”, disséssemos</p><p>“estou amando” ou “vou amar”. Nossos padrões em torno do</p><p>amor romântico dificilmente mudarão se não mudarmos a nossa</p><p>linguagem.</p><p>Nós todos estamos desconfortáveis com as expressões</p><p>convencionais que usamos para falar do amor romântico. Todos</p><p>sentimos que essas expressões e o pensamento por trás delas</p><p>estão entre os motivos pelos quais entramos em relacionamentos</p><p>que não funcionaram. Quando olhamos para trás, vemos que, em</p><p>larga medida, a maneira como falávamos desses laços</p><p>antecipava o que aconteceria no relacionamento. Eu certamente</p><p>mudei a maneira como falo e penso a respeito do amor em</p><p>resposta à deficiência emocional que eu sentia em mim e nos</p><p>meus relacionamentos. Começando com definições claras de</p><p>amor, sentimento, intenção e vontade, não entro mais em</p><p>relacionamentos com a falta de consciência que me levou a fazer</p><p>com que todos os vínculos fossem pontos de repetição de</p><p>antigos padrões.</p><p>Embora eu tenha experimentado muitas decepções em minha</p><p>jornada para amar e ser amada, ainda acredito no poder</p><p>transformador do amor. A decepção não fez com que eu</p><p>fechasse meu coração. Entretanto, quanto mais falo com as</p><p>pessoas ao meu redor, descubro que a decepção está difundida</p><p>e que isso leva muitas pessoas a serem profundamente cínicas</p><p>em relação ao amor. Muitas simplesmente pensam que o</p><p>valorizamos demais. Nossa cultura pode até dar um valor</p><p>exagerado ao amor como fantasia comovente ou mito, mas não</p><p>faz muito em relação à arte de amar. Nossa decepção é</p><p>direcionada ao amor romântico. Nós fracassamos com o amor</p><p>romântico quando não aprendemos a arte de amar. É comum</p><p>confundirmos uma paixão perfeita com um amor perfeito. Uma</p><p>paixão perfeita acontece quando encontramos alguém que</p><p>parece ter tudo o que queríamos ver em um parceiro. Digo</p><p>“parece” porque a intensidade da conexão geralmente nos cega.</p><p>Vemos aquilo que queremos ver. Em Soul Mates [Almas</p><p>gêmeas], Thomas Moore argumenta que o encantamento da</p><p>ilusão romântica tem seu lugar e que “a alma floresce em</p><p>fantasias efêmeras”. Enquanto a paixão perfeita nos oferece seus</p><p>prazeres e perigos particulares, para quem está em busca do</p><p>amor perfeito isso só pode ser um estágio preliminar do</p><p>processo.</p><p>Nós só podemos ir da paixão perfeita ao amor perfeito quando</p><p>as ilusões passam e somos capazes de usar as energias e a</p><p>intensidade criadas por um laço erótico intenso e irresistível para</p><p>aumentar a autodescoberta. Paixões perfeitas geralmente</p><p>acabam quando despertamos de nosso encantamento e</p><p>descobrimos que apenas nos deixamos levar para longe de nós</p><p>mesmos. As paixões se tornam amor perfeito quando nos dão</p><p>coragem de encarar a realidade, de abraçar nosso verdadeiro</p><p>self. Reconhecer essa relação significativa entre a paixão perfeita</p><p>e o amor perfeito desde o início de um relacionamento pode ser a</p><p>inspiração necessária que nos empodera para escolher o amor.</p><p>Quando amamos com intenção e vontade, demonstrando</p><p>carinho, respeito, conhecimento e responsabilidade, nosso amor</p><p>nos satisfaz. Indivíduos que querem acreditar que não há</p><p>satisfação no amor, que o verdadeiro amor não existe, se</p><p>apegam a tais presunções porque esse desespero é realmente</p><p>mais fácil de encarar do que o fato de que o amor é real, mas</p><p>está ausente de sua vida.</p><p>Nos últimos dois anos, falei muito sobre o amor. Meu tema</p><p>tem sido “amor verdadeiro”. Tudo começou quando passei a falar</p><p>do desejo do meu coração, a dizer para amigos, plateias,</p><p>pessoas sentadas ao meu lado em ônibus e aviões que eu</p><p>“estava procurando o amor verdadeiro”. Com cinismo, quase</p><p>todos os meus interlocutores me informavam que eu estava</p><p>procurando por um mito. Os poucos que ainda acreditavam no</p><p>amor verdadeiro compartilhavam a profunda convicção de que</p><p>“você não pode procurar por ele”, de que, se você estiver</p><p>destinada a isso, “simplesmente vai acontecer”. Eu não apenas</p><p>acredito de todo o meu coração que o amor verdadeiro existe</p><p>como abraço a ideia de que seu acontecimento é um mistério —</p><p>que se dá sem qualquer esforço da vontade humana. E, se esse</p><p>é o caso, ele vai acontecer se procurarmos por ele ou não. No</p><p>entanto, não perdemos o amor ao procurar por ele. De fato,</p><p>aqueles de nós que fomos magoados, decepcionados,</p><p>desiludidos devemos abrir nosso coração se quisermos que o</p><p>amor entre. O ato de se abrir é uma maneira de buscar o amor.</p><p>Eu experimentei o amor verdadeiro. Essa experiência</p><p>intensifica meu anseio e meu desejo pela busca. O amor</p><p>verdadeiro em minha vida me apareceu pela primeira vez num</p><p>sonho. Eu tinha sido convidada para uma conferência sobre</p><p>cinema e estava hesitante em participar. Detesto ser</p><p>bombardeada por um monte de novas ideias de uma vez; eu me</p><p>sinto como se tivesse comido demais. No entanto, sonhei que me</p><p>diziam que, se eu fosse à conferência, conheceria o homem dos</p><p>meus sonhos. As imagens oníricas eram tão vívidas que acordei</p><p>com a sensação de necessidade. Liguei para uma amiga e lhe</p><p>contei a história. Ela concordou em ir à conferência comigo,</p><p>como minha testemunha. Poucas semanas depois, chegamos ao</p><p>evento, no meio de uma sessão em que os debatedores estavam</p><p>no palco. Apontei para o homem cuja imagem tinha aparecido no</p><p>meu sonho. Depois da sessão, eu o conheci e conversamos.</p><p>Conhecê-lo foi como ver um parente ou um amigo que não</p><p>encontrava havia anos. Fomos jantar. Havia um sentimento de</p><p>reconhecimento mútuo entre</p><p>nós, desde o início. Era como se</p><p>nos conhecêssemos. Conforme nossa conversa avançou, ele me</p><p>contou que estava comprometido em um relacionamento. Fiquei</p><p>intrigada e confusa. Eu não podia acreditar que as forças divinas</p><p>do universo me levariam ao homem dos meus sonhos quando</p><p>não havia possibilidade concreta de realizar esses sonhos</p><p>completamente. É claro, aqueles sonhos eram sobre estar em</p><p>uma relação romântica. Esse era o começo de uma lição difícil a</p><p>respeito do amor verdadeiro.</p><p>•••</p><p>Aprendi que podemos encontrar um amor verdadeiro e que</p><p>nossa vida pode ser transformada por tal encontro, mesmo que</p><p>ele não leve ao prazer sexual, a um vínculo de compromisso ou</p><p>mesmo a um contato constante. O mito do amor verdadeiro —</p><p>aquela visão de contos de fadas em que duas almas se</p><p>encontram, se juntam e vivem felizes depois disso — é coisa de</p><p>fantasias infantis. Entretanto, muitos de nós, mulheres e homens,</p><p>carregam essas fantasias para a vida adulta e são incapazes de</p><p>lidar com a realidade do que significa ter uma conexão intensa,</p><p>que altera nossa vida, mas que não levará a um relacionamento</p><p>duradouro ou sequer a um relacionamento. O amor verdadeiro</p><p>nem sempre nos leva ao “viveram felizes para sempre” e, mesmo</p><p>quando leva, sustentar o amor ainda dá trabalho.</p><p>Todas as relações têm altos e baixos. Frequentemente, a</p><p>fantasia romântica alimenta a crença de que dificuldades e</p><p>momentos difíceis são uma indicação de falta de amor, em vez</p><p>de parte do processo. A base do amor é o pressuposto de que</p><p>queremos crescer e nos expandir, nos tornar quem somos</p><p>completamente. Não há mudança que não traga consigo um</p><p>sentimento de desafio e perda. Quando experimentamos o amor</p><p>verdadeiro, pode parecer que nossa vida está em risco; podemos</p><p>nos sentir ameaçados.</p><p>O amor verdadeiro é diferente do amor que está baseado no</p><p>cuidado básico, na boa vontade e na velha e conhecida atração</p><p>diária. Nós todos somos atraídos continuamente pelas pessoas</p><p>(por seu estilo, pelo que pensam, por sua aparência etc.) que</p><p>conhecemos e que, se tivéssemos a chance, poderíamos amar</p><p>de uma hora para outra. No livro Love and Awakening, John</p><p>Welwood faz uma distinção útil entre esse tipo de atração, com a</p><p>qual todos estamos familiarizados, que ele chama de “conexão</p><p>do coração”, e um outro tipo, que ele chama de “conexão da</p><p>alma”. Ele a define assim:</p><p>Uma conexão da alma é uma ressonância entre duas pessoas</p><p>que reagem à beleza essencial da natureza individual uma da</p><p>outra, por trás das fachadas, e se conectam num nível mais</p><p>profundo. Esse tipo de reconhecimento mútuo oferece o</p><p>catalisador para uma alquimia potente. É uma aliança sagrada</p><p>cujo propósito é ajudar ambos os parceiros a descobrir e</p><p>realizar seus potenciais mais profundos. Enquanto uma</p><p>conexão do coração nos permite apreciar as pessoas que</p><p>amamos do jeito como são, uma conexão da alma abre uma</p><p>dimensão mais ampla — vê-las e amá-las pelo que elas</p><p>poderiam ser, e pelo que nós podemos nos tornar</p><p>influenciados por elas.</p><p>Criar uma conexão de coração com alguém geralmente não é um</p><p>processo difícil.</p><p>Ao longo de nossa vida, encontramos muitas pessoas pelas</p><p>quais sentimos aquele clique especial que poderia nos levar para</p><p>o caminho do amor. No entanto, esse clique não é a mesma</p><p>coisa que uma conexão da alma. Frequentemente, um vínculo</p><p>mais profundo com outra pessoa, uma conexão da alma,</p><p>acontece quer desejemos ou não. Na verdade, às vezes somos</p><p>atraídos por alguém sem nem saber por quê, mesmo quando não</p><p>desejamos contato. Muitos casais com os quais conversei e que</p><p>encontraram o amor verdadeiro se divertiam contando que,</p><p>quando se conheceram, um deles não tinha achado o outro nem</p><p>um pouco atraente, embora se sentisse misteriosamente</p><p>interessado por aquele indivíduo. Em todos os casos em que as</p><p>pessoas sentiam que tinham encontrado o amor verdadeiro,</p><p>todas afirmaram que o laço não foi simples ou fácil. Para muita</p><p>gente, isso parece confuso, precisamente porque nossa fantasia</p><p>do amor verdadeiro é de que ele será assim: simples e fácil.</p><p>Geralmente imaginamos que o amor verdadeiro será</p><p>intensamente prazeroso e romântico, cheio de amor e luz. Na</p><p>verdade, o amor verdadeiro está totalmente relacionado ao</p><p>trabalho. O poeta Rainer Maria Rilke observou sabiamente:</p><p>Como em muitos outros casos, as pessoas também</p><p>confundiram o papel do amor na vida, transformaram-no em</p><p>diversão e prazer, porque pensaram que diversão e prazer</p><p>seriam algo mais feliz que o trabalho; mas não há nada mais</p><p>feliz que o trabalho, e o amor, por ser a felicidade extrema, não</p><p>pode ser outra coisa a não ser trabalho.</p><p>A essência do amor verdadeiro é o reconhecimento mútuo —</p><p>dois indivíduos que veem um ao outro como realmente são.</p><p>Todos nós sabemos que a abordagem comum é conhecer</p><p>alguém de quem gostamos e mostrar a melhor versão de nós, ou</p><p>até mesmo um falso self, que acreditamos ser mais simpático</p><p>para a pessoa que queremos atrair. Quando nosso verdadeiro</p><p>self aparece em sua inteireza, quando o bom comportamento se</p><p>torna demais para sustentarmos e as máscaras são retiradas, a</p><p>decepção vem. Com muita frequência, indivíduos sentem, depois</p><p>desse momento — quando os sentimentos estão feridos e o</p><p>coração, partido —, que era um caso de identidade trocada, que</p><p>a pessoa amada era um estranho. Eles viram o que queriam ver,</p><p>em vez do que estava realmente ali.</p><p>O amor verdadeiro é uma história diferente. Quando acontece,</p><p>os indivíduos geralmente se sentem em contato com a identidade</p><p>mais profunda um do outro. Embarcar nesse tipo de</p><p>relacionamento é assustador precisamente porque sentimos que</p><p>não há lugar para nos escondermos. Nós somos conhecidos.</p><p>Todo o êxtase que sentimos emerge conforme esse amor nos</p><p>nutre e nos desafia a crescer e a nos transformar. Descrevendo o</p><p>amor verdadeiro, Eric Butterworth afirma:</p><p>O amor verdadeiro é um tipo peculiar de revelação por meio</p><p>da qual vemos a pessoa em sua inteireza — ao mesmo tempo</p><p>que aceitamos totalmente o nível em que ela se expressa</p><p>agora — sem qualquer ilusão de que o potencial é uma</p><p>história presente. O amor verdadeiro aceita a pessoa que</p><p>agora não tem qualificações, mas mantendo um compromisso</p><p>sincero e constante de ajudá-la a alcançar seus objetivos de</p><p>autodesdobramento — os quais nós poderíamos ver melhor</p><p>que ela.</p><p>Na maior parte do tempo, pensamos que amor significa apenas</p><p>aceitar a outra pessoa como ela é. Quem de nós não aprendeu</p><p>do jeito mais difícil que não podemos mudar uma pessoa, moldá-</p><p>la no ser amado ideal que gostaríamos que fosse. Contudo,</p><p>quando nos comprometemos com o amor verdadeiro, estamos</p><p>comprometidos a sermos mudados, a sermos afetados pela</p><p>pessoa amada de uma maneira que nos permite ser mais</p><p>autorrealizados. Esse compromisso com a mudança é uma</p><p>escolha. Acontece como um acordo mútuo. Repetidamente, as</p><p>declarações mais comuns que ouço serem reafirmadas a</p><p>respeito do amor verdadeiro são de que ele é “incondicional”. O</p><p>amor verdadeiro é incondicional, mas, para desabrochar</p><p>verdadeiramente, demanda um compromisso constante com a</p><p>luta e a transformação construtivas.</p><p>A pulsação do amor verdadeiro é a disposição de refletir sobre</p><p>as próprias ações, processar e comunicar essa reflexão à pessoa</p><p>amada. Como Welwood observa: “Dois seres que têm uma</p><p>conexão de almas querem se engajar num diálogo proveitoso, de</p><p>amplo espectro, e comungar um com o outro da maneira mais</p><p>profunda possível”. Honestidade e abertura são sempre a base</p><p>do diálogo que desperta reflexões. A maioria de nós não foi</p><p>criada em lares onde víamos dois adultos que se amavam</p><p>profundamente conversarem. Nós não vemos isso na televisão e</p><p>nos filmes. Assim, como é que qualquer uma de nós pode se</p><p>comunicar com homens que ouviram durante toda a sua vida que</p><p>não podem expressar como se sentem? Homens que querem</p><p>amar, mas não sabem que, antes, devem aprender a verbalizar,</p><p>devem aprender a deixar seu coração falar — e então a falar a</p><p>verdade. Escolher ser totalmente honesto, revelar quem somos,</p><p>é arriscado. A experiência do amor verdadeiro nos dá coragem</p><p>para correr riscos.</p><p>Enquanto estivermos com medo de arriscar, não podemos</p><p>conhecer o amor. Por isso, o truísmo: “Amar é se desapegar do</p><p>medo”. Nosso coração nos conecta a muitas pessoas ao longo</p><p>de nossa vida, mas a maioria de nós vai para a sepultura sem ter</p><p>a experiência do amor verdadeiro. Isso não é de forma alguma</p><p>trágico, já que a maioria de nós foge quando o verdadeiro amor</p><p>se aproxima. Uma vez que o verdadeiro amor lança luz sobre</p><p>aqueles aspectos de nós que queremos negar ou esconder,</p><p>permitindo que vejamos quem somos claramente e sem</p><p>vergonha, não é surpreendente que tantos indivíduos que dizem</p><p>querer conhecer o amor se afastem quando esse amor lhes</p><p>acena.</p><p>•••</p><p>Não importa com que frequência desviemos nossa mente e</p><p>coração — ou quanto teimemos na recusa em acreditar em sua</p><p>magia —, o amor verdadeiro existe. Todos o desejam, mesmo</p><p>aqueles que dizem que perderam a esperança. Mas nem todo</p><p>mundo está pronto. O amor verdadeiro aparece apenas quando</p><p>nosso coração está pronto. Há alguns anos, fiquei doente e levei</p><p>um daqueles sustos do câncer em que o médico diz que, se seus</p><p>exames derem positivo, você não terá muito tempo de vida. Ao</p><p>ouvir suas palavras, fiquei deitada, pensando: não era possível</p><p>que eu morresse, porque não estava pronta, ainda não havia</p><p>conhecido o amor verdadeiro. Foi então que me comprometi</p><p>comigo mesma a abrir meu coração; eu estava pronta para</p><p>receber esse amor. E ele veio.</p><p>Esse relacionamento não durou para sempre, e foi difícil encarar</p><p>isso. Todas as narrativas românticas da nossa cultura dizem que,</p><p>quando encontramos o amor verdadeiro com um parceiro, a</p><p>relação vai persistir. Mas essa parceria só dura se as duas partes</p><p>se mantiverem comprometidas em amar. Nem todo mundo pode</p><p>suportar o peso do amor verdadeiro. Corações feridos se afastam</p><p>do amor porque não querem fazer o trabalho de cura necessário</p><p>para sustentar e nutrir o amor. Muitos homens, em especial,</p><p>frequentemente se afastam do verdadeiro amor e escolhem</p><p>relacionamentos em que podem se conter emocionalmente</p><p>quando querem, mas ainda assim receberem o amor de outro</p><p>alguém. No fim, escolhem o poder, em vez do amor. Para</p><p>conhecer e manter o amor verdadeiro, temos de estar dispostos</p><p>a abrir mão do desejo de poder.</p><p>Quando alguém conhece o amor verdadeiro, a força</p><p>transformadora desse amor perdura, mesmo quando não temos</p><p>mais a companhia da pessoa com quem experimentamos</p><p>cuidado mútuo e crescimento profundo. Tomas Merton escreve:</p><p>“Nós descobrimos quem somos de verdade no amor”. Muitos de</p><p>nós não estamos prontos para abraçar nosso verdadeiro self,</p><p>principalmente quando viver com integridade nos afasta de</p><p>nossos mundos familiares. Com frequência, quando passamos</p><p>por um processo de autodescoberta, por um tempo, podemos</p><p>nos perceber mais sozinhos. Ao escrever sobre escolher estar só</p><p>em vez de ter uma companhia que não alimenta a alma, Maya</p><p>Angelou nos lembra de que “nunca é solitário na Babilônia”. O</p><p>medo de encarar o amor verdadeiro pode realmente levar alguns</p><p>indivíduos a permanecer em situações de escassez e frustração.</p><p>Lá, eles não estão sozinhos, não correm riscos.</p><p>Amar de forma total e profunda nos coloca em risco. Quando</p><p>amamos, somos completamente transformados. Merton afirma:</p><p>O amor afeta mais que nosso pensamento e nosso</p><p>comportamento em relação a quem amamos. Ele transforma</p><p>nossa vida inteira. O amor verdadeiro é uma revolução</p><p>pessoal. O amor pega suas ideias, seus desejos e suas ações</p><p>e os funde numa experiência e numa realidade vivida que é</p><p>um novo você.</p><p>Nós frequentemente estamos em fuga do “novo você”. Em</p><p>Illusions: The Adventures of a Reluctant Messiah [Ilusões: as</p><p>aventuras de um messias relutante], história de amor</p><p>autobiográfica de Richard Bach, o autor descreve tanto sua fuga</p><p>do amor quanto seu regresso. Para regressar ao amor, ele teve</p><p>de estar disposto a se sacrificar e se render, a abandonar a</p><p>fantasia de ser alguém sem necessidades emocionais constantes</p><p>e reconhecer sua necessidade de amar e ser amado. Nós</p><p>sacrificamos nosso antigo self para sermos transformados pelo</p><p>amor, e nos entregamos ao poder do novo self.</p><p>No contexto dos vínculos românticos, o amor nos oferece uma</p><p>chance única de sermos transformados dentro de uma atmosfera</p><p>celebratória e acolhedora. Sem “cair de amores”, podemos</p><p>reconhecer aquele momento de conexão misteriosa entre a</p><p>nossa alma e a de outra pessoa como a tentativa do amor de nos</p><p>chamar de volta para o nosso verdadeiro self. Intensamente</p><p>conectados com outra alma, nos tornamos ousados e corajosos.</p><p>Ao usar esse desejo destemido de conexão como um catalisador</p><p>para escolher o amor e nos comprometermos com ele, somos</p><p>capazes de amar de verdade e profundamente, de dar e receber</p><p>um amor que perdura, um amor que é “mais forte que a morte”.</p><p>11.</p><p>perda:</p><p>amar na</p><p>vida e</p><p>na morte</p><p>Você precisa confiar que nenhuma amizade tem fim,</p><p>que uma comunhão de santos existe entre todos</p><p>aqueles que, vivos e mortos, verdadeiramente amaram</p><p>uns aos outros e a Deus. Aqueles que você amou</p><p>profundamente e que morreram vivem em você, não</p><p>apenas como memórias, mas como presenças reais.</p><p>— Henri Nouwen</p><p>O amor nos faz sentir mais vivos. Quando vivemos num estado</p><p>de desamor, sentimos que poderíamos muito bem estar mortos;</p><p>tudo dentro de nós é silêncio e imobilidade. “Assassinato da</p><p>alma” é o termo usado pelos psicanalistas para descrever esse</p><p>estado de morte em vida. Ele ecoa a declaração bíblica de que</p><p>“qualquer um que não conhece o amor ainda está na morte”.</p><p>Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso a fascinação</p><p>constante pela violência, a falsa insistência de que é natural os</p><p>fortes atacarem os fracos, os poderosos atacarem os sem poder.</p><p>Em nossa cultura, a adoração da morte é tão intensa que se põe</p><p>como obstáculo ao amor. Em seu leito de morte, Erich Fromm</p><p>perguntou a um amigo querido por que nós preferimos o amor</p><p>pela morte ao amor pela vida, por que “a raça humana prefere a</p><p>necrofilia à biofilia”. Vinda de Fromm, essa questão era</p><p>meramente retórica, pois ele passou a vida explicando nosso</p><p>fracasso cultural em abraçar totalmente a realidade de que o</p><p>amor dá significado à vida.</p><p>Em contraste com o amor, a morte toca a todos nós em algum</p><p>momento. Nós vamos testemunhar a morte dos outros ou vamos</p><p>testemunhar nossa própria morte, ainda que seja naquele breve</p><p>instante em que a vida se esvai. Viver em desamor não é um</p><p>problema sobre o qual reclamamos aberta e prontamente.</p><p>Contudo, a realidade de que vamos todos morrer cria grande</p><p>preocupação, medo e angústia. É bastante possível que o culto à</p><p>morte, indicado pelo espetáculo constante de mortes a que</p><p>assistimos na tela da �� diariamente, seja uma forma pela qual</p><p>nossa cultura tenta paralisar esse medo, conquistá-lo, para nos</p><p>deixar confortáveis. Ao refletir sobre o significado da morte na</p><p>cultura contemporânea, Thomas Merton explica:</p><p>A psicanálise nos ensinou algo sobre o desejo de morte que</p><p>permeia o mundo moderno. Nós descobrimos que nossa rica</p><p>sociedade é profundamente viciada no amor pela morte. […]</p><p>Numa sociedade assim, muito pode ser dito oficialmente a</p><p>respeito de valores humanos, mas quando há, na verdade,</p><p>uma escolha entre os vivos e os mortos, entre homens e</p><p>dinheiro, ou homens e poder, ou homens e bombas, a escolha</p><p>sempre será pela morte, pois a morte é o fim e o objetivo da</p><p>vida.</p><p>Nossa obsessão cultural pela morte consome a energia que</p><p>poderia ser dedicada à arte de amar.</p><p>O culto à morte é um componente central do pensamento</p><p>patriarcal, seja ele expresso por homens ou mulheres. Teólogos</p><p>visionários veem o fracasso da religião como um dos motivos</p><p>pelos quais a nossa cultura continua centrada na morte. No livro</p><p>Original Blessing: A Primer in Creation Spirituality Presented in</p><p>Four Paths, Twenty-Six Themes, and Two Questions [A bênção</p><p>original: uma introdução à espiritualidade da criação apresentada</p><p>em quatro caminhos, 26 temas e duas questões], Matthew Fox</p><p>afirma: “A civilização ocidental preferiu o amor pela morte ao</p><p>amor pela vida, na medida em que suas tradições religiosas</p><p>preferiram a redenção à criação, o pecado ao êxtase, e a</p><p>introspecção individual à consciência e apreciação cósmicas”.</p><p>que dialogam diretamente com o</p><p>pensamento de bell hooks em sua Trilogia do Amor. Exemplos</p><p>disso são os trabalhos de Katiúscia Ribeiro e Wanderson</p><p>Nascimento. Este último tem um artigo escrito em parceria com</p><p>Vinícius da Silva, com o título “Políticas do amor e sociedades do</p><p>amanhã”. Sendo assim, acredito que as lições de bell hooks</p><p>sobre o amor, apresentadas em português pela Editora Elefante,</p><p>servirão para difundir e fortalecer ainda mais essa construção. O</p><p>futuro é ancestral.</p><p>Silvane Silva é doutora em história social pela Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo (���-��) com a tese O</p><p>protagonismo das mulheres quilombolas na luta por direitos em</p><p>comunidades do Estado de São Paulo (1988-2018). Em 2018,</p><p>participou do Programa de Incentivo Acadêmico Abdias do</p><p>Nascimento como pesquisadora visitante no Centro de Estudos</p><p>Latino-Americanos da Universidade da Flórida, nos Estados</p><p>Unidos. É co-organizadora do livro Narrativas quilombolas:</p><p>dialogar, conhecer, comunicar (Imprensa Oficial do Estado de</p><p>São Paulo, 2017). Atua como professora e pesquisadora nas</p><p>temáticas história e cultura afro-brasileira, educação para</p><p>relações étnico-raciais e educação escolar quilombola. É</p><p>pesquisadora do Centro de Estudos Culturais Africanos e da</p><p>Diáspora (Cecafro) da ���-�� e integrante do Grupo de Estudos</p><p>em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de</p><p>São Paulo (���).</p><p>prefácio</p><p>Quando eu era criança, tinha clareza de que não valia a pena</p><p>vivier se não conhecêssemos o amor. Quem me dera pudesse</p><p>dizer que atingi essa consciência por causa do amor que sentia.</p><p>Foi sua falta, no entanto, que me fez saber quanto ele é</p><p>importante. Fui a primeira filha do meu pai. Assim que nasci, fui</p><p>acalentada e tratada com gentileza, de modo a me sentir querida</p><p>neste mundo e em minha casa. Até hoje não consigo me lembrar</p><p>do momento em que esse sentimento de ser amada me deixou.</p><p>Só sei que, um dia, eu já não era preciosa. Aqueles que</p><p>inicialmente me amavam se afastaram. A ausência de seu</p><p>reconhecimento e de sua atenção perfurou meu coração e me</p><p>infligiu uma dor tão profunda que fiquei zonza.</p><p>O luto e a tristeza me esmagaram. Eu não sabia o que tinha</p><p>feito de errado. E, por mais que eu tentasse, não conseguia</p><p>consertar as coisas. Nenhuma outra relação curou a dor daquele</p><p>primeiro abandono, daquele primeiro banimento do paraíso do</p><p>amor. Durante anos vivi uma vida suspensa, presa ao passado,</p><p>incapaz de seguir em direção ao futuro. Como qualquer criança</p><p>ferida, só queria voltar no tempo e estar naquele paraíso outra</p><p>vez, naquele momento de arrebatamento do qual me lembrava,</p><p>em que me senti amada, em que senti pertencimento.</p><p>Nunca podemos voltar. Sei disso agora. Podemos seguir em</p><p>frente. Podemos encontrar o amor pelo qual nosso coração</p><p>anseia, mas não antes de nos desapegarmos do luto em relação</p><p>ao amor perdido há tanto tempo, quando éramos pequenos e não</p><p>tínhamos voz para expressar os desejos de nosso coração.</p><p>Olhando para trás, descobri que todos os anos da minha vida em</p><p>que eu pensava estar em busca do amor foram simplesmente</p><p>tentativas de recuperar o que havia perdido, voltar ao primeiro lar,</p><p>regressar ao arrebatamento do primeiro amor. Eu não estava</p><p>realmente pronta para amar e ser amada no presente. Ainda</p><p>estava de luto — apegada ao coração partido da meninice, a</p><p>conexões desfeitas. Quando o luto acabou, fui capaz de amar</p><p>novamente.</p><p>Despertei do meu estado de transe e fiquei atordoada ao</p><p>descobrir que o mundo em que eu vivia, o mundo do presente, já</p><p>não era um mundo aberto ao amor. E percebi que tudo o que eu</p><p>ouvia ao meu redor evidenciava que o desamor tinha se tornado</p><p>a ordem do dia. Sinto nosso país se afastando do amor com a</p><p>mesma intensidade que senti o abandono do amor na infância.</p><p>Com esse afastamento, nos arriscamos a penetrar em um quadro</p><p>de selvageria de espírito tão intensa que talvez jamais</p><p>encontremos o caminho de volta. Escrevo sobre o amor para dar</p><p>testemunho do perigo desse movimento e também para convocar</p><p>um regresso ao amor. Redimido e recuperado, ele nos leva de</p><p>volta a uma promessa de vida eterna. Quando amamos,</p><p>podemos deixar nosso coração falar.</p><p>introdução</p><p>graça: tocada</p><p>pelo amor</p><p>É possível falar diretamente com o nosso coração. A</p><p>maioria das culturas mais antigas sabe disso.</p><p>Podemos de fato conversar com o nosso coração</p><p>como se ele fosse um bom amigo. A vida moderna se</p><p>tornou tão atribulada com os afazeres e pensamentos</p><p>diários que perdemos essa arte essencial de reservar</p><p>um tempo para conversar com o nosso coração.</p><p>— Jack Kornfield</p><p>Na minha cozinha, estão penduradas quatro fotografias de um</p><p>grafite que vi pela primeira vez num canteiro de obras, anos</p><p>atrás, enquanto caminhava para dar aula na Universidade Yale. A</p><p>frase — “a busca pelo amor continua, mesmo diante das</p><p>improbabilidades” — estava pintada em cores vivas. Naquela</p><p>época, recém-separada de um companheiro depois de quase</p><p>quinze anos juntos, eu era frequentemente soterrada por um luto</p><p>tão profundo que parecia que um imenso mar de dor carregava</p><p>meu coração e minha alma. Dominada pela sensação de ser</p><p>arrastada para debaixo d’água, de me afogar, procurava</p><p>constantemente âncoras que me mantivessem na superfície, que</p><p>me puxassem em segurança de volta para a margem. A frase</p><p>nos tapumes da construção, junto a desenhos infantis de animais</p><p>não identificáveis, sempre animava meu espírito. Toda vez que</p><p>eu passava pelo canteiro de obras, a afirmação da possibilidade</p><p>do amor se espalhando pelo quarteirão me dava esperança.</p><p>Assinada com o primeiro nome de um artista local, a pintura</p><p>falou ao meu coração. Ao ler aquelas palavras, eu tinha certeza</p><p>de que o artista estava passando por uma crise em sua vida, de</p><p>que já tinha confrontado a perda ou estava diante de sua</p><p>possibilidade. Na minha cabeça, mantinha conversas imaginárias</p><p>com ele a respeito do significado do amor. Eu lhe contava que</p><p>seu grafite divertido havia me ancorado e me ajudado a restaurar</p><p>a fé no amor. Falava sobre como a promessa de um amor</p><p>esperando para ser encontrado, um amor pelo qual eu ainda</p><p>podia esperar, me erguia do abismo em que tinha caído. Meu luto</p><p>era uma tristeza pesada e desesperadora, causada pela</p><p>separação de um companheiro de muito anos, mas, o que é mais</p><p>importante, era um desespero enraizado no medo de que o amor</p><p>não existisse, de que não pudesse ser encontrado. Ainda que ele</p><p>estivesse à espreita por aí, talvez jamais o conhecesse em minha</p><p>vida. Havia se tornado difícil, para mim, continuar acreditando na</p><p>promessa do amor quando, para qualquer lugar que eu olhasse,</p><p>o encantamento do poder ou o terror do medo ofuscavam o</p><p>desejo de amar.</p><p>Um dia, a caminho do trabalho, ansiosa pela meditação diária</p><p>provocada pela visão do grafite, fiquei chocada ao ver que a</p><p>construtora havia coberto a pintura com uma tinta branca muito</p><p>brilhante, sob a qual era possível ver os traços esmaecidos da</p><p>arte original. Chateada com o fato de que aquilo que tinha se</p><p>tornado um ritual de afirmação da graça do amor já não estava</p><p>mais lá para me acolher, contei para todo mundo sobre a minha</p><p>decepção. Alguém espalhou o rumor de que o grafite tinha sido</p><p>coberto de branco porque as palavras eram uma referência a</p><p>pessoas vivendo com ��� e de que o artista poderia ser gay.</p><p>Talvez. É igualmente provável que os homens que espalharam</p><p>tinta na parede tenham se sentido ameaçados por essa confissão</p><p>pública do desejo de ser amado — um desejo tão intenso que</p><p>não apenas precisava ser verbalizado, mas também era</p><p>deliberadamente buscado.</p><p>Depois de muito procurar, localizei o artista e conversei com</p><p>ele pessoalmente sobre o significado do amor. Falamos sobre a</p><p>forma como a arte pública pode ser um veículo para compartilhar</p><p>pensamentos de afirmação da vida. E nós dois expressamos</p><p>nosso pesar e nossa contrariedade com o fato de a construtora</p><p>ter coberto insensivelmente uma mensagem de amor tão</p><p>poderosa. Para que eu me lembrasse dos muros, ele me deu</p><p>fotografias do grafite. Desde que nos conhecemos, em todos os</p><p>lugares onde morei, mantive as fotos sobre a pia da cozinha.</p><p>Todos os dias,</p><p>Em sua maioria, perspectivas patriarcais moldaram os</p><p>ensinamentos e as práticas religiosas. Recentemente, houve um</p><p>afastamento desses ensinamentos em direção a uma</p><p>espiritualidade baseada na criação, que promove a vida. Fox</p><p>chama isso de “a via positiva”: “Sem esse enraizamento sólido</p><p>nos poderes da criação, nós nos tornamos pessoas entediadas,</p><p>violentas. Nós nos tornamos necrófilos apaixonados pela morte e</p><p>pelos poderes e principados da morte”. Nós nos afastamos dessa</p><p>adoração pela morte desafiando o patriarcado, criando a paz,</p><p>trabalhando por justiça e abraçando uma ética amorosa.</p><p>Ironicamente, o culto à morte como uma estratégia para lidar</p><p>com o medo subjacente de seu poder não nos consola. Ele</p><p>produz uma ansiedade profunda. Quanto mais assistimos a</p><p>espetáculos de mortes sem sentido, de violência e crueldade</p><p>aleatórias, mais medo sentimos em nosso dia a dia. Não</p><p>podemos abraçar um estranho com amor, pois tememos o</p><p>estranho. Acreditamos que o estranho é um mensageiro da morte</p><p>que deseja a nossa vida. Esse medo irracional é uma expressão</p><p>da loucura, se pensarmos que a loucura significa que perdemos</p><p>o contato com a realidade. Embora seja mais provável que</p><p>sejamos machucados por alguém que conhecemos do que por</p><p>um estranho, nosso medo é direcionado ao desconhecido e ao</p><p>não familiar. Esse medo traz consigo intensa paranoia e</p><p>obsessão constante com segurança. O número crescente de</p><p>condomínios fechados em nosso país é apenas um exemplo da</p><p>obsessão por segurança. Com guardas nos portões, os</p><p>indivíduos ainda têm barreiras e sistemas elaborados de</p><p>vigilância. Estadunidenses gastam mais de trinta bilhões de</p><p>dólares por ano com segurança. Quando fiquei hospedada com</p><p>amigos em um desses condomínios, questionei se toda essa</p><p>segurança era uma reação a um perigo real, e a resposta foi: “Na</p><p>verdade, não”. É o medo da ameaça, em vez da ameaça real, o</p><p>catalisador para uma obsessão por segurança que beira a</p><p>loucura.</p><p>Culturalmente, testemunhamos essa loucura todos os dias.</p><p>Nós todos podemos contar histórias intermináveis de como isso</p><p>se faz presente na vida diária. Por exemplo, um homem branco</p><p>adulto abre a porta quando um jovem asiático toca a campainha.</p><p>Vivemos numa cultura em que, sem reagir a qualquer gesto de</p><p>agressão ou hostilidade por parte do estranho, que apenas está</p><p>perdido e tentando encontrar o endereço correto, o homem</p><p>branco atira nele, acreditando proteger sua vida e sua</p><p>propriedade. Esse é um exemplo cotidiano de loucura. A pessoa</p><p>que é realmente a ameaça aqui é o dono da casa, que foi tão</p><p>bem socializado pelo pensamento da supremacia branca, do</p><p>capitalismo, do patriarcado, que não pode mais reagir</p><p>racionalmente.</p><p>A supremacia branca lhe ensinou que todas as pessoas não</p><p>brancas são ameaças, independentemente de seu</p><p>comportamento. O capitalismo lhe ensinou que, seja qual for o</p><p>custo, sua propriedade pode e deve ser protegida. O patriarcado</p><p>lhe ensinou que sua masculinidade precisa ser provada pela</p><p>disposição em conquistar por meio do medo e da agressão; que</p><p>não seria másculo perguntar antes de agir. Então, a mídia noticia</p><p>o caso no telejornal de um modo que parece quase jocoso e</p><p>celebratório, como se nenhuma tragédia tivesse acontecido,</p><p>como se o sacrifício de uma jovem vida fosse necessário para</p><p>defender o valor da propriedade e a honra patriarcal branca.</p><p>Espectadores são encorajados a sentir simpatia pelo homem</p><p>branco proprietário de uma casa que cometeu um erro. O fato de</p><p>que esse erro provocou a morte violenta de um jovem inocente</p><p>não conta; a narrativa é apresentada de uma maneira que</p><p>encoraja os espectadores a se identificarem com quem cometeu</p><p>o erro, com quem fez o que somos levados a sentir que todos</p><p>devemos fazer para “proteger nossa propriedade a todo custo de</p><p>qualquer sensação de ameaça”. Essa é a aparência do culto à</p><p>morte.</p><p>Toda adoração à morte que vemos em nossas televisões,</p><p>todas as mortes que testemunhamos diariamente não nos</p><p>preparam de jeito algum para encarar a mortalidade com</p><p>consciência, clareza ou paz de espírito. Quando o culto à morte</p><p>está fundamentado no medo, ele não nos permite viver</p><p>plenamente ou bem. Merton argumenta: “Se nos tornamos</p><p>obcecados com a ideia da morte escondida, esperando por nós</p><p>numa emboscada, não estamos tornando a morte mais real, mas</p><p>a vida menos real. Nossa vida é dividida contra si mesma. Ela se</p><p>torna um cabo de guerra entre o amor e o medo de si mesma.</p><p>Então a morte opera no centro da vida, não em seu fim, mas</p><p>como medo da vida”. Para viver plenamente, precisaríamos</p><p>abandonar o nosso medo de morrer. Esse medo só pode ser</p><p>abordado a partir do amor pela vida. Nos Estados Unidos, temos</p><p>um longo histórico de acreditar que ser muito festivo é perigoso,</p><p>que ser otimista é tolice; por isso, temos dificuldade em celebrar</p><p>a vida, em ensinar a nossas crianças e a nós mesmos como</p><p>amar a vida.</p><p>Muitos de nós passam a amar a vida apenas quando</p><p>confrontados com doenças que a colocam em risco. Com</p><p>certeza, encarar a possibilidade da minha morte me deu coragem</p><p>para olhar de frente a falta de amor em minha vida. Muitas obras</p><p>contemporâneas visionárias sobre a morte e o morrer destacam</p><p>o aprendizado de como amar. Amar permite que transformemos</p><p>nossa celebração da morte em uma celebração da vida. Em uma</p><p>carta jamais enviada a um de meus amores verdadeiros, escrevi:</p><p>Durante o funeral da irmã, minha amiga fez um discurso no</p><p>qual declarou: “Sua morte fez com que nós a amássemos</p><p>completamente”. Somos muito mais capazes de abraçar a</p><p>perda de pessoas íntimas que amamos ou de amigos quando</p><p>sabemos que demos a eles tudo o que podíamos — quando</p><p>compartilhamos com eles o reconhecimento mútuo e o</p><p>pertencimento no amor que a morte jamais poderá mudar ou</p><p>tirar de nós. A cada dia, sou grata por ter conhecido um amor</p><p>que me permite aceitar a morte sem qualquer medo de</p><p>incompletude ou falta, sem qualquer sensação de</p><p>arrependimento irreversível. Esse foi um presente que você</p><p>me deu. Eu o aprecio; nada muda o seu valor. Ele permanece</p><p>precioso.</p><p>Amar faz isso. O amor nos empodera para viver plenamente e</p><p>morrer bem. Então, a morte se torna não o fim da vida, mas uma</p><p>parte dela.</p><p>Em A roda da vida, autobiografia publicada pouco depois de</p><p>sua morte, Elisabeth Kübler-Ross conta a história de seu</p><p>despertar para o entendimento de que poderia encarar a morte</p><p>sem medo:</p><p>Naqueles primeiros dias do que seria conhecido como o</p><p>nascimento da tanatologia, ou o estudo da morte, a melhor</p><p>professora que tive foi uma faxineira negra. Não me lembro de</p><p>seu nome […]. O que chamou minha atenção, no entanto, foi o</p><p>efeito que sua presença causava em muitos dos pacientes</p><p>mais graves. Cada vez que ela saía dos seus quartos, eu</p><p>notava uma diferença palpável nas atitudes deles.</p><p>Queria saber o segredo dela. Tomada por uma curiosidade</p><p>irrefreável, eu literalmente espionava essa mulher que nunca</p><p>estudara numa faculdade, mas sabia um grande segredo.</p><p>O segredo detido pela sábia mulher negra, do qual Kübler-Ross</p><p>se apropriou positivamente, era que precisamos fazer amizade</p><p>com a morte e deixar que ela nos guie durante a vida,</p><p>encontrando-a sem medo. Quando a faxineira negra — que havia</p><p>vencido uma série de dificuldades em sua vida, que perdera</p><p>prematuramente pessoas queridas — entrava nos quartos de</p><p>pessoas à beira da morte, ela trazia consigo a disposição de falar</p><p>abertamente sobre a morte, sem medo. Esse anjo sem nome deu</p><p>a Kübler-Ross a lição mais valiosa de sua vida, ao dizer a ela: “A</p><p>morte não é uma estranha para mim. É uma velha conhecida, de</p><p>muito tempo”. É preciso coragem para fazer amizade com a</p><p>morte. Encontramos essa coragem na vida por meio do amor.</p><p>Nosso medo coletivo da morte é uma doença do coração. O</p><p>amor é a única cura. Muitas pessoas tratam a morte com</p><p>desespero porque percebem que não viveram a vida como</p><p>queriam. Elas nunca encontraram seu “eu verdadeiro” ou nunca</p><p>encontraram o amor que seu coração desejava conhecer. Às</p><p>vezes, ao encarar a morte, elas se dão o amor que não se</p><p>concederam durante grande parte de sua vida. Elas se dão</p><p>aceitação, o amor incondicional que é o núcleo do</p><p>amor-próprio.</p><p>Em seu prefácio a Intimate Death [Morte íntima], Marie de</p><p>Hennezel descreve ter testemunhado o quanto se aproximar da</p><p>morte pode permitir que as pessoas se tornem mais plenamente</p><p>autorrealizadas:</p><p>No momento de intensa solidão, quando o corpo se verga à</p><p>beira do infinito, começa a correr um tempo distinto, que não</p><p>pode ser medido de forma normal. No curso de vários dias,</p><p>algo acontece, com a ajuda de outra presença, que permite</p><p>que a dor e o desespero se apresentem, e aqueles que estão</p><p>morrendo se agarram à sua vida, se apossam dela, liberam</p><p>sua verdade. Eles descobrem a liberdade de serem</p><p>verdadeiros consigo mesmos.</p><p>Esse reconhecimento do poder do amor no leito de morte é um</p><p>momento de êxtase. Teríamos sorte se sentíssemos seu poder</p><p>todos os dias e não apenas quando o fim desses dias se</p><p>aproxima.</p><p>Quando amamos todos os dias, não precisamos da ameaça</p><p>iminente da morte certa para sermos verdadeiros com nós</p><p>mesmos. Vivendo com consciência e clareza de mente e</p><p>coração, somos capazes de aceitar a nossa morte de uma</p><p>maneira que nos permite viver mais plenamente, porque</p><p>sabemos que a morte está sempre conosco. Não há ninguém</p><p>entre nós que seja um desconhecido para a morte. Nosso</p><p>primeiro lar no útero é também uma cova, onde esperamos a</p><p>chegada da vida. Nossa primeira experiência de vida é um</p><p>momento de ressurreição, um movimento para longe das</p><p>sombras, em direção à luz. Quando assistimos a uma criança</p><p>sair fisicamente do útero, sabemos que estamos na presença de</p><p>um milagre.</p><p>Contudo, não leva muito tempo para que esqueçamos a</p><p>harmonia mágica da transição da morte para a vida. E a morte</p><p>logo se torna a passagem que queremos evitar. No entanto, tem</p><p>ficado cada vez mais difícil para a nossa nação escapar da</p><p>morte. Embora tenhamos, em média, uma vida mais longa, agora</p><p>a morte nos cerca mais que nunca, à medida que tantas doenças</p><p>graves tiram a vida das pessoas que amamos, de nossos amigos</p><p>e conhecidos, muitos ainda jovens. Essa forte presença da morte</p><p>frequentemente não consegue penetrar nossa negação cultural</p><p>de que a morte está sempre entre nós, e as pessoas ainda se</p><p>recusam a deixar que a consciência da mortalidade as guie.</p><p>Quando eu era menina, nossa mãe falava com simplicidade</p><p>sobre a possibilidade de morrer. Com frequência, quando</p><p>deixávamos para o dia seguinte o que poderia ser feito hoje, ela</p><p>nos lembrava que “a vida não está garantida”. Esse era o jeito</p><p>dela de nos estimular a viver plenamente — viver de modo a não</p><p>nos arrependermos. Eu me surpreendo constantemente quando</p><p>amigos e estranhos agem como se qualquer conversa a respeito</p><p>da morte fosse um sinal de pessimismo e morbidade. A morte</p><p>está entre nós. Vê-la sempre e somente como um assunto</p><p>negativo é perder de vista seu poder de melhorar cada momento.</p><p>Com sorte, esses curadores e consoladores que trabalham</p><p>com os moribundos nos mostram como encarar a realidade da</p><p>morte, de modo que falar a respeito dela não seja tabu. Assim</p><p>como frequentemente somos incapazes de falar de nossa</p><p>necessidade de amar e ser amados, porque temos medo de que</p><p>nossas palavras sejam interpretadas como sinais de fraqueza ou</p><p>fracasso, raramente somos capazes de compartilhar nossos</p><p>pensamentos sobre a mortalidade e a perda. Não surpreende,</p><p>portanto, que sejamos coletivamente incapazes de confrontar a</p><p>importância do luto. Assim como os moribundos costumam ser</p><p>isolados para que o processo de morrer seja presenciado por</p><p>apenas alguns poucos, indivíduos de luto são encorajados a se</p><p>permitirem sentir apenas no privado, em ambientes apropriados,</p><p>longe do resto de nós. O luto prolongado é particularmente</p><p>perturbador numa cultura que oferece remendo rápido para</p><p>qualquer dor. Às vezes me surpreende saber de maneira intuitiva</p><p>que há pessoas enlutadas ao redor de todos nós, mas não</p><p>vemos sinais explícitos de seus espíritos angustiados. Somos</p><p>ensinados a sentir vergonha pelo luto que perdura. Como uma</p><p>mancha nas nossas roupas, ele nos marca como falhos,</p><p>imperfeitos. Apegar-se ao luto, querer expressá-lo, é estar fora</p><p>de sintonia com a vida moderna, em que os descolados não se</p><p>abalam ficando de luto.</p><p>O amor não conhece a vergonha. Ser amoroso é estar aberto</p><p>ao luto, a ser tocado pela dor, mesmo quando é uma dor</p><p>interminável. A forma como vivemos nosso luto é informada pelo</p><p>fato de conhecermos ou não o amor. Uma vez que amar permite</p><p>que nos desapeguemos do medo, esse ato também guia nosso</p><p>luto. Dado que o compromisso é um aspecto importante do amor,</p><p>nós que amamos sabemos que devemos preservar os laços na</p><p>vida e na morte. Nosso luto, nossa permissão para que sintamos</p><p>a perda de pessoas que amamos, é uma expressão do nosso</p><p>compromisso, uma forma de comunicação e comunhão. Saber</p><p>disso e ter a coragem de reivindicar o nosso luto como uma</p><p>expressão do amor não torna o processo simples numa cultura</p><p>que nos nega a alquimia emocional do luto. Em grande medida,</p><p>nossa desconfiança cultural em relação ao luto intenso está</p><p>enraizada no medo de que liberar tal paixão nos tome e nos</p><p>afaste da vida. Esse medo, porém, geralmente é equivocado. Em</p><p>seu sentido mais profundo, o luto é uma chama no coração, um</p><p>calor intenso que nos dá consolo e alívio. Quando recusamos a</p><p>total expressão do nosso luto, ele se mantém como um peso em</p><p>nosso coração, causando dor emocional e padecimentos físicos.</p><p>O luto frequentemente é mais implacável quando os indivíduos</p><p>não estão reconciliados com a realidade da perda.</p><p>O amor nos convida a sofrer pelos mortos como um ritual de</p><p>perda e como celebração. Conforme abrimos nosso coração e</p><p>falamos sobre o luto, compartilhamos o conhecimento íntimo de</p><p>nossos mortos, de quem eles eram e como viveram. Nós</p><p>honramos sua presença nomeando os legados que nos</p><p>deixaram. Não precisamos conter o luto quando o usamos como</p><p>meio de intensificar nosso amor pelos que estão morrendo, pelos</p><p>nossos mortos ou pelos que ainda estão vivos.</p><p>Próximo do fim de sua carreira brilhante, Kübler-Ross estava</p><p>convencida de que, na realidade, não há morte, apenas um</p><p>abandono do corpo para assumir uma outra forma. Para aqueles</p><p>que acreditam na vida após a morte, em ressurreição ou</p><p>reencarnação, a morte se torna, então, não um fim, mas um novo</p><p>começo. Essas revelações, embora esclarecedoras, não alteram</p><p>o fato de que na morte nós chegamos ao fim de nossa vida</p><p>corpórea na Terra. É por isso que saber como amar uns aos</p><p>outros também é uma forma de saber como morrer. Quando a</p><p>poeta Elizabeth Barrett Browning declara em seu soneto “E te</p><p>amarei melhor depois da morte”, ela atesta a importância da</p><p>memória da comunhão com nossos falecidos.</p><p>Quando permitimos que nossos mortos sejam esquecidos,</p><p>nós nos tornamos presas da ideia de que o fim da vida corpórea</p><p>corresponde à morte do espírito. Na escritura bíblica, a voz divina</p><p>declara: “Eu vos coloquei diante da vida e da morte, portanto,</p><p>escolham a vida”. Acolher o espírito que vive além do corpo é</p><p>uma maneira de escolher a vida. Abraçamos esse espírito por</p><p>meio de rituais de rememoração, por meio de cerimônias em que</p><p>invocamos a presença espiritual de nossos mortos, e por meio de</p><p>rituais comuns na vida diária, em que mantemos por perto os</p><p>espíritos daqueles que perdemos. Às vezes evocamos os mortos</p><p>ao permitir que a sabedoria que eles compartilharam conosco</p><p>guie nossas ações no presente. Ou os evocamos reencenando</p><p>um de seus hábitos. E o luto, que talvez nunca nos deixe, mesmo</p><p>quando não permitimos que ele nos tome, também é uma</p><p>maneira de homenagear nossos mortos, de mantê-los por perto.</p><p>Em uma cultura como a nossa, na qual poucos de nós</p><p>buscam conhecer o amor verdadeiro, o luto geralmente é</p><p>sobrepujado pelo arrependimento. Nós nos arrependemos das</p><p>coisas não ditas, dos conflitos que ficaram sem reconciliação.</p><p>Vez ou outra, quando me pego esquecendo de celebrar a vida,</p><p>desatenta em relação ao fato de que acolher a morte pode elevar</p><p>e aprimorar a maneira como interajo com o mundo, tiro um tempo</p><p>para pensar se eu estaria em paz sabendo que deixei alguém</p><p>sem dizer o que estava em meu coração, que parti com palavras</p><p>duras. Tento diariamente aprender</p><p>a me despedir das pessoas</p><p>como se pudéssemos nunca mais nos ver. Essa prática nos faz</p><p>mudar o modo como falamos e interagimos. É uma forma de</p><p>viver conscientemente.</p><p>A única forma de viver uma vida em que, como canta Edith</p><p>Piaf, “não me arrependo de nada” é despertando para a</p><p>consciência do valor do modo de vida correto e da ação correta.</p><p>Entender que a morte está sempre conosco pode servir como um</p><p>lembrete fiel de que o tempo para fazer aquilo que queremos</p><p>fazer é sempre agora, e não algum futuro distante e inimaginável.</p><p>O monge budista Thich Nhat Hanh ensina, em Our Appointment</p><p>with Life: Discourse on Living Happily in the Present Moment</p><p>[Nossa hora marcada com a vida: discurso sobre viver feliz no</p><p>momento presente], que nós encontramos nosso self verdadeiro</p><p>ao viver plenamente no presente:</p><p>Voltar ao presente é estar em contato com a vida. A vida só</p><p>pode ser encontrada no presente, porque “o passado não é</p><p>mais” e “o futuro ainda não chegou”. […] Nosso compromisso</p><p>com a vida é no momento presente. O lugar de nosso</p><p>compromisso é bem aqui, exatamente neste lugar.</p><p>Por vivermos numa cultura que sempre nos encoraja a fazer</p><p>planos para o futuro, não é tarefa fácil desenvolver a capacidade</p><p>de “estar aqui agora”.</p><p>Quando vivemos plenamente no presente, quando</p><p>reconhecemos que a morte está sempre conosco, e não apenas</p><p>no momento em que damos nosso último suspiro, não ficamos</p><p>devastados por acontecimentos que não podemos controlar — a</p><p>perda de um emprego, a rejeição de alguém com quem</p><p>esperávamos nos conectar, a perda de um amigo ou</p><p>companheiro de longa data. Thich Nhat Hanh nos lembra que</p><p>“tudo o que buscamos só pode ser encontrado no presente” e</p><p>que “abandonar o presente para buscar as coisas no futuro é</p><p>jogar fora a substância e se apegar à sombra”. Estar aqui agora</p><p>não significa deixar de fazer planos, mas aprender a investir</p><p>apenas uma pequena quantidade de energia na elaboração de</p><p>projetos para o futuro. E, uma vez que esse planejamento esteja</p><p>feito, nos libertamos do apego a eles. Às vezes, é de muita ajuda</p><p>escrever nossos planos para o futuro e deixá-los de lado, fora da</p><p>vista e fora da cabeça.</p><p>Aceitar a morte com amor significa que abraçamos a realidade</p><p>do inesperado, de experiências que não podemos controlar. Nós</p><p>não precisamos ter ansiedade infinita e nos preocuparmos se</p><p>vamos realizar nossos objetivos ou planos. A morte está sempre</p><p>ali para nos lembrar que nossos planos são transitórios. Ao</p><p>aprender a amar, aprendemos a aceitar a mudança. Sem</p><p>mudança, não podemos crescer. Nosso desejo de crescer no</p><p>espírito e na verdade é como nos posicionamos diante da vida e</p><p>da morte, prontos para escolher a vida.</p><p>12.</p><p>cura:</p><p>o amor</p><p>redentor</p><p>Fomos levados para a adega interna e marcados com</p><p>Seu selo, que é sofrer por amor. O ardor desse amor</p><p>supera imensamente qualquer sofrimento que</p><p>atravessemos, pois o sofrimento chega ao fim, mas o</p><p>amor é para sempre.</p><p>— Tessa Bielecki</p><p>O amor cura. Quando somos feridos nos espaços onde</p><p>deveríamos conhecer o amor, é difícil imaginar que o amor</p><p>realmente tenha o poder de mudar tudo. Não importa o que tenha</p><p>acontecido em nosso passado: quando abrimos nosso coração</p><p>para o amor, podemos viver como se tivéssemos nascido de</p><p>novo, sem esquecer o passado, mas vendo-o de uma forma</p><p>nova, deixando que ele viva dentro de nós de uma nova maneira.</p><p>Seguimos adiante com a percepção renovada de que o que já</p><p>passou não pode mais nos machucar. Ou ainda: se em nosso</p><p>passado fomos amados, sabemos que não importa a presença</p><p>ocasional do sofrimento em nossa vida, pois sempre voltaremos</p><p>para a calma e a felicidade recordadas. A rememoração atenta</p><p>nos permite reunir outra vez os pedaços e os cacos de nosso</p><p>coração. É assim que a cura começa.</p><p>Ao contrário do que possamos ter sido ensinados a pensar,</p><p>sofrimentos desnecessários e não escolhidos nos ferem, mas</p><p>não precisam deixar cicatrizes para a vida toda. Eles de fato nos</p><p>marcam. O que permitimos que as marcas de nossos</p><p>sentimentos se tornem está em nossas mãos. Na antologia de</p><p>ensaios Da próxima vez, o fogo, James Baldwin escreve sobre o</p><p>sofrimento no processo de cura, afirmando: “Não pretendo fazer</p><p>sentimentalismo à custa do sofrimento — o que existe já</p><p>dispensa ser explorado —, mas é impossível deixar de</p><p>reconhecer que um povo que ignora o sofrimento jamais chegará</p><p>à maturidade, nunca chegará a conhecer-se pelo que é”. No</p><p>fundo, crescer é o processo de aprender a assumir a</p><p>responsabilidade pelo que vier a acontecer em sua vida. Escolher</p><p>crescer é abraçar um amor que cura.</p><p>O poder curativo da mente e do coração está sempre</p><p>presente porque temos a capacidade de renovar nossos espíritos</p><p>infinitamente, de restaurar a alma. Eu sempre me sinto</p><p>especialmente grata ao conhecer pessoas que não sentem que</p><p>sua infância foi marcada por dores e sofrimentos desnecessários,</p><p>pelo desamor. Sua presença me lembra que não precisamos</p><p>passar por nada terrível para sentir profundamente, que nunca</p><p>precisamos que o sofrimento nos seja imposto por atos de</p><p>violência e abuso. Em certos momentos, seremos confrontados</p><p>por sofrimento, por uma doença inesperada, uma perda. Essa</p><p>dor virá, independentemente de nossa escolha, e nenhum de nós</p><p>poderá escapar dela. A presença da dor em nossa vida não é um</p><p>indicativo de disfunção. Nem todas as famílias são disfuncionais.</p><p>E ao passo que tem sido crucial para a autorrecuperação coletiva</p><p>que tenhamos exposto e continuemos a expor a disfunção, é</p><p>igualmente importante revelar e celebrar sua ausência.</p><p>A menos que todos possamos imaginar um mundo em que a</p><p>família não seja disfuncional, mas um lugar em que o amor exista</p><p>em abundância, condenaremos a família a ser sempre apenas</p><p>um lugar de dor. Em famílias funcionais, os indivíduos encaram</p><p>conflitos, contradições, tempos de infelicidade e sofrimento,</p><p>assim como nas famílias disfuncionais; a diferença está em como</p><p>essas questões são confrontadas e resolvidas, em como todos</p><p>lidam com momentos de crise. Famílias saudáveis resolvem</p><p>conflitos sem coerção, constrangimento ou violência. Quando</p><p>coletivamente movermos nossa cultura na direção do amor,</p><p>poderemos ver essas famílias amorosas mais representadas na</p><p>mídia. Elas se tornarão mais visíveis em todas as esferas da vida</p><p>comum. Então, com esperança, ouviremos essas histórias com a</p><p>mesma intensidade com que temos ouvido narrativas de dor e</p><p>abuso violentos. Quando isso acontecer, a felicidade visível das</p><p>famílias funcionais vai se tornar parte de nossa consciência</p><p>coletiva.</p><p>Em The Family: A Revolutionary Way of Self-Discovery [A</p><p>família: um caminho revolucionário para a autodescoberta], John</p><p>Bradshaw apresenta esta definição:</p><p>Uma família funcional saudável é aquela em que todos os</p><p>membros são totalmente funcionais e todas as relações entre</p><p>eles são plenamente funcionais. Como seres humanos, todos</p><p>os integrantes de uma família têm à sua disposição o uso de</p><p>todo o seu poder humano. Eles usam esses poderes para</p><p>cooperar, individuar ou ter suas necessidades coletivas e</p><p>individuais atendidas. Uma família funcional é o solo fértil no</p><p>qual os indivíduos podem se tornar seres humanos</p><p>amadurecidos.</p><p>Numa família funcional se aprende autoestima e há um equilíbrio</p><p>entre autonomia e dependência.</p><p>Muito antes de os termos “funcional” e “disfuncional” serem</p><p>usados para identificar tipos de famílias, aqueles entre nós que</p><p>foram feridos na infância os conheciam, porque sentíamos dor. E</p><p>essa dor não ia embora quando saíamos de casa. Mais do que a</p><p>nossa dor, nossos impulsos autodestrutivos e autossabotadores</p><p>nos aprisionavam nos traumas da infância. Nós éramos</p><p>incapazes de encontrar consolo ou libertação. Não podíamos</p><p>escolher a cura, porque não tínhamos certeza de que</p><p>poderíamos ser reparados, de que os pedaços partidos</p><p>pudessem ser colados. Nós nos confortávamos fingindo. No</p><p>entanto, esse consolo não durava. Geralmente, era sucedido por</p><p>depressão e luto avassalador. Nós desejávamos ser resgatados,</p><p>porque não sabíamos como nos salvar. Com muita frequência,</p><p>nos viciávamos em viver perigosamente. Apegando-nos a esse</p><p>vício, tornava-se impossível</p><p>estarmos bem com a nossa alma.</p><p>Assim como ocorre com qualquer outro vício, abandoná-lo e</p><p>escolher estar bem era a nossa única maneira de resgate e</p><p>recuperação.</p><p>Fingi de muitas formas ao longo de grande parte da minha</p><p>vida. Quando comecei a caminhar pela trilha do amor, fiquei</p><p>impressionada com a velocidade com que algumas disfunções</p><p>anteriores eram alteradas. Na igreja da minha infância, sempre</p><p>nos diziam que ninguém poderia conceder a salvação individual,</p><p>que nós tínhamos que escolher por conta própria. Nós tínhamos</p><p>que querer ser salvos. No romance The Salt Eaters [Os</p><p>comedores de sal], de Toni Cade Bambara, mulheres mais velhas</p><p>e sábias, que são curadoras, são convocadas a ajudar uma</p><p>jovem que tentou o suicídio, e lhe dizem: “Então, só quando você</p><p>tiver certeza, querida, e estiver pronta para ser curada, porque a</p><p>integridade não é uma coisa boba — pesa muito quando você</p><p>está bem”. Fazer a escolha fundamental de ser salva não</p><p>significa que não precisemos de apoio com problemas e</p><p>dificuldades. É simplesmente o gesto inicial de assumir</p><p>responsabilidade pelo nosso bem-estar, admitindo que estamos</p><p>partidos, admitindo nossos ferimentos, e nos abrindo para a</p><p>salvação, o que deve ser feito pelo indivíduo. Esse ato de abrir o</p><p>coração nos possibilita receber a cura que nos é oferecida por</p><p>aqueles que cuidam.</p><p>•••</p><p>Embora todos queiramos conhecer o amor, falamos sobre a</p><p>busca pelo amor verdadeiro como se fosse sempre e apenas</p><p>uma jornada solitária. Fico perturbada pela pesada ênfase</p><p>atribuída ao “eu” por muitas obras new age dedicadas ao</p><p>assunto, e por nossa cultura como um todo. Quando eu falava de</p><p>meu anseio por um companheiro amoroso, as pessoas me</p><p>diziam repetidamente que eu não precisava de mais ninguém.</p><p>Elas me diziam que eu não precisava de companhia e/ou de um</p><p>círculo de pessoas amadas, que deveria me sentir completa</p><p>dentro de mim. Embora seja definitivamente verdadeiro que</p><p>contentamento interior e senso de realização possam estar lá,</p><p>tenhamos ou não uma comunhão amorosa com os outros, é</p><p>igualmente significativo darmos voz ao desejo por comunhão. A</p><p>vida sem comunhão no amor com os outros seria menos</p><p>realizada, independentemente da extensão do amor-próprio.</p><p>Por todo o mundo, as pessoas vivem em contato íntimo umas</p><p>com as outras. Elas lavam juntas, comem e dormem juntas,</p><p>encaram desafios juntas, compartilham alegrias e dores. O</p><p>indivíduo áspero que não confia em ninguém é uma figura que só</p><p>pode existir numa cultura de dominação em que uns poucos</p><p>privilegiados usam mais recursos do mundo que os muitos que</p><p>devem viver diariamente sem acesso a eles. O culto ao</p><p>individualismo nos levou, em parte, a uma cultura doentia de</p><p>narcisismo, tão difundida em nossa sociedade.</p><p>Viajantes ocidentais vão a países pobres e ficam chocados</p><p>com o grau de união entre pessoas que, embora não sejam</p><p>materialmente ricas, têm o coração pleno. Não é por acaso que</p><p>muitos dos professores espirituais em torno dos quais gravitamos</p><p>em nossa sociedade abastada, orientada pelo éthos de um</p><p>individualismo duro, vêm de culturas que valorizam a</p><p>interdependência e o trabalho pelo bem coletivo em vez da</p><p>independência e do ganho individual.</p><p>Enquanto termos como “codependência”, que surgiram em</p><p>programas para autorrecuperação individual, acertadamente</p><p>mostram as formas pelas quais a dependência excessiva pode</p><p>ser doentia, especialmente quando associada a vício, ainda</p><p>precisamos falar a respeito da interdependência saudável.</p><p>Nenhuma organização dedicada à cura demonstra esse princípio</p><p>mais que os Alcoólicos Anônimos (��). Os milhões de pessoas</p><p>que frequentam reuniões do �� procuram um lugar para se</p><p>recuperar e veem que a comunidade acolhedora que os cerca</p><p>cria um ambiente de cura. Essa comunidade oferece aos</p><p>indivíduos, a alguns pela primeira vez em sua vida, um gosto de</p><p>aceitação, carinho, conhecimento e responsabilidade, que é o</p><p>amor em ação. Raramente, se é que isso acontece, nós nos</p><p>curamos em isolamento. A cura é um ato de comunhão.</p><p>A maioria de nós encontra esse espaço de comunhão curativa</p><p>entre almas afins. Outros indivíduos se recuperam em comunhão</p><p>com o espírito divino. Santa Teresa d’Ávila encontrou, em sua</p><p>união com o divino, o reconhecimento, o conforto e o consolo.</p><p>Ela escreveu:</p><p>Pensais que importa pouco a uma alma dissipada entender</p><p>essa verdade e ver que não precisa, para falar com seu Pai</p><p>eterno ou para regalar-se com Ele, ir ao céu nem falar em</p><p>altos brados?</p><p>Por mais baixo que fale, Ele está tão perto que a ouvirá […],</p><p>bastando pôr-se em solidão e olhar para dentro de si, não</p><p>estranhando a presença de tão bom hóspede. A alma deve,</p><p>com grande humildade, falar-lhe […].</p><p>A oração oferece um espaço em que falar cura. É sem dúvida um</p><p>sinal da crise espiritual dos nossos tempos que livros sejam</p><p>escritos para apresentar evidências de que a oração acalma o</p><p>espírito. Todas as tradições religiosas reconhecem que há</p><p>conforto em se voltar para o sagrado por meio de palavras, seja</p><p>pela liturgia tradicional, pela oração ou por cantos. Eu rezo</p><p>diariamente como um gesto de vigilância espiritual. A oração é</p><p>um exercício que fortalece o poder da alma. O ato de me voltar</p><p>para o divino sempre me lembra das limitações do pensamento e</p><p>do desejo humanos. Mover-me, estender-me em direção ao que</p><p>é ilimitado e sem fronteiras é um exercício que fortalece a minha</p><p>fé e empodera a minha alma.</p><p>A oração oferece a cada pessoa um local privado de</p><p>confissão. Há verdade no axioma “a confissão é boa para a</p><p>alma”. Ela nos permite observar as nossas próprias</p><p>transgressões, as formas como passamos dos limites (uma</p><p>definição do significado de pecaminoso). Somente à medida que</p><p>reconhecermos e confrontarmos as circunstâncias de nosso</p><p>esquecimento espiritual é que assumiremos nossa</p><p>responsabilidade. No livro The Raft Is Not the Shore:</p><p>Conversations Toward a Buddhist-Christian Awareness [A</p><p>jangada não é a margem: conversas rumo a uma consciência</p><p>budista-cristã], Daniel Berrigan e Thich Nhat Hanh destacam que</p><p>“a ponte da ilusão deve ser destruída antes que a verdadeira</p><p>ponte possa ser construída”. Em comunhão com o espírito divino,</p><p>podemos reivindicar o espaço da responsabilidade e renovar</p><p>nosso compromisso com aquela transformação do espírito que</p><p>abre o coração e nos prepara para o amor.</p><p>Depois que fazemos a escolha de sermos curados pelo amor,</p><p>a fé de que essa transformação virá nos dá a paz na mente e no</p><p>coração que é necessária para a alma que busca uma revolução.</p><p>É difícil esperar. Sem dúvida é por isso que a escritura bíblica</p><p>convoca quem está na busca a aprender a esperar, pois a espera</p><p>renova a nossa força. Quando nos entregamos à “espera”,</p><p>permitimos que as mudanças emerjam dentro de nós sem</p><p>ansiedade ou luta. Ao fazermos isso, estamos dando um passo</p><p>com fé. Em termos budistas, essa prática de se entregar, de se</p><p>desapegar, possibilita que entremos num espaço de compaixão</p><p>em que podemos sentir simpatia por nós mesmos e pelos outros.</p><p>Essa compaixão nos desperta para o poder curativo do serviço.</p><p>O amor em ação tem sempre a ver com o serviço, com o que</p><p>fazemos para aprimorar o crescimento espiritual. Um foco na</p><p>reflexão individual, na contemplação, no diálogo terapêutico é</p><p>vital para a cura. Mas não é o único caminho para nos</p><p>recuperarmos. Servir aos outros é um caminho tão proveitoso</p><p>para curar o coração quanto qualquer outra prática terapêutica.</p><p>Para servir verdadeiramente, devemos sempre esvaziar o ego a</p><p>fim de que possa existir um espaço para que reconheçamos as</p><p>necessidades dos outros e sejamos capazes de atendê-las.</p><p>Quanto maior a nossa compaixão, mais conscientes estamos das</p><p>formas de nos movermos em direção aos outros que tornam a</p><p>cura possível.</p><p>Conhecer a compaixão completamente é se envolver num</p><p>processo de perdão e reconhecimento que permite nos livrarmos</p><p>de toda a nossa bagagem que possa servir como empecilho para</p><p>a cura. A compaixão abre o caminho para que indivíduos sintam</p><p>empatia pelos outros sem julgamento. Julgar os outros aumenta</p><p>a nossa alienação. Quando julgamos, somos menos capazes de</p><p>perdoar. A ausência de perdão nos mantêm</p><p>centrados na</p><p>vergonha. Nosso espírito pode ter sido quebrado repetidamente</p><p>em rituais de desprezo nos quais fomos constrangidos pelos</p><p>outros ou constrangemos a nós mesmos. A vergonha nos quebra</p><p>e nos enfraquece, nos mantendo longe da integridade oferecida</p><p>pela cura. Quando praticamos o perdão, abandonamos a</p><p>vergonha. Enraizada em nossa vergonha, sempre está a</p><p>sensação de sermos indignos. Ela separa. A compaixão e o</p><p>perdão nos reconectam.</p><p>O perdão não apenas nos permite superar o estranhamento;</p><p>ele intensifica nossa capacidade de apoiarmos uns aos outros.</p><p>Sem perdão consciente não pode existir reconciliação genuína.</p><p>Fazer as pazes com nós mesmos e com os outros é o presente</p><p>que a compaixão e o perdão nos oferecem. É um processo de</p><p>esvaziamento, no qual nos desapegamos de todo desperdício</p><p>para que haja um lugar limpo dentro de nós onde podemos ver</p><p>os outros como nos vemos. Em Forgiveness: A Bold Choice for a</p><p>Peaceful Heart, Casarjian explica:</p><p>Mesmo pequenos atos de perdão sempre têm ramificações</p><p>significativas num nível pessoal. Mesmo pequenos atos de</p><p>perdão contribuem para o senso de confiança em si mesmo e</p><p>no potencial dos outros; eles contribuem para um espírito</p><p>humano que é fundamentalmente esperançoso e otimista, em</p><p>vez de pessimista ou derrotado; eles contribuem para</p><p>conhecer a si mesmo e aos outros como pessoas</p><p>potencialmente poderosas que podem escolher criar</p><p>amorosamente, em vez de ver os seres humanos como</p><p>basicamente egoístas, destrutivos e pecadores.</p><p>Quando temos clareza na mente e no coração, somos capazes</p><p>de conhecer o prazer, de nos envolver no mundo sensual à</p><p>nossa volta com um prazer que é imediato e profundo. No ensaio</p><p>“Down at the Cross” [Ajoelhado diante da cruz], James Baldwin</p><p>afirma: “Ser sensual […] é respeitar e se alegrar com a força da</p><p>vida, com a vida em si, e estar presente em tudo que se faz, do</p><p>esforço de amar até a partilha do pão”. A poeta Adrienne Rich</p><p>alerta para a perda da sensualidade em What is Found There?</p><p>Notebooks on Poetry and Politics [O que encontramos lá?</p><p>Cadernos de poesia e política]: “A vitalidade sensual é essencial</p><p>para a luta pela vida. É simples — e ameaçador — assim”. O</p><p>distanciamento do reino dos sentidos é resultado direto do</p><p>excesso de indulgência, de se adquirir demais. É por isso que</p><p>viver com simplicidade é parte crucial da cura. Conforme</p><p>começamos a simplificar, a deixar a desordem ir embora, seja a</p><p>bagunça do desejo ou a bagunça material real e os negócios</p><p>incessantes que ocupam todos os espaços, recuperamos nossa</p><p>capacidade de sermos sensuais. Quando o corpo adormecido,</p><p>dormente e amortecido para o mundo dos sentidos desperta, é</p><p>uma ressureição que nos revela como o amor é mais forte que a</p><p>morte.</p><p>•••</p><p>O amor redime. Apesar de todo o desamor que nos cerca, nada</p><p>tem sido capaz de bloquear nosso desejo pelo amor, a</p><p>intensidade do nosso anseio. A compreensão de que o amor</p><p>redime parece ser um aspecto resiliente do saber do coração. O</p><p>poder curativo do amor redentor nos atrai e nos convoca em</p><p>direção à possibilidade de cura. Não podemos dar conta da</p><p>presença do saber do coração. Como todos os grandes</p><p>mistérios, somos todos misteriosamente convocados a amar,</p><p>independentemente das condições de nossa vida, do grau de</p><p>nossa depravação ou desespero. Sem esperança, não podemos</p><p>regressar ao amor. Rompendo com nosso senso de isolamento e</p><p>abrindo a janela da oportunidade, a esperança nos dá uma razão</p><p>para seguir adiante. É uma prática do pensamento positivo. Ser</p><p>positivo, viver um estado permanente de esperança, renova o</p><p>espírito. Renovando nossa fé na promessa do amor, a esperança</p><p>é nossa cúmplice.</p><p>Comecei a pensar e a escrever sobre o amor quando</p><p>encontrei cinismo em lugar de esperança nas vozes de jovens e</p><p>velhos. O cinismo é nossa maior barreira diante do amor. Ele se</p><p>enraíza em dúvida e desespero. O medo intensifica nossas</p><p>dúvidas. Paralisa. A fé e a esperança permitem que nos</p><p>desapeguemos do medo. O medo atravessa o caminho para o</p><p>amor. Quando trazemos para o coração a insistência bíblica de</p><p>que “não há medo no amor”, compreendemos a necessidade de</p><p>escolher pensamentos e ações corajosos. Essa escritura nos</p><p>encoraja a encontrar conforto em saber que “o amor perfeito</p><p>afasta os nossos medos”. Esse é o nosso lembrete de que, ainda</p><p>que o medo exista, ele pode ser libertado pela experiência do</p><p>amor perfeito. A alquimia do amor perfeito é tal que oferece a</p><p>todos nós um amor capaz de derrotar o medo. O que o medo</p><p>fragmenta ou torna estranho, o amor perfeito transforma em</p><p>inteiro. É esse amor perfeito que é redentor — que pode, como o</p><p>calor de um fogo alquímico intenso, queimar as impurezas e</p><p>deixar a alma livre.</p><p>É significativo que a escritura bíblica nos diga que é crucial</p><p>que o amor afaste o medo “porque o amor tem o tormento”.</p><p>Essas palavras falam diretamente sobre a presença da angústia</p><p>em nossa vida quando somos conduzidos pelo medo. A prática</p><p>de amar é a força curativa que nos traz paz duradoura. É a</p><p>prática do amor que transforma. Conforme alguém dá e recebe</p><p>amor, o medo vai embora. Conforme vivemos a compreensão de</p><p>que “não há medo no amor”, nossa angústia diminui e reunimos</p><p>forças para entrar mais profundamente no paraíso do amor.</p><p>Quando somos capazes de aceitar que nos darmos</p><p>completamente ao amor restaura a alma, nos tornamos perfeitos</p><p>no amor.</p><p>O poder transformador do amor não é acolhido totalmente em</p><p>nossa sociedade, porque com frequência acreditamos, de forma</p><p>equivocada, que o tormento e a angústia são nossa condição</p><p>“natural”. Essa presunção parece ser reforçada pela tragédia</p><p>constante que prevalece na sociedade moderna. Em um mundo</p><p>angustiado pela destruição desenfreada, o medo prevalece.</p><p>Quando amamos, não permitimos mais que nosso coração seja</p><p>aprisionado pelo medo. O desejo de ser poderoso se enraíza na</p><p>intensidade do medo. O poder nos dá a ilusão de termos</p><p>triunfado sobre o medo, sobre nossa necessidade de amor.</p><p>Para regressar ao amor, para conhecer o amor perfeito,</p><p>abandonamos o desejo pelo poder. É essa revelação que torna</p><p>as escrituras sobre o amor perfeito tão proféticas e</p><p>revolucionárias para os nossos tempos. Nós não podemos</p><p>conhecer o amor se permanecermos incapazes de abrir mão de</p><p>nosso apego ao poder, se qualquer sentimento de</p><p>vulnerabilidade despertar terror em nosso coração. O desamor</p><p>atormenta.</p><p>Conforme se intensifica nossa consciência cultural em relação</p><p>às formas como somos seduzidos para nos afastarmos do amor,</p><p>para nos afastarmos de saber que o amor cura, nossa angústia</p><p>se intensifica. Mas o mesmo acontece com nossos anseios. O</p><p>espaço de nossa falta também é o espaço da possibilidade.</p><p>Conforme ansiamos, nos preparamos para receber o amor que</p><p>está vindo para nós como um presente, uma promessa, um</p><p>paraíso terreno.</p><p>13.</p><p>destino:</p><p>quando os</p><p>anjos falam</p><p>de amor</p><p>Amar é nosso verdadeiro destino. Nós não</p><p>encontramos o significado da vida sozinhos, por conta</p><p>própria — nós o encontramos com outros.</p><p>— Thomas Merton</p><p>Acreditar no amor divino me confortou na minha infância, quando</p><p>eu me sentia sobrepujada pela solidão e pela dor. O consolo de</p><p>saber que eu poderia abrir meu coração para Deus e para os</p><p>anjos fez com que eu me sentisse menos sozinha. Eles estavam</p><p>lá comigo durante noites escuras e aterrorizantes para a alma,</p><p>quando ninguém mais entendia. Eles estavam lá comigo, ouvindo</p><p>meu choro e a dor no meu coração. Eu não podia vê-los, mas</p><p>sabia que estavam lá. Eu os ouvia sussurrar sobre a promessa</p><p>do amor, me deixando saber que tudo ficaria bem com a minha</p><p>alma, falando ao meu coração numa doce linguagem divina</p><p>secreta.</p><p>Os anjos testemunham. Eles são os espíritos guardiães que</p><p>observam, protegem e nos guiam ao longo de nossa vida. Às</p><p>vezes assumem forma humana. Em outros momentos, são puro</p><p>espírito — invisíveis, inimagináveis, apenas eternamente</p><p>presentes. Um sinal de que está ocorrendo um despertar</p><p>religioso em nossa cultura é nossa obsessão com anjos. Imagens</p><p>de anjos estão em todos os lugares; eles são personagens de</p><p>filmes, livros, cartões de aniversário e calendários, cortinas e</p><p>papéis de parede.</p><p>Anjos representam para nós visões de</p><p>inocência, de seres que não carregam o fardo da culpa ou da</p><p>vergonha. Tanto faz se os imaginamos com o rosto arredondado</p><p>e escuro da tradição copta ou como os querubins alados que</p><p>costumamos ver, eles são os mensageiros do divino. Nós os</p><p>vemos como aqueles que sempre trazem notícias que darão</p><p>alívio ao nosso coração.</p><p>Nossa paixão cultural pelo angélico expressa nosso desejo de</p><p>estar no paraíso, de regressar na Terra a um tempo de conexão e</p><p>boa vontade, um tempo em que nosso coração estava íntegro.</p><p>Ainda que as imagens de anjos que vemos mais comumente</p><p>sejam figuras infantis iluminadas com arrebatamento e êxtase</p><p>inexprimível, eles carregam, como mensageiros, o peso de</p><p>nossos fardos, de nossas dores e de nossas alegrias. Nas</p><p>representações, eles geralmente recebem essa aparência de</p><p>criança para nos lembrar que a iluminação vem apenas quando</p><p>voltamos a um estado infantil e renascemos.</p><p>Nós vemos os anjos como criaturas de coração iluminado</p><p>num movimento ligeiro em direção ao paraíso. Seus seres e o</p><p>peso de seu conhecimento nunca são estáticos. Sempre em</p><p>mutação, eles veem através de nosso falso self. Donos de</p><p>perspicácia psíquica, da intuição e da sabedoria do coração, eles</p><p>mantêm a promessa da vida plena por meio da união entre o</p><p>conhecimento e a responsabilidade. Como guardiães do bem-</p><p>estar da alma, eles cuidam de nós e conosco. Nossa virada em</p><p>direção aos anjos evoca nosso anseio de abraçar o crescimento</p><p>espiritual. Revela nosso desejo coletivo de regressar ao amor.</p><p>•••</p><p>As primeiras histórias de anjos que ouvi quando criança foram</p><p>contadas na igreja. Dos ensinamentos religiosos, aprendi que,</p><p>como mensageiros do divino, os anjos eram consoladores</p><p>sábios. Eles eram capazes de nos auxiliar em nosso crescimento</p><p>espiritual. Amantes incondicionais do espírito humano, estavam</p><p>lá para nos ajudar a encarar a realidade sem medo. A história de</p><p>anjo que permaneceu mais vívida ao longo de minha infância e</p><p>na vida adulta é a narrativa do confronto de Jacó com um anjo, a</p><p>caminho de sua casa. Jacó não era apenas qualquer velho herói</p><p>bíblico, ele era um homem capaz de amor intenso, apaixonado.</p><p>Saindo da natureza selvagem, para onde havia fugido na</p><p>juventude para escapar de conflitos familiares, Jacó chega à terra</p><p>onde seus parentes vivem. Ele conhece Raquel, sua alma</p><p>gêmea. Embora ele rapidamente reconheça seu amor por ela,</p><p>eles só podem se unir depois de muito trabalho duro, luta e</p><p>sofrimento.</p><p>Nós ficamos sabendo que, por Raquel, Jacó serviu durante</p><p>sete anos, que para ele pareceram apenas poucos dias, “tão</p><p>grande era o amor que ele tinha por ela”. Ao interpretar essa</p><p>história em The Man Who Wrestled with God: Light from the Old</p><p>Testament on the Psychology of Individuation [O homem que</p><p>lutou com Deus: uma luz do Velho Testamento sobre a psicologia</p><p>da individuação], John Sanford comenta:</p><p>O fato de que Jacó pôde se apaixonar mostra que um certo</p><p>grau de crescimento psicológico aconteceu enquanto ele</p><p>realizava sua jornada pela natureza selvagem. Até então, a</p><p>única mulher em sua vida tinha sido sua mãe. Enquanto um</p><p>homem permanece num estágio de desenvolvimento</p><p>psicológico em que a mãe é a mulher mais importante para</p><p>ele, ele não pode amadurecer como homem. O Eros de um</p><p>homem, sua capacidade de amar e de se relacionar, deve ser</p><p>libertado do apego à mãe, deve ser capaz de se estender a</p><p>uma mulher que seja sua contemporânea; do contrário, ele</p><p>permanece uma pessoa exigente, dependente, infantil.</p><p>Aqui, Sanford está falando de uma dependência negativa, que</p><p>não é o mesmo que o apego saudável. Homens que são</p><p>apegados de forma positiva à mãe são capazes de equilibrar</p><p>esse vínculo, negociando dependência e autonomia, e podem</p><p>estendê-lo para laços afetivos com outras mulheres. De fato, a</p><p>maioria das mulheres sabe que um homem que ama</p><p>verdadeiramente sua mãe é mais propenso a ser um amigo, um</p><p>companheiro ou um colega melhor do que aqueles que sempre</p><p>foram abertamente dependentes da mãe, esperando que ela</p><p>atenda incondicionalmente a todas as suas necessidades. Uma</p><p>vez que o amor verdadeiro exige um reconhecimento da nossa</p><p>autonomia e da autonomia da outra pessoa, um homem que</p><p>amou na infância já aprendeu práticas saudáveis de</p><p>individuação. Ao trabalhar por Raquel, fazendo escolhas erradas</p><p>e tomando decisões difíceis, Jacó cresce e amadurece. Quando</p><p>eles se casam, ele é capaz de ser um companheiro amoroso.</p><p>Conhecer sua alma gêmea não significa o fim da jornada de</p><p>Jacó em direção à integridade e à autorrealização. Quando</p><p>recebe a mensagem de Deus dizendo que deveria regressar para</p><p>o lugar de onde fugiu, ele deve mais uma vez viajar pela terra</p><p>selvagem. Repetidamente, sábios professores espirituais</p><p>compartilham conosco a compreensão de que a jornada em</p><p>direção à autorrealização e ao crescimento espiritual é árdua,</p><p>cheia de desafios. É comum que ela seja difícil do começo ao</p><p>fim. Muitos de nós acreditamos que nossas dificuldades vão</p><p>terminar quando encontrarmos uma alma gêmea. O amor não</p><p>acaba com as dificuldades; ele nos dá os meios para lidar com</p><p>elas de maneiras que aprimoram o nosso crescimento. Por ter</p><p>trabalhado e esperado pelo amor, Jacó se tornou</p><p>psicologicamente forte. Ele convoca essa força quando deve</p><p>ingressar na terra selvagem mais uma vez para voltar para casa.</p><p>Uma voz divina leva a Jacó a mensagem de que ele deve</p><p>voltar para a terra de seus ancestrais. Como um homem que</p><p>aprendeu a amar, Jacó intuitivamente pede por orientação. Ele</p><p>ouve o que seu coração diz. Quando a resposta vem, ele age.</p><p>Desde que saíra de casa pela primeira vez, por causa dos</p><p>conflitos com seu irmão Esaú, a perspectiva de regressar era</p><p>assustadora. No entanto, ele precisa ficar cara a cara com seu</p><p>passado e buscar a reconciliação, se quiser conhecer a paz</p><p>interior e se tornar totalmente maduro. Em sua longa jornada</p><p>para casa, Jacó conversa com Deus continuamente. Ele reza.</p><p>Ele medita. Buscando consolo em estar só, ele avança pela noite</p><p>escura e caminha ao lado de um riacho. Ali, um ser que ele não</p><p>reconhece totalmente trava uma luta com ele. Sem saber, Jacó</p><p>recebeu o presente de se encontrar com um anjo.</p><p>Confrontando seus medos, seus demônios, seu self sombrio,</p><p>Jacó renuncia a seu desejo de segurança. Psicologicamente,</p><p>entra numa noite primordial e volta para um espaço psicológico</p><p>em que ainda não está totalmente desperto. É como se ele se</p><p>tornasse uma criança no útero novamente, lutando para</p><p>renascer. O anjo não é um adversário que tenta tirar a sua vida;</p><p>em vez disso, ele vem como uma testemunha que lhe permite</p><p>perceber que existe alegria na luta. Seu medo é substituído por</p><p>uma sensação de calma. Em Soul Food: Stories to Nourish the</p><p>Spirit and the Heart [Comida da alma: histórias para alimentar o</p><p>espírito e o coração], Jack Kornfield e Christina Feldman afirmam</p><p>que nós também podemos escolher a serenidade no meio da</p><p>luta:</p><p>Nessa calma, começamos a entender que a paz não é o</p><p>oposto do desafio e da dificuldade. Entendemos que a</p><p>presença da luz não é resultado do fim da escuridão. A paz é</p><p>encontrada não na ausência de desafios, mas em nossa</p><p>capacidade de estar em dificuldade sem julgamento,</p><p>preconceito e resistência. Descobrimos que temos energia e fé</p><p>para nos curar e para curar o mundo estando de coração</p><p>aberto nesse movimento.</p><p>Conforme Jacó abraça seu adversário, ele se move em meio à</p><p>escuridão, em direção à luz.</p><p>Em vez de deixar o anjo partir quando a luz chega, Jacó pede</p><p>e recebe uma bênção. É significativo que ele não possa receber</p><p>a bênção sem antes abandonar o medo e abrir o coração para</p><p>ser tocado pela graça. Sanford observa:</p><p>Jacó se recusa a terminar sua experiência até conhecer o seu</p><p>significado, e isso o marcou como um homem de grandeza</p><p>espiritual. Toda pessoa que se bate com sua experiência</p><p>espiritual e psicológica e, não importa quão escura ou</p><p>assustadora ela seja, se recusa a deixá-la de lado até</p><p>descobrir seu significado, está vivenciando parte da</p><p>experiência de Jacó. Essa pessoa pode emergir de sua luta na</p><p>escuridão, do outro lado, renascida, mas quem bate em</p><p>retirada e</p><p>foge desse encontro com a realidade espiritual não</p><p>pode ser transformado.</p><p>Deveria nos tranquilizar que a bênção concedida a Jacó pelo</p><p>anjo venha na forma de um ferimento.</p><p>Ser ferido não é motivo de vergonha, é necessário para o</p><p>crescimento e o despertar espirituais. Consigo me lembrar de</p><p>como me parecia estranho na infância, quando lia essa história</p><p>repetidamente em meu grande livro de histórias bíblicas para</p><p>crianças, que ser machucado pudesse ser uma bênção. Para</p><p>minha mente infantil, um ferimento era sempre negativo. Ser</p><p>incapaz de se proteger de ferimentos provocados pelos outros</p><p>era motivo de vergonha. Em Coming Out of Shame: Transforming</p><p>Gay and Lesbian Lives [Sair do armário da vergonha:</p><p>transformando a vida de gays e lésbicas], Gershen Kaufman e</p><p>Lev Raphael argumentam:</p><p>A vergonha é a emoção mais perturbadora que</p><p>experimentamos diretamente em relação a nós mesmos, pois</p><p>no momento da vergonha nos sentimos profundamente</p><p>divididos internamente. A vergonha é como uma ferida</p><p>provocada por uma mão invisível, uma reação à derrota, ao</p><p>fracasso ou à rejeição. No mesmo momento em que nos</p><p>sentimos desconectados ao máximo, desejamos abraçar a nós</p><p>mesmos mais uma vez, nos sentirmos restaurados. A</p><p>vergonha nos divide de nós mesmos, assim como nos separa</p><p>dos outros, e, porque ainda ansiamos pela união, a vergonha é</p><p>profundamente perturbadora.</p><p>A vergonha de ter sido ferido impede muitas pessoas de</p><p>buscarem a cura. Elas preferem negar ou reprimir a realidade da</p><p>dor. Em nossa cultura, ouvimos muito sobre a culpa, mas não o</p><p>bastante sobre a política da vergonha. Enquanto sentirmos</p><p>vergonha, nunca seremos capazes de acreditar que somos</p><p>dignos de amor.</p><p>Frequentemente, a vergonha de termos sido feridos tem</p><p>origem na infância. É então que muitos de nós aprendemos pela</p><p>primeira vez que é uma virtude se calar em relação à dor. Em</p><p>Banished Knowledge: Facing Childhood Injuries [O conhecimento</p><p>banido: encarando feridas da infância], a psicanalista Alice Miller</p><p>afirma:</p><p>Não levar o próprio sentimento a sério, torná-lo mais leve ou</p><p>até mesmo rir dele, em nossa cultura, é considerado bons</p><p>modos. Essa atitude é até mesmo chamada de virtude, e</p><p>muitas pessoas (inclusive eu mesma, em certa época) se</p><p>orgulham de sua falta de sensibilidade em relação ao próprio</p><p>destino e, acima de tudo, em relação à própria infância.</p><p>Conforme mais pessoas encontram coragem para romper com a</p><p>vergonha e falar das mágoas em sua vida, nós agora estamos</p><p>sujeitos a uma resposta cultural maldosa, em que toda conversa</p><p>sobre ser ferido é recebida com zombaria. Minimizar a tentativa</p><p>de qualquer um de nomear o contexto no qual foi ferido, no qual</p><p>foi transformado em vítima, é uma forma de constrangimento. É</p><p>terrorismo psicológico. O constrangimento parte nosso coração.</p><p>Todos os indivíduos que estão verdadeiramente em busca do</p><p>bem-estar dentro de um contexto curativo percebem que, nesse</p><p>processo, é importante não transformar a condição de vítima em</p><p>motivo de orgulho ou em um local a partir do qual se possa</p><p>simplesmente culpar os outros. Precisamos falar de nossa</p><p>vergonha e de nossa dor corajosamente para nos recuperarmos.</p><p>Abordar o que nos feriu não é culpar os outros; contudo, isso</p><p>permite que os indivíduos que foram e estão sendo machucados</p><p>insistam no reconhecimento e na responsabilidade vindos de si</p><p>próprios e dos que foram os agentes de seu sofrimento, assim</p><p>como dos que o testemunharam. A confrontação construtiva</p><p>ajuda em nossa cura.</p><p>A história da confrontação de Jacó com o anjo é uma narrativa</p><p>de cura precisamente porque mostra que ele é inocente. Ele não</p><p>fez nada para enfurecer o anjo. Não foi ele quem provocou o</p><p>conflito. Ele não é responsável. E ele não deve ser culpado por</p><p>seu ferimento. Contudo, a cura acontece quando ele é capaz de</p><p>acolher a ferida como uma bênção e assume a responsabilidade</p><p>por seus atos.</p><p>Todos somos feridos em alguns momentos. Boa parte de nós</p><p>permanecemos feridos nos espaços onde deveríamos conhecer</p><p>o amor. Carregamos essa ferida da infância para a vida adulta e</p><p>até a velhice. A história de Jacó nos lembra que aceitar nossa</p><p>ferida é a única forma de nos curarmos. Ele aceita sua</p><p>vulnerabilidade. Kornfield e Feldman nos recordam que o</p><p>momento em que somos tocados pela dor e pela</p><p>“imprevisibilidade das mudanças da vida” é o momento em que</p><p>podemos encontrar a salvação:</p><p>À medida que nos voltamos para as sombras específicas em</p><p>nossa vida com o coração aberto e a mente clara e focada,</p><p>deixamos de resistir e começamos a compreender e a nos</p><p>curar. Para fazer isso, precisamos aprender a sentir</p><p>profundamente, não tanto abrindo os olhos, mas abrindo</p><p>nossa percepção interna da mente e do coração.</p><p>Quando Jacó luta com o anjo, ele sente uma percepção elevada</p><p>de consciência. Encarar sua luta lhe dá a coragem de perseverar</p><p>em sua jornada de volta para confrontar os conflitos e se</p><p>reconciliar com eles, em vez de viver em alienação e</p><p>distanciamento.</p><p>Como país, precisamos reunir nossa coragem coletiva e</p><p>encarar que o desamor em nossa sociedade é uma ferida. Ao</p><p>nos permitirmos reconhecer a dor dessa ferida quando ela</p><p>perfura nossa carne e sentir nas profundezas de nossa alma uma</p><p>angústia profunda do espírito, passamos a ficar frente a frente</p><p>com a possibilidade de conversão, de termos uma transformação</p><p>em nosso coração. Desse modo, o reconhecimento da ferida é</p><p>uma bênção, porque somos capazes de cuidar dela, de cuidar da</p><p>alma de formas que nos deixam prontos para receber o amor que</p><p>nos é prometido.</p><p>Os anjos nos trazem o conhecimento de como devemos</p><p>prosseguir no caminho do amor e do bem-estar. Vindo a nós</p><p>tanto em forma humana quanto em puro espírito, eles nos guiam,</p><p>instruem e protegem. Alice Miller escolheu chamar a força</p><p>angelical na vida de um indivíduo de “testemunha iluminada”.</p><p>Para ela, tratava-se, particularmente, de qualquer indivíduo que</p><p>oferecesse esperança, amor e orientação para uma criança</p><p>ferida em qualquer ambiente disfuncional. A maioria das pessoas</p><p>que vêm de uma família conflituosa ou de ambientes sem amor</p><p>se lembra de indivíduos que ofereceram simpatia, compreensão</p><p>e, às vezes, uma saída. Ao falar sobre a “infância infeliz” de sua</p><p>mãe, Hillary Clinton se lembra de que “outros, fora do círculo da</p><p>família, intervieram, e sua ajuda fez toda a diferença”. Da infância</p><p>em diante, descobri muitos dos meus anjos nos meus autores</p><p>preferidos, escritores que criaram livros que me permitiram</p><p>entender a vida com mais complexidade. Essas obras abriram</p><p>meu coração para a compaixão, o perdão, a compreensão. Em</p><p>Are you Somebody? The Accidental Memoir of a Dublin Woman</p><p>[Você é alguém? Memórias acidentais de uma mulher</p><p>dublinense], a jornalista irlandesa Nuala O’Faolain escreve sobre</p><p>a natureza salvadora dos livros, afirmando: “Se não houvesse</p><p>mais nada, ler — obviamente — seria algo pelo qual valeria a</p><p>pena viver”.</p><p>A escrita autobiográfica do poeta alemão Rainer Maria Rilke</p><p>transformou minha percepção de identidade na adolescência.</p><p>Numa época em que eu me sentia deslocada, indigna e</p><p>indesejada, sua obra me permitiu ver o fato de ser uma outsider</p><p>como um lugar de criatividade e possibilidade. No último capítulo</p><p>das minhas memórias de infância, Bone Black [Carvão de osso],</p><p>escrevi:</p><p>Rilke dá sentido à selvageria de espírito em que estou</p><p>vivendo. Seu livro é um mundo no qual entro e me descubro.</p><p>Ele me diz que tudo de terrível é realmente algo indefeso que</p><p>deseja a nossa ajuda. Leio Cartas para um jovem poeta várias</p><p>vezes. Estou me afogando e essa é a jangada que me leva em</p><p>segurança para a margem.</p><p>Ganhei esse livro de presente num retiro espiritual. Lá, conheci</p><p>um padre que trabalhava como capelão numa faculdade dos</p><p>arredores. Ele era um dos palestrantes convidados. Intuindo a</p><p>profundidade do meu desespero, ele me ofereceu consolo. Eu</p><p>estava na adolescência e tinha começado a sentir como se não</p><p>fosse capaz de continuar vivendo. Desejos suicidas dominavam</p><p>meus pensamentos, quando estava acordada, e tinha pesadelos.</p><p>Eu acreditava que a morte me libertaria da tristeza imensa que</p><p>pesava sobre mim.</p><p>Ouvindo testemunhos</p><p>espirituais no retiro, senti ainda mais</p><p>sofrimento. Eu não conseguia entender como todos os outros</p><p>podiam se sentir elevados pelo espírito divino enquanto eu me</p><p>sentia mais e mais sozinha, como se estivesse caindo num</p><p>abismo sem esperança de ser resgatada. Nunca perguntei ao</p><p>padre B. o que ele viu quando olhou para mim ou por que fui</p><p>escolhida entre os indivíduos que ele selecionou para</p><p>aconselhamento espiritual. Ele tocou a minha alma, oferecendo</p><p>para mim (e para todos com quem se conectou) um espírito</p><p>amoroso. Na sua presença, eu me senti escolhida, amada. Como</p><p>ocorre com muitos anjos terrenos que nos visitam e tocam a</p><p>nossa vida com seu poder visionário e sua sabedoria curativa,</p><p>nunca mais o encontrei. No entanto, nunca esqueci sua presença</p><p>e os presentes que ele me deu — dons do amor e da compaixão</p><p>ofertados livremente.</p><p>A presença de anjos, de espíritos angelicais, nos recorda que</p><p>existe um reino de mistério que não pode ser explicado pelo</p><p>intelecto e pela vontade humana. Todos nós experimentamos</p><p>esse mistério em nosso dia a dia de diversas formas, mesmo que</p><p>pequenas, quer nos vejamos como “espiritualizados” ou não. Nós</p><p>nos vemos no lugar certo e na hora certa, prontos e capazes de</p><p>receber bênçãos sem saber como fomos parar ali.</p><p>Frequentemente olhamos para os eventos em retrospecto e</p><p>podemos traçar um padrão que nos permite reconhecer</p><p>intuitivamente a presença de um espírito invisível guiando e</p><p>direcionando o nosso caminho.</p><p>Quando eu era garota, ficava deitada em minha cama no</p><p>sótão e falava sem parar com o espírito divino sobre a natureza</p><p>do amor. Na época, eu não imaginava que um dia teria coragem</p><p>de falar sobre o amor sem a proteção solitária do sigilo ou da</p><p>noite. Como Jacó, vagando sozinho à margem do riacho, na</p><p>calma de meu quarto escuro como breu, eu me pegava com a</p><p>metafísica do amor, tentando entender seu mistério. Esse tatear</p><p>continuou até que a minha consciência se intensificou e me veio</p><p>uma nova visão do amor. Agora reconheço que, desde aquela</p><p>época até agora, estive envolvida numa prática espiritual</p><p>disciplinada: abrir o coração. Isso me levou a me tornar uma</p><p>seguidora devota do caminho do amor — a falar cara a cara com</p><p>os anjos, sem medo.</p><p>Compreender todas as formas pelas quais o medo atravessa</p><p>nosso caminho em direção a conhecer o amor é um desafio.</p><p>Com temor de que acreditar nas verdades do amor e deixar que</p><p>guiem nossa vida nos levará a mais traição, nos afastamos do</p><p>amor quando nosso coração está cheio de desejo. Sermos</p><p>amorosos não significa que não seremos traídos. O amor nos</p><p>ajuda a encarar a traição sem perder nosso coração. E isso</p><p>renova nosso espírito, para que possamos amar novamente. Não</p><p>importa quão dura ou terrível seja nossa vida, ao rejeitar o</p><p>desamor — ao escolher o amor — podemos ouvir as vozes da</p><p>esperança que falam ao nosso coração — as vozes dos anjos.</p><p>Quando os anjos falam de amor, eles nos falam que apenas</p><p>amando adentramos um paraíso terreno. Eles nos dizem que o</p><p>paraíso terreno é nosso lar, e o amor, nosso verdadeiro destino.</p><p>bibliografia</p><p>selecionada</p><p>��������, Diane. A Natural History of Love. Nova York: Random House,</p><p>1994. [Ed. bras.: Uma história natural do amor. Rio de Janeiro: Bertrand</p><p>Brasil, 1997.]</p><p>��������, Tessa. Holy Daring: Conversations with St. Teresa, the Wild</p><p>Woman of Avila. Shaftesbury: Element Books, 1994.</p><p>���������, Jack. A Path with Heart. Boston: Shambhala Publications, 1994.</p><p>[Ed. bras.: Um caminho com o coração: como vivenciar a prática da vida</p><p>espiritual nos dias de hoje. São Paulo: Cultrix, 2012.]</p><p>������, Thomas. Love and Living. Nova York: Commonweal Publishing,</p><p>1997.</p><p>������, Henri. The Inner Voice of Love. Nova York: Doubleday, 1996. [Ed.</p><p>bras.: A voz íntima do amor: uma jornada através da angústia para a</p><p>liberdade. Rio de Janeiro: Paulinas, 1999.]</p><p>������, Parker. The Active Life. Nova York: HarperCollins, 1990. [Ed. bras.:</p><p>Vida ativa: nossa jornada num mundo de criatividade, espiritualidade e</p><p>ação. São Paulo: Cultrix, 1998.]</p><p>����, M. Scott. The Road Less Traveled. Nova York: Simon & Schuster,</p><p>1978. [Ed. bras.: A trilha menos percorrida: uma nova visão da psicologia</p><p>sobre o amor, os valores tradicionais e o crescimento espiritual. Rio de</p><p>Janeiro: Nova Era, 2008.]</p><p>��������, Sharon. A Heart as Wide as the World: Stories on the Path of</p><p>Lovingkindness. Boulder: Shambhala Publications, 1997.</p><p>������, Judith. Necessary Losses. Nova York: Simon & Schuster, 1986. [Ed.</p><p>bras.: Perdas necessárias. São Paulo: Melhoramentos, 2019.]</p><p>�������, John. Love and Awakening: Discovering the Sacred Path of</p><p>Intimate Relationship. Nova York: Harper Perennial, 1996.</p><p>����������, Marianne. The Healing of America. Nova York: Simon &</p><p>Schuster, 1977.</p><p>sobre</p><p>a autora</p><p>bell hooks é uma das mais importantes intelectuais feministas</p><p>da atualidade. Nasceu em 1952 em Hopkinsville, então uma</p><p>pequena cidade segregada do Kentucky, no sul dos Estados</p><p>Unidos. Batizada como Gloria Jean Watkins, adotou o</p><p>pseudônimo pelo qual ficou conhecida em homenagem à bisavó,</p><p>Bell Blair Hooks, “uma mulher de língua afiada, que falava o que</p><p>vinha à cabeça, que não tinha medo de erguer a voz”. Como</p><p>estudante, passou pelas universidades de Stanford, Wisconsin e</p><p>Califórnia, e lecionou nas universidades Yale, do Sul da Califórnia</p><p>e New School, em Nova York. Em 2014, fundou o bell hooks</p><p>Institute. É autora de mais de trinta livros sobre questões de raça,</p><p>gênero e classe, educação, crítica de mídia e cultura</p><p>contemporânea, entre eles Olhares negros: raça e representação</p><p>(Elefante, 2019), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar</p><p>como negra (Elefante, 2019), Anseios: raça, gênero e políticas</p><p>culturais (Elefante, 2019) e Ensinando pensamento crítico:</p><p>sabedoria prática (Elefante, 2020).</p><p>© Editora Elefante, 2021</p><p>© Gloria Watkins, 2021</p><p>Primeira edição, janeiro de 2021</p><p>São Paulo, Brasil</p><p>Título original:</p><p>All About Love: New Visions, bell hooks</p><p>© All rights reserved, 2000</p><p>Authorized translation from the English language edition published by Harper</p><p>Perennial, a member of the HarperCollins Group llc.</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Angélica Ilacqua CRB – 8/7057</p><p>hooks, bell, 1952-</p><p>Tudo sobre o amor: novas perspectivas / bell hooks; tradução Stephanie</p><p>Borges. São Paulo: Elefante, 2021.</p><p>Título original: All about Love</p><p>ISBN 978-65-87235-30-1</p><p>1. Amor 2. Amor - Aspectos sociais 3. Ética 4. Ética feminista I. Título II.</p><p>Borges, Stephanie</p><p>CDD 306.720-4663</p><p>Índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Amor: Aspectos éticos e sociais</p><p>EDITORA ELEFANTE</p><p>editoraelefante.com.br</p><p>editoraelefante@gmail.com</p><p>fb.com/editoraelefante</p><p>@editoraelefante</p><p>Ensinando pensamento crítico</p><p>hooks, bell</p><p>9786587235134</p><p>294 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>"A existência humana é, porque se fez perguntando, a raiz da</p><p>transformação do mundo. Há uma radicalidade na existência, que</p><p>é a radicalidade do ato de perguntar." É com esta citação do</p><p>educador brasileiro Paulo Freire que a educadora negra</p><p>estadunidense bell hooks inicia o livro Ensinando pensamento</p><p>crítico: sabedoria prática. Ensinando pensamento crítico é uma</p><p>continuação do aclamado Ensinando a transgredir, lançado no</p><p>Brasil em 2017. Os livros fazem parte da Trilogia do Ensino</p><p>escrita por bell hooks entre os anos anos 1990 e 2000. A coleção</p><p>inclui ainda Ensinando comunidade: uma pedagogia da</p><p>esperança, que a Elefante lança nos próximos meses,</p><p>disponibilizando para o público brasileiro a sequência completa</p><p>da obra pedagógica da autora. Ensinando pensamento crítico</p><p>chega ao Brasil em uma parceria da Elefante com a ONG Ação</p><p>Educativa, em uma época de retrocessos em todas as áreas, e</p><p>não apenas no país; mas também em um momento em que</p><p>setores da sociedade — notadamente, o movimento negro —</p><p>reagem com força ao absurdo da violência cotidiana em todos os</p><p>níveis de existência que, apesar dos discursos sobre igualdade,</p><p>não deixa as pessoas negras respirarem. O livro trata de</p><p>inúmeros temas, como descolonização, engajamento,</p><p>integridade, colaboração, transmissão oral de conhecimento,</p><p>imaginação, humor, conflito, espiritualidade,</p><p>sexo e, é claro, raça,</p><p>gênero e classe — temas que marcam a obra de bell hooks de</p><p>maneira transversal. A autora diz que encontrou inspiração para</p><p>Ensinando pensamento crítico das lições que aprendeu dos</p><p>professores com os quais estudou nas escolas segregadas do</p><p>Kentucky, nos Estados Unidos, nos anos 1950. "Para eles, a 'boa</p><p>educação' não consistia apenas em nos dar conhecimento e nos</p><p>preparar para uma profissão: era também uma formação que</p><p>incentivaria o compromisso contínuo com a justiça social,</p><p>especialmente com a luta por igualdade racial." E, como lembra</p><p>Sérgio Haddad, autor de uma biografia de Paulo Freire e que</p><p>gentilmente escreveu o prefácio à edição brasileira de Ensinando</p><p>pensamento crítico, bell hooks defende que "a escola não</p><p>deveria ser um lugar em que os estudantes são doutrinados para</p><p>apoiar o patriarcado capitalista, supremacista branco e</p><p>imperialista, mas sim onde aprendam a abrir suas mentes e se</p><p>engajem em estudos rigorosos para pensar criticamente".</p><p>Compre agora e leia</p><p>De bala em prosa</p><p>Vários autores</p><p>9786599014109</p><p>148 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>O que dizer diante do permanente genocídio negro cometido pelo</p><p>Estado brasileiro? Como descrevê-lo? De que maneira expressar</p><p>a justa revolta pelo rastro de sangue que os projéteis oficiais</p><p>deixam nas periferias das grandes cidades? De bala em prosa</p><p>reúne textos de autores e autoras negras. São pessoas</p><p>diretamente impactadas pela escalada da violência fardada no</p><p>país. A gota d'água que os levou a escrever — mais uma dentre</p><p>tantas que historicamente já transbordaram qualquer nível</p><p>mínimo de civilidade — foi a morte de um músico e um catador</p><p>de materiais recicláveis no Rio de Janeiro em abril de 2019.</p><p>Negros, ambos foram assassinados pelo Exército, que disparou</p><p>"por engano" o que no momento foi divulgado como "oitenta tiros"</p><p>— mas que, na verdade, eram 257 — contra um carro que os</p><p>militares "acharam" que tinha sido roubado. Os soldados</p><p>mentiram, os governantes desconversaram, a imensa maioria da</p><p>população permaneceu indiferente. Pipocos contra gente preta já</p><p>viraram rotina, não causam a comoção que deveriam nem</p><p>quando chegam à casa das centenas. A quem minimamente</p><p>resolveu se perguntar por quê, afinal, as autoridades fariam</p><p>tamanha barbaridade contra cidadãos a caminho de um chá de</p><p>bebê em um domingo à tarde, os textos desta coletânea</p><p>respondem de diversas maneiras, em diversos estilos e sob</p><p>diversos pontos de vista, mas sempre com o peso da experiência</p><p>de quem sabe que, pela cor que indelevelmente carrega na pele,</p><p>está na mira do fuzil — e pode ser o próximo a engrossar as</p><p>estatísticas. Eis o grito que ressoa em cada uma destas linhas.</p><p>Quem escreve aqui escreve a partir de um cotidiano</p><p>claustrofóbico de violência e preconceito, com raízes bem</p><p>fincadas na escravidão. Angústia e sensação de impotência</p><p>escorrem pelas vírgulas e pontos finais. Mesmo os textos mais</p><p>otimistas estão empapados de sangue. Boa parte deles se</p><p>direciona não apenas ao poder estatal que controla, reprime,</p><p>encarcera e mata, mas aos poucos brancos que conseguem</p><p>enxergar o racismo estrutural brasileiro, mesmo sem senti-lo ou</p><p>compreendê-lo. Respire fundo. Destilado nas próximas páginas</p><p>está o apelo de quem, com a garganta entalada, quis transmitir</p><p>aos vivos a voz dos mortos — e dos sobreviventes. O genocídio</p><p>precisa acabar.</p><p>Compre agora e leia</p><p>Calibã e a bruxa</p><p>Federici, Silvia</p><p>9788593115301</p><p>460 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema</p><p>interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões</p><p>históricas muito importantes: como explicar a execução de</p><p>centenas de milhares de "bruxas" no começo da Era Moderna, e</p><p>por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra</p><p>contra as mulheres. Segundo esse esquema, a caça às bruxas</p><p>buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido</p><p>sobre sua própria função reprodutiva, e preparou o terreno para o</p><p>desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor. Essa</p><p>interpretação também defende que a caça às bruxas tinha raízes</p><p>nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do</p><p>capitalismo. No entanto, as circunstâncias históricas específicas</p><p>em que a perseguição às bruxas se desenvolveu — e as razões</p><p>pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque</p><p>genocida contra as mulheres — ainda não tinham sido</p><p>investigadas. Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a</p><p>bruxa, começando pela análise da caça às bruxas no contexto</p><p>das crises demográfica e econômica europeias dos séculos XVI e</p><p>XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista.</p><p>Meu esforço aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria</p><p>necessária para esclarecer as conexões mencionadas e,</p><p>especialmente, a relação entre a caça às bruxas e o</p><p>desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do</p><p>trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo. No</p><p>entanto, convém demonstrar que a perseguição às bruxas —</p><p>assim como o tráfico de escravos e os cercamentos — constituiu</p><p>um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado</p><p>moderno, tanto na Europa como no Novo Mundo. — Silvia</p><p>Federici</p><p>Compre agora e leia</p><p>Memória ocular</p><p>Breda, Tadeu</p><p>9786587235028</p><p>232 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>Em 13 de junho de 2013, o fotógrafo Sérgio Silva foi alvejado no</p><p>olho por uma bala de borracha da Polícia Militar enquanto cobria</p><p>um protesto no centro de São Paulo. Perdeu a visão na mesma</p><p>hora. Cinco anos depois, o pedido de indenização que moveu na</p><p>justiça já foi negado em primeira e segunda instâncias. E as</p><p>bombas e os projéteis da PM alcançaram a vista de pelo menos</p><p>mais cinco pessoas. Em textos e imagens, Memória ocular</p><p>acompanha a trajetória do fotógrafo ano a ano, e aborda também</p><p>o drama de outros cidadãos cegados — ou quase — pela polícia</p><p>paulista. É uma tentativa de entender como a violência se</p><p>multiplica na vida de quem foi atingido pelas armas oficiais,</p><p>criando profundas cicatrizes psicológicas além das que</p><p>permanecem no corpo. O que significa ser uma vítima do Estado</p><p>hoje, depois de mais de trinta anos de "redemocratização"?</p><p>Compre agora e leia</p><p>O Bem Viver</p><p>Acosta, Alberto</p><p>9788593115387</p><p>264 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>Um sistema com desigualdades gritantes sobrevive há séculos,</p><p>com o apoio de milhões e a subordinação de bilhões. Agora, nos</p><p>conduz ao suicídio coletivo. As promessas do progresso, feitas</p><p>há mais de quinhentos anos, e as do desenvolvimento, que</p><p>ganharam o mundo a partir da década de 1950, não se</p><p>cumpriram. E não se cumprirão. Contra problemas cada vez mais</p><p>evidentes, Alberto Acosta resgata o conceito de sumak kawsay,</p><p>de origem kíchwa, e nos propõe uma ruptura civilizatória calcada</p><p>na utopia do Bem Viver, tão necessária em tempos distópicos, e</p><p>na urgência de se construir sociedades verdadeiramente</p><p>solidárias e sustentáveis. Uma quebra de paradigmas para</p><p>superar o fatalismo do desenvolvimento, reatar a comunhão entre</p><p>Humanidade e Natureza e revalorizar diversidades culturais e</p><p>modos de vida suprimidos pela homogeneização imposta pelo</p><p>Ocidente. O Bem Viver foi escrito por um dos maiores</p><p>responsáveis por colocar os Direitos da Natureza na Constituição</p><p>do Equador, feito inédito no mundo. Não se trata de viver la dolce</p><p>vita, de ser um bon vivant. O Bem Viver não se oferece como a</p><p>enésima tentativa de um capitalismo menos desumano – nem</p><p>deseja ser um socialismo do século 21. Muito pelo contrário:</p><p>acusa a ambos sistemas, irmanados na exploração inclemente</p><p>de recursos naturais. O Bem Viver é a superação do extrativismo,</p><p>com ideias oriundas dos povos e nacionalidades indígenas, mas</p><p>também de outras partes do mundo. O que fazer? Acosta oferece</p><p>uma série de caminhos, mas também nos alerta: não há apenas</p><p>uma maneira para começar a construir um novo modelo. A única</p><p>certeza é de que a trajetória deve ser democrática desde o início,</p><p>construída pela e para a sociedade. Os seres humanos são uma</p><p>promessa, não uma ameaça.</p><p>Compre agora e leia</p><p>quando bebo água ou pego um prato no armário,</p><p>paro diante desse lembrete de que todos ansiamos por amor —</p><p>todos o buscamos —, mesmo quando não temos esperança de</p><p>que ele possa ser de fato encontrado.</p><p>•••</p><p>Não há muitos debates públicos a respeito do amor em nossa</p><p>cultura hoje. No máximo, a cultura popular é o domínio em que</p><p>nosso desejo por amor é mencionado. Filmes, músicas, revistas</p><p>e livros são os locais para os quais nos voltamos para ver</p><p>expressos nossos anseios amorosos. No entanto, não se trata</p><p>daquele discurso de afirmação da vida dos anos 1960 e 1970,</p><p>que nos instava a acreditar que “All You Need Is Love”.1</p><p>Atualmente, as mensagens mais populares são as que declaram</p><p>a insignificância do amor, sua irrelevância. Um exemplo evidente</p><p>dessa mudança cultural é o tremendo sucesso alcançado pela</p><p>canção de Tina Turner cujo título declara ousadamente: “What’s</p><p>Love Got to Do With It” [O que o amor tem a ver com isso?].</p><p>Fiquei triste e chocada quando entrevistei uma rapper bem</p><p>conhecida, pelo menos vinte anos mais nova que eu e que,</p><p>perguntada sobre o amor, respondeu com um sarcasmo cortante:</p><p>“Amor: o que é isso? Nunca tive amor algum na minha vida”.</p><p>A cultura jovem de hoje é cínica em relação ao amor. E esse</p><p>cinismo vem do sentimento dominante de que o amor não pode</p><p>ser encontrado. Em When All You’ve Ever Wanted Isn’t Enough:</p><p>The Search for a Life That Matters [Quando tudo o que você</p><p>queria não é o bastante: a busca por uma vida que importe],</p><p>Harold Kushner escreve sobre essa preocupação:</p><p>Temo que estejamos criando uma geração inteira de jovens</p><p>que crescerão com medo de amar, com medo de se entregar</p><p>completamente a outra pessoa, porque terão visto quanto dói</p><p>correr o risco de amar e não dar certo. Temo que eles cresçam</p><p>procurando intimidade sem risco, prazer sem investimento</p><p>emocional significativo. Eles terão tanto medo da dor da</p><p>decepção que renunciarão às possibilidades do amor e da</p><p>alegria.</p><p>Jovens são cínicos em relação ao amor. No fim das contas, o</p><p>cinismo é uma grande máscara para um coração decepcionado e</p><p>traído.</p><p>Quando viajo pelo país dando palestras sobre como acabar</p><p>com o racismo e o machismo, o público, especialmente os</p><p>jovens, fica agitado quando falo sobre o papel do amor em</p><p>qualquer movimento por justiça social. Todos os grandes</p><p>movimentos por justiça social de nossa sociedade têm enfatizado</p><p>fortemente uma ética do amor. No entanto, os jovens continuam</p><p>relutantes em abraçar a ideia do amor como uma força</p><p>transformadora. Para eles, o amor é para os ingênuos, os fracos,</p><p>os românticos incorrigíveis. Sua atitude se espelha na dos</p><p>adultos, aos quais se dirigem pedindo explicações. Como porta-</p><p>voz de uma geração desiludida, em Bitch: In Praise of Difficult</p><p>Women [Puta: um elogio a mulheres difíceis], Elizabeth Wurtzel</p><p>afirma: “Nenhuma de nós está ficando melhor em amar, estamos</p><p>é ficando com mais medo. Para começo de conversa, não nos</p><p>ensinaram a ser hábeis, e as escolhas que fazemos tendem</p><p>apenas a reforçar a sensação de que o amor é inútil e sem</p><p>esperança”. Suas palavras ecoam tudo que costumo ouvir de</p><p>uma geração mais velha a respeito do amor.</p><p>Ao falar de amor com pessoas da minha geração, descobri</p><p>que elas ficavam nervosas ou assustadas, especialmente quando</p><p>eu comentava que não me sentia amada o suficiente. Em</p><p>diversas ocasiões em que falei de amor com amigos, eles me</p><p>aconselharam a fazer terapia. Entendi que alguns poucos</p><p>estavam simplesmente cansados da minha insistência na</p><p>questão e achavam que se eu fizesse terapia eles teriam uma</p><p>folga. No entanto, a maioria ficava apavorada em relação ao que</p><p>poderia ser revelado em qualquer investigação sobre o</p><p>significado do amor na vida deles.</p><p>Toda vez que uma mulher solteira por volta dos quarenta anos</p><p>introduz na conversa a questão do amor, vem à tona,</p><p>repetidamente, a suposição, enraizada no pensamento machista,</p><p>de que ela está “desesperada” por um homem. Ninguém pensa</p><p>que ela está apenas intelectualmente interessada no assunto.</p><p>Ninguém pensa que ela está rigorosamente envolvida numa</p><p>empreitada filosófica na qual está se aventurando a entender o</p><p>significado metafísico do amor na vida cotidiana. Não: ela é vista</p><p>apenas como alguém em busca de uma “atração fatal”.</p><p>A decepção e uma sensação persistente de coração partido</p><p>me levaram a começar a pensar mais profundamente no</p><p>significado do amor em nossa cultura. Meu desejo de encontrar o</p><p>amor não me fez perder meu senso de razão nem de</p><p>perspectiva; ele me incentivou a pensar mais, a falar de amor e a</p><p>pesquisar o tema em textos populares e também em estudos</p><p>mais sérios. Quando me debrucei sobre obras de não ficção a</p><p>respeito do amor, me surpreendi ao descobrir que a grande</p><p>maioria dos livros “reverenciados”, aqueles usados como</p><p>referência, e mesmo dos livros populares de autoajuda, havia</p><p>sido escrita por homens. Durante toda a minha vida, pensei no</p><p>amor como um tópico que as mulheres contemplam com maior</p><p>intensidade e vigor que qualquer outra pessoa no planeta. Ainda</p><p>acredito nisso, embora as elaborações visionárias das mulheres</p><p>sobre o assunto ainda precisem ser levadas tão a sério quanto os</p><p>pensamentos e os escritos dos homens. Ainda que eles teorizem</p><p>sobre o amor, são as mulheres que o praticam com mais</p><p>frequência. A maioria dos homens sente que recebe amor e,</p><p>portanto, sabe o que é ser amado; as mulheres geralmente se</p><p>sentem num estado constante de anseio, querendo amor, mas</p><p>sem recebê-lo.</p><p>Na cartilha A Little Book on Love: A Wise and Inspiring Guide</p><p>to Discovering the Gift of Love [Um pequeno livro sobre o amor:</p><p>um guia sábio e inspirador para descobrir a dádiva do amor], do</p><p>filósofo Jacob Needleman, praticamente todas as principais</p><p>narrativas de amor comentadas foram escritas por homens. Sua</p><p>lista de referências importantes não inclui livros escritos por</p><p>mulheres. Das aulas que tive durante o doutorado em literatura,</p><p>só consigo me lembrar de uma poeta exaltada como uma alta</p><p>sacerdotisa do amor, Elizabeth Barrett Browning. Contudo, ela</p><p>era considerada uma poeta menor. Apesar disso, até os</p><p>estudantes menos ligados à literatura entre nós conheciam o</p><p>primeiro verso de seu soneto mais famoso: “How do I love thee?</p><p>Let me count the ways”.2 Isso foi antes do feminismo. Com o</p><p>despertar do movimento feminista contemporâneo, a poeta grega</p><p>Safo se tornou outra consagrada deusa do amor.</p><p>Naquela época, em qualquer curso de escrita criativa, os</p><p>poetas que se dedicavam a poemas de amor eram sempre</p><p>homens. De fato, o companheiro que deixei depois de muitos</p><p>anos me cortejou inicialmente com um poema de amor. Ele</p><p>sempre foi emocionalmente indisponível e não se interessava</p><p>nem um pouco pelo amor como assunto de conversas nem como</p><p>uma prática do dia a dia, mas acreditava plenamente que tinha</p><p>algo significativo a dizer a respeito do tema. Já eu pensava que</p><p>todas as minhas tentativas adultas de escrever poemas de amor</p><p>eram piegas e patéticas. As palavras me faltavam quando eu</p><p>tentava escrever sobre amor. Meus pensamentos pareciam</p><p>sentimentais, tolos e superficiais. Quando escrevia poesia ainda</p><p>menina, sentia a mesma confiança que, na vida adulta, veria</p><p>apenas nos escritores homens. Quando comecei a escrever</p><p>poesia, pensava que o amor era o único assunto, a paixão mais</p><p>importante. O primeiro poema que publiquei, aos doze anos, se</p><p>chamava “a look at love” [um olhar sobre o amor]. Em algum</p><p>ponto do caminho, na transformação de menina em mulher,</p><p>aprendi que fêmeas realmente não tinham nada sério para</p><p>ensinar ao mundo sobre o amor.</p><p>A morte se tornou meu tema. Ninguém ao meu redor, nem</p><p>professores nem estudantes, duvidava da capacidade de uma</p><p>mulher de ser séria quando se tratava de pensar e escrever</p><p>sobre a morte. Todos os poemas de meu primeiro livro estavam</p><p>ligados à morte e a morrer. Ainda assim, o poema com que abri o</p><p>livro, “The woman’s mourning song” [A canção de luto da mulher],</p><p>era sobre a perda de alguém amado e a recusa em permitir que a</p><p>morte destruísse a memória. Contemplar a morte sempre me</p><p>leva de volta ao amor. Não por acaso, comecei a pensar mais no</p><p>significado do amor conforme</p><p>testemunhava a morte de inúmeros</p><p>amigos, camaradas e conhecidos, muitos deles jovens, partindo</p><p>de maneira inesperada. Quando me aproximava dos quarenta</p><p>anos, encarei o câncer, uma ameaça que se tornou um lugar tão</p><p>comum na vida das mulheres que é praticamente rotineira. Meu</p><p>primeiro pensamento, enquanto esperava os resultados dos</p><p>exames, era que eu não estava pronta para morrer porque ainda</p><p>não tinha encontrado o tipo de amor pelo qual meu coração vinha</p><p>procurando.</p><p>Pouco depois do fim dessa crise, fui acometida por uma</p><p>doença grave, que pôs minha vida em risco. Confrontando a</p><p>possibilidade de morrer, fiquei obcecada com o significado do</p><p>amor na minha vida e na cultura contemporânea. Meu trabalho</p><p>como crítica cultural me ofereceu a oportunidade constante de</p><p>prestar atenção minuciosa a tudo que a grande mídia,</p><p>especialmente filmes e revistas, nos diz a respeito do amor. Na</p><p>maior parte dos casos, ela nos diz que todo mundo quer amor,</p><p>mas que continuamos totalmente confusos em relação à sua</p><p>prática na vida cotidiana. Na cultura popular, o amor sempre é da</p><p>ordem da fantasia. Talvez seja por isso que os homens tenham</p><p>produzido a maioria das teorias acerca do amor. A fantasia tem</p><p>sido em grande parte domínio deles, tanto na esfera da produção</p><p>cultural quanto no dia a dia. A fantasia masculina é vista como</p><p>algo capaz de criar realidade, enquanto a fantasia feminina é</p><p>tratada como puro escapismo. Portanto, o romance, como gênero</p><p>literário, é o único domínio em que as mulheres falam de amor</p><p>com algum grau de autoridade. Entretanto, quando os homens se</p><p>apropriam do gênero das narrativas românticas, suas obras são</p><p>muito mais reconhecidas que a escrita das mulheres. Um livro</p><p>como As pontes de Madison3 é o exemplo supremo. Se essa</p><p>história de amor sentimental e superficial (que, apesar disso, tem</p><p>seus momentos altos) tivesse sido escrita por uma mulher, seria</p><p>improvável que ela se tornasse um sucesso tão grande, cruzando</p><p>todas as fronteiras do gênero literário.</p><p>É claro que são as mulheres as principais consumidoras de</p><p>livros sobre o amor. Ainda assim, o machismo sozinho não</p><p>explica a ausência de mais obras de e sobre o amor escritas por</p><p>mulheres. Aparentemente, as mulheres estão dispostas e</p><p>ansiosas a ouvir o que os homens têm a dizer sobre o amor.</p><p>Mulheres machistas podem achar que já sabem o que outra</p><p>mulher diria. Esse tipo de leitora pode ter a sensação de que tem</p><p>mais a ganhar lendo o que homens têm a dizer.</p><p>Quando eu era mais nova, lia sobre o amor e nunca pensava</p><p>a respeito do gênero do autor. Ansiosa para compreender o que</p><p>queremos dizer quando falamos de amor, não considerava de</p><p>fato o quanto o gênero molda a perspectiva do escritor. Foi</p><p>apenas quando comecei a pensar seriamente sobre o tema do</p><p>amor e a escrever sobre isso que ponderei se mulheres o fazem</p><p>de forma diferente dos homens.</p><p>Ao revisar a bibliografia sobre o amor, percebi que poucos</p><p>escritores, sejam homens ou mulheres, falam do impacto do</p><p>patriarcado, da forma como a dominação masculina sobre</p><p>mulheres e crianças é uma barreira para o amor. A criação do</p><p>amor: a grande etapa do crescimento, de John Bradshaw, é um</p><p>dos meus livros favoritos sobre o tema. Ele corajosamente tenta</p><p>estabelecer uma relação entre a dominação masculina (a</p><p>institucionalização do patriarcado) e a falta de amor nas famílias.</p><p>Conhecido por chamar a atenção em sua obra para a “criança</p><p>interior”, Bradshaw acredita que acabar com o patriarcado é um</p><p>passo em direção ao amor. Entretanto, seu livro a respeito do</p><p>amor nunca recebeu a atenção e o reconhecimento merecidos.</p><p>Ele não teve a repercussão das obras de homens que escrevem</p><p>sobre o assunto reafirmando papéis de gênero machistas.</p><p>Mudanças profundas na forma como pensamos e agimos</p><p>precisam acontecer se quisermos criar uma cultura baseada no</p><p>amor. Homens que escrevem sobre o amor sempre atestam que</p><p>foram amados. Eles falam a partir desse lugar, isso lhes confere</p><p>autoridade. Mulheres, com frequência, falam de um lugar de falta,</p><p>de não terem recebido o amor que desejavam.</p><p>Uma mulher que fala de amor é suspeita. Talvez isso ocorra</p><p>porque tudo que uma mulher esclarecida teria a dizer sobre o</p><p>amor representaria uma ameaça direta e um desafio às visões</p><p>que nos foram oferecidas pelos homens. Aprecio o que os</p><p>escritores homens têm a dizer sobre o amor. Gosto de Rumi e de</p><p>Rilke, poetas que nos comovem com suas palavras. Homens</p><p>geralmente escrevem a respeito do amor recorrendo à fantasia,</p><p>ao que eles imaginam ser possível, e não ao que sabem</p><p>concretamente. Nós agora temos ciência de que Rilke não</p><p>escreveu em consonância com o que viveu, de que tantas</p><p>palavras de amor que nos foram oferecidas por grandes homens</p><p>falham quando encaramos a realidade. E ainda que a obra de</p><p>John Gray me desconcerte e me irrite, confesso que li e reli</p><p>Homens são de Marte, mulheres são de Vênus. Contudo, assim</p><p>como muitos homens e mulheres, quero saber o significado do</p><p>amor além do reino da fantasia — além do que imaginamos que</p><p>possa acontecer. Quero conhecer as verdades do amor conforme</p><p>as vivemos.</p><p>Quase todos os livros recentes e populares de autoajuda</p><p>sobre o amor escritos por homens, títulos como Homens são de</p><p>Marte, mulheres são de Vênus e Love and Awakening:</p><p>Discovering the Sacred Path of Intimate Relationship [Amor e</p><p>despertar: descobrindo o caminho sagrado da relação íntima], de</p><p>John Welwood, se apoiam em perspectivas feministas sobre os</p><p>papéis de gênero. No entanto, em última análise, os autores</p><p>continuam apegados a um sistema de crenças que sugere a</p><p>existência de diferenças intrínsecas entre homens e mulheres.</p><p>Na realidade, todas as evidências concretas indicam que,</p><p>embora as perspectivas de homens e mulheres frequentemente</p><p>difiram, tais diferenças são aprendidas, e não inatas ou</p><p>“naturais”. Se fosse verdadeira a ideia de que homens e</p><p>mulheres são complemente opostos, habitando universos</p><p>emocionais totalmente diferentes, os homens jamais teriam se</p><p>tornado as autoridades máximas no amor. Levando em conta os</p><p>estereótipos de gênero que atribuem às mulheres o papel dos</p><p>sentimentos e da emotividade, e aos homens o da razão e da</p><p>não emoção, “homens de verdade” teriam aversão a qualquer</p><p>conversa a respeito do amor.</p><p>Embora sejam considerados “autoridades” no assunto,</p><p>apenas alguns homens falam abertamente, dizendo ao mundo o</p><p>que pensam em relação ao amor. No dia a dia, homens e</p><p>mulheres são relativamente silenciosos quanto ao tema. Nosso</p><p>silêncio nos protege da incerteza. Queremos conhecer o amor. E</p><p>temos medo de que o desejo de saber muito sobre ele nos</p><p>aproxime cada vez mais do abismo do desamor. Embora vivamos</p><p>numa nação cuja grande maioria dos cidadãos se declara</p><p>seguidora de credos religiosos que proclamam o poder</p><p>transformador do amor, muitas pessoas sentem que não fazem a</p><p>menor ideia de como amar. E praticamente todos sofrem uma</p><p>crise de fé quando se trata de vivenciar no cotidiano as teorias</p><p>bíblicas sobre a arte de amar. É bem mais fácil falar de perda do</p><p>que de amor. É mais fácil articular a dor da ausência do amor que</p><p>descrever sua presença e seu significado em nossa vida.</p><p>Ensinados a acreditar que o lugar do aprendizado é a mente,</p><p>e não o coração, muitos de nós pensamos que o ato de falar de</p><p>amor com qualquer intensidade emocional será percebido como</p><p>fraqueza e irracionalidade. E é especialmente difícil falar de amor</p><p>quando o que temos a dizer chama a atenção para o fato de que</p><p>sua falta é mais comum que sua presença, para o fato de que</p><p>muitos de nós não temos certeza do que estamos dizendo</p><p>quando falamos de amor ou de como expressá-lo.</p><p>Todo mundo quer saber mais sobre o amor. Queremos saber</p><p>o que significa amar, o que podemos fazer em nosso dia a dia</p><p>para amarmos e sermos amados. Queremos saber como seduzir</p><p>aqueles que continuam fiéis à falta de amor e abrir as portas de</p><p>seu coração para que deixem o amor entrar. A força de nosso</p><p>desejo não muda o poder de nossa incerteza cultural. Em todos</p><p>os lugares aprendemos que o amor é importante, mas somos</p><p>bombardeados por seu fracasso. No domínio da política, entre</p><p>religiosos, em nossas</p><p>famílias e em nossa vida afetiva, vemos</p><p>poucos indícios de que o amor serve de base para decisões,</p><p>fortalece nosso entendimento da comunidade ou nos mantém</p><p>juntos. Essa imagem desoladora não altera, de modo algum, a</p><p>natureza de nosso desejo. Nós ainda temos esperança de que o</p><p>amor prevalecerá. Nós ainda acreditamos na promessa do amor.</p><p>Assim como o grafite proclamava, nossa esperança reside no</p><p>fato de que muitos de nós continuamos a acreditar no poder do</p><p>amor. Acreditamos que é importante conhecer o amor.</p><p>Acreditamos que é importante buscar as verdades do amor. Em</p><p>inúmeras conversas privadas e debates públicos, dei e ouvi</p><p>testemunhos sobre o crescente desamor em nossa cultura e</p><p>sobre o medo que isso desperta no coração de todos. Esse</p><p>desespero em relação ao amor faz par com o cinismo indiferente</p><p>que fecha a cara diante de qualquer sugestão de que o amor seja</p><p>tão importante quanto o trabalho, tão fundamental para a nossa</p><p>sobrevivência como nação quanto o ímpeto de ter sucesso.</p><p>Incrivelmente, nosso país, como nenhum outro no mundo, possui</p><p>uma cultura movida pela busca do amor (esse é o tema de</p><p>nossos filmes, de nossa música, de nossa literatura), ainda que</p><p>nos ofereça tão pouca oportunidade de compreender o</p><p>significado do amor ou de saber como torná-lo real em nossas</p><p>palavras e ações.</p><p>Nosso país é igualmente movido pela obsessão sexual. Não</p><p>há aspecto da sexualidade que não seja estudado, comentado ou</p><p>demonstrado. Há tutoriais para todas as dimensões da</p><p>sexualidade, até para a masturbação. No entanto, não existem</p><p>escolas para o amor. Todo mundo supõe que saberemos,</p><p>instintivamente, como amar. Apesar de esmagadoras evidências</p><p>contrárias, ainda aceitamos que a família é a escola primordial</p><p>para o amor. Daqueles de nós que não aprendem como amar em</p><p>família, espera-se que experimentem o amor em relações</p><p>românticas. Contudo, esse amor geralmente nos escapa. E</p><p>passamos a vida inteira desfazendo os danos causados pela</p><p>crueldade, pela negligência e por todas as formas de desamor</p><p>que vivenciamos em nossa família de origem e em</p><p>relacionamentos nos quais simplesmente não sabíamos o que</p><p>fazer.</p><p>Só o amor pode curar as feridas do passado. Entretanto, a</p><p>intensidade de nossos ferimentos frequentemente nos leva a</p><p>fechar nosso coração, tornando impossível retribuirmos ou</p><p>recebermos o amor que nos é dado. Para abrirmos nosso</p><p>coração mais plenamente para o poder e a graça do amor,</p><p>devemos ousar reconhecer quão pouco sabemos sobre ele na</p><p>teoria e na prática. Devemos encarar a confusão e a decepção</p><p>em relação ao fato de que muito do que nos foi ensinado a</p><p>respeito da natureza do amor não faz sentido quando aplicado à</p><p>vida cotidiana. Observando a prática do amor no dia a dia,</p><p>pensando em como amamos e no que é necessário para que a</p><p>nossa cultura se torne uma cultura em que a presença sagrada</p><p>do amor possa ser sentida em todo lugar, escrevi esta reflexão.</p><p>Como o título Tudo sobre o amor: novas perspectivas indica,</p><p>queremos viver numa cultura em que o amor possa florescer.</p><p>Ansiamos por acabar com o desamor, tão prevalente em nossa</p><p>sociedade. Este livro nos diz como regressar ao amor. Tudo</p><p>sobre o amor: novas perspectivas oferece formas novas e</p><p>radicais de pensar a arte de amar, apresentando uma perspectiva</p><p>esperançosa e alegre sobre o poder transformador do amor. Ele</p><p>nos permite saber o que precisamos para amar de novo.</p><p>Reunindo a sabedoria do amor, ele nos possibilita saber o que</p><p>devemos fazer para sermos tocados por sua graça.</p><p>1. Título de uma celebrada canção dos Beatles. Em tradução livre: “O amor é tudo de</p><p>que você precisa”. [�.�.]</p><p>2. Em tradução livre: “Como te amo? Deixa-me contar as maneiras”. Este é o verso de</p><p>abertura do “Soneto 43”, que foi traduzido para o português por Manuel Bandeira; no</p><p>entanto, a versão do poeta desconsidera os primeiros versos para manter a métrica em</p><p>português. [�.�.]</p><p>3. Romance de Robert James Waller, adaptado para o cinema em 1995 com roteiro de</p><p>Richard LaGravenese e direção de Clint Eastwood. [�.�.]</p><p>01.</p><p>clareza:</p><p>pôr o amor</p><p>em palavras</p><p>Enquanto sociedade, nos sentimos constrangidos pelo</p><p>amor. O tratamos como se fosse uma obscenidade.</p><p>Relutamos em admiti-lo. Apenas dizer a palavra nos</p><p>faz tropeçar e corar. […] O amor é a coisa mais</p><p>importante em nossa vida, uma paixão pela qual</p><p>lutaríamos ou morreríamos, e, contudo, ainda</p><p>hesitamos em insistir em seu nome. Sem um</p><p>vocabulário maleável, nem sequer podemos falar ou</p><p>pensar a seu respeito diretamente.</p><p>— Diane Ackerman</p><p>Os homens em minha vida sempre foram cautelosos em relação</p><p>a usar a palavra “amor” levianamente. São precavidos porque</p><p>acreditam que as mulheres dão importância demais ao amor. E</p><p>sabem que o que nós pensamos sobre o significado do amor</p><p>nem sempre é o que eles pensam. Nossa confusão em relação</p><p>ao que queremos dizer quando usamos a palavra “amor” é a</p><p>origem de nossa dificuldade de amar. Se nossa sociedade</p><p>tivesse um entendimento estabelecido quanto ao significado do</p><p>amor, o ato de amar não seria tão confuso. As definições de</p><p>amor nos dicionários tendem a enfatizar o amor romântico,</p><p>definindo-o primeiro e principalmente como “afeição</p><p>profundamente terna e apaixonada por outra pessoa,</p><p>especialmente quando há atração sexual”. É claro que outras</p><p>definições informam o leitor que tais sentimentos podem existir</p><p>em um contexto não sexual. Entretanto, afeição profunda não</p><p>descreve de forma realmente adequada o significado do amor.</p><p>A grande maioria dos livros sobre o amor se esforça para se</p><p>esquivar de definições claras. Na introdução de Uma história</p><p>natural do amor, Diane Ackerman declara: “O amor é o grande</p><p>intangível”. Algumas linhas depois, ela sugere: “Todo mundo</p><p>admite que o amor é maravilhoso e necessário, mas ninguém</p><p>consegue concordar a respeito de sua definição”. Timidamente,</p><p>acrescenta: “Usamos a palavra amor de um jeito tão desleixado</p><p>que ela pode significar quase nada ou absolutamente tudo”. Seu</p><p>livro não traz qualquer definição que ajude alguém que queira</p><p>aprender a arte de amar. Contudo, ela não é a única a escrever</p><p>sobre o amor de forma a turvar o entendimento. Quando o</p><p>próprio significado da palavra é coberto de mistério, não</p><p>surpreende o fato de que a maioria das pessoas considere difícil</p><p>definir a que elas se referem quando usam a palavra “amor”.</p><p>Imagine quão mais fácil seria aprender como amar se</p><p>começássemos com uma definição partilhada. A palavra “amor” é</p><p>um substantivo, mas a maioria dos mais perspicazes teóricos</p><p>dedicados ao tema reconhece que todos amaríamos melhor se</p><p>pensássemos o amor como uma ação.4 Passei anos procurando</p><p>alguma definição significativa da palavra “amor” e fiquei</p><p>profundamente aliviada quando encontrei uma no clássico de</p><p>autoajuda do psiquiatra M. Scott Peck, A trilha menos percorrida:</p><p>uma nova visão da psicologia sobre o amor, os valores</p><p>tradicionais e o crescimento espiritual, publicado originalmente</p><p>em 1978. Reverberando o trabalho de Erich Fromm, ele define o</p><p>amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para</p><p>promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”.</p><p>Para desenvolver a explicação, ele continua: “O amor é o que o</p><p>amor faz. Amar é um ato da vontade — isto é, tanto uma</p><p>intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha.</p><p>Nós não temos que amar. Escolhemos amar”. Uma vez que a</p><p>escolha deve ser feita para alimentar o crescimento, essa</p><p>definição se opõe à hipótese mais amplamente aceita de que</p><p>amamos instintivamente.</p><p>Todo mundo que tenha testemunhado o processo de</p><p>crescimento de uma criança desde o nascimento vê claramente</p><p>que, antes de conhecer a linguagem, antes de reconhecer a</p><p>identidade dos cuidadores, bebês reagem ao cuidado afetuoso.</p><p>Em geral, eles respondem com sons e olhares de prazer.</p><p>Conforme crescem, reagem aos cuidados carinhosos retribuindo</p><p>afeto, emitindo sons guturais diante da bem-vinda aparição de</p><p>um cuidador. A afeição é apenas um dos ingredientes do amor.</p><p>Para amar verdadeiramente, devemos aprender a misturar vários</p><p>ingredientes — carinho, afeição, reconhecimento, respeito,</p><p>compromisso e confiança, assim como honestidade</p><p>e</p><p>comunicação aberta. Aprender definições falhas de amor quando</p><p>somos bem jovens torna difícil sermos amorosos quando</p><p>amadurecemos. Começamos comprometidos com o caminho</p><p>certo, mas seguimos na direção errada. A maioria de nós</p><p>aprende desde cedo a pensar no amor como um sentimento.</p><p>Quando nos sentimos profundamente atraídos por alguém,</p><p>dedicamos energia mental e emocional à pessoa, isto é, a</p><p>investimos de sentimentos e emoções. Esse processo de</p><p>investimento em que a pessoa amada se torna importante para</p><p>nós é chamado “catexia”. Em seu livro, Peck enfatiza</p><p>corretamente que em geral se “confunde a catexia com o amor”.</p><p>Todos sabemos que indivíduos que se sentem conectados a</p><p>alguém pelo processo de catexia frequentemente insistem que</p><p>amam a outra pessoa, mesmo magoando-a ou negligenciando-a.</p><p>O que eles sentem é catexia, mas insistem que é amor.</p><p>Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o</p><p>nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica claro que</p><p>não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos.</p><p>Amor e abuso não podem coexistir. Abuso e negligência são, por</p><p>definição, opostos a cuidado. Ouvimos com frequência sobre</p><p>homens que batem na esposa e nos filhos e então vão ao bar da</p><p>esquina proclamar apaixonadamente o quanto os amam. Se você</p><p>conversar com a esposa num dia bom, ela pode insistir que ele a</p><p>ama, apesar da violência. A grande maioria de nós vem de</p><p>famílias disfuncionais nas quais fomos ensinados que não</p><p>éramos bons, nas quais fomos constrangidos, abusados verbal</p><p>e/ou fisicamente e negligenciados emocionalmente, mesmo</p><p>quando nos ensinavam a acreditar que éramos amados. Para a</p><p>maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais aceitar</p><p>uma definição de amor que não nos permitiria mais identificar o</p><p>amor em nossas famílias. Muitos de nós precisamos nos apegar</p><p>a uma ideia de amor que torne o abuso aceitável ou que ao</p><p>menos faça parecer que, independente do que tenha acontecido,</p><p>não foi tão ruim assim.</p><p>Criada numa família em que o constrangimento agressivo e a</p><p>humilhação verbal coexistiam com muito afeto e cuidado, tive</p><p>dificuldade para abraçar o termo “disfuncional”. Uma vez que eu</p><p>ainda me sentia e me sinto apegada aos meus pais e irmãos,</p><p>orgulhosa de todas as dimensões positivas de nossa vida</p><p>familiar, não queria nos descrever usando um termo que dava a</p><p>entender que nossa vida juntos tinha sido completamente</p><p>negativa ou ruim. Não queria que meus pais pensassem que eu</p><p>os menosprezava; aprecio todas as coisas boas que eles</p><p>concederam à família. Com ajuda da terapia, fui capaz de ver o</p><p>termo “disfuncional” como uma descrição útil, e não como um</p><p>julgamento totalmente negativo. Minha família de origem me</p><p>proporcionou, ao longo da infância, um ambiente disfuncional, e</p><p>essa situação não mudou. Isso não significa que não seja um</p><p>ambiente no qual a afeição, o prazer e o cuidado também estão</p><p>presentes.</p><p>Em um dia normal na minha família de origem, eu receberia</p><p>atenção carinhosa, e o fato de eu ser uma menina inteligente</p><p>seria afirmado e estimulado. Então, horas depois, alguém me</p><p>diria que era exatamente porque eu me achava tão esperta que</p><p>provavelmente acabaria louca e internada num hospício onde</p><p>ninguém iria me visitar. Não é surpreendente que essa estranha</p><p>mistura de carinho e crueldade não tenha alimentado</p><p>positivamente o desenvolvimento do meu espírito. Aplicando a</p><p>definição de amor de Peck à experiência da minha infância no lar</p><p>em que cresci, honestamente não poderia descrevê-la como</p><p>amorosa.</p><p>Pressionada na terapia a descrever minha família de origem</p><p>como amorosa ou não, dolorosamente reconheci que não me</p><p>sentia amada, mas me sentia cuidada. E fora da nossa casa eu</p><p>me sentia genuinamente amada por algumas pessoas da família,</p><p>como meu avô. Essa experiência de amor verdadeiro (uma</p><p>combinação de cuidado, compromisso, confiança, sabedoria,</p><p>responsabilidade e respeito) nutriu meu espírito ferido e permitiu</p><p>que eu sobrevivesse a atos de desamor. Sou grata por ter sido</p><p>criada em uma família que era cuidadosa, e acredito fortemente</p><p>que, se meus pais tivessem sido bem amados pelos pais deles,</p><p>eles teriam dado amor aos filhos. Eles deram aquilo que</p><p>receberam: cuidado. Ressalto que o cuidado é uma dimensão do</p><p>amor, mas somente cuidar não significa que estamos amando.</p><p>Como muitos adultos que foram física e/ou verbalmente</p><p>abusados quando crianças, passei boa parte da minha vida</p><p>tentando negar as coisas ruins que haviam acontecido, tentando</p><p>me apegar apenas às memórias dos momentos bons e deliciosos</p><p>em que conheci o carinho. No meu caso, quanto mais bem-</p><p>sucedida eu me tornava, mais queria parar de falar a verdade</p><p>sobre a minha infância. Frequentemente, críticos da literatura de</p><p>autoajuda e de programas de reabilitação gostam de fazer</p><p>parecer que muitos de nós ansiamos por acreditar que nossas</p><p>famílias de origem foram, são ou continuam disfuncionais, ou que</p><p>lhes falta amor, mas descobri que, assim como eu, a maioria das</p><p>pessoas criadas em lares excessivamente violentos ou abusivos</p><p>evita aceitar qualquer crítica negativa a suas experiências. Em</p><p>geral, muitos de nós precisam de alguma intervenção</p><p>terapêutica, seja por meio de leituras que nos ensinam e nos</p><p>iluminam, seja por meio de sessões de análise, para que</p><p>sejamos capazes de ao menos começar a examinar criticamente</p><p>as experiências de nossa infância e de reconhecer as formas</p><p>pelas quais elas impactam nosso comportamento como adultos.</p><p>A maioria de nós tem dificuldade de aceitar uma definição de</p><p>amor que afirma que nunca somos amados em contextos nos</p><p>quais existe abuso. A maioria das crianças abusadas física e/ou</p><p>psicologicamente foi ensinada pelos adultos responsáveis que</p><p>amor pode coexistir com abuso. E, em casos extremos, que o</p><p>abuso é uma expressão de amor. Esse pensamento defeituoso</p><p>com frequência molda nossas percepções adultas do amor.</p><p>Então, assim como nos apegamos à ideia de que aqueles que</p><p>nos machucaram quando éramos crianças nos amavam,</p><p>tentamos racionalizar o fato de sermos machucados por outros</p><p>adultos, insistindo que eles nos amam. No meu caso, muitas</p><p>práticas de humilhação às quais fui submetida na infância</p><p>continuaram em meus relacionamentos românticos adultos.</p><p>Inicialmente, eu não queria aceitar uma definição de amor que</p><p>me obrigaria a encarar a possibilidade de não o ter conhecido</p><p>nos relacionamentos que eram mais importantes para mim. Anos</p><p>de terapia e reflexão crítica me permitiram aceitar que não há um</p><p>estigma associado ao reconhecimento da falta de amor nos</p><p>relacionamentos mais importantes. E se o objetivo da pessoa é a</p><p>autorrecuperação, o bem-estar de sua alma, confrontar o</p><p>desamor de modo honesto e realista é parte do processo de</p><p>cura. A falta de amor consistente não significa falta de cuidado,</p><p>afeição ou prazer. Na realidade, meus relacionamentos de longa</p><p>duração, assim como os laços da minha família, foram tão</p><p>carregados de cuidado que seria bem fácil ignorar a disfunção</p><p>emocional em curso.</p><p>Para transformar a falta de amor em minhas relações mais</p><p>importantes, primeiro tive que reaprender o significado do amor</p><p>e, a partir dali, aprender como ser amorosa. Aceitar uma</p><p>definição clara de amor foi o primeiro passo do processo. Como</p><p>muitos que leram A trilha menos percorrida várias vezes, sou</p><p>grata por ter encontrado uma definição de amor que me ajudou a</p><p>encarar os lugares em minha vida onde ele estava ausente. Foi</p><p>por volta dos 25 anos que aprendi a entender o amor como “a</p><p>vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio</p><p>crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. Ainda foram</p><p>necessários anos para que eu me desapegasse de padrões de</p><p>comportamento aprendidos que anulavam minha capacidade de</p><p>dar e receber amor. Um padrão que tornava a prática do amor</p><p>especialmente difícil era com frequência escolher estar com</p><p>homens emocionalmente feridos, que não estavam tão</p><p>interessados em ser amorosos, embora desejassem ser amados.</p><p>Eu queria conhecer o amor, mas estava com medo de me</p><p>entregar e confiar em outra pessoa. Tinha medo da intimidade.</p><p>Ao escolher homens que não estavam interessados em ser</p><p>amorosos,</p><p>eu era capaz de praticar o ato de dar amor, mas</p><p>sempre num contexto insatisfatório. Naturalmente, minha</p><p>necessidade de receber amor não era saciada. Recebia o que</p><p>estava acostumada a receber — carinho e afeição, geralmente</p><p>misturados com algum grau de grosseria, negligência e, em</p><p>algumas ocasiões, franca crueldade. Às vezes eu era dura. Levei</p><p>muito tempo para reconhecer que, embora quisesse conhecer o</p><p>amor, tinha medo de ter intimidade de fato. Muitos de nós</p><p>escolhemos relacionamentos de afeição e carinho que nunca se</p><p>tornarão amorosos porque eles parecem mais seguros. As</p><p>demandas não são tão intensas quanto as do amor. O risco não</p><p>é tão grande.</p><p>Muitos de nós desejamos amor, mas nos falta coragem para</p><p>correr riscos. Embora sejamos obcecados com a ideia do amor, a</p><p>verdade é que a maioria de nós leva uma vida decente,</p><p>relativamente satisfatória, ainda que sintamos a falta de amor.</p><p>Nesses relacionamentos, compartilhamos afeição e/ou carinho</p><p>verdadeiro. Para a maioria de nós, parece ser suficiente, porque</p><p>geralmente é muito mais do que recebemos de nossa família de</p><p>origem. Sem sombra de dúvida, muitos de nós se sentem mais</p><p>confortáveis com a ideia de que o amor pode significar qualquer</p><p>coisa para qualquer um precisamente porque, quando o</p><p>definimos com precisão e clareza, isso nos deixa cara a cara com</p><p>o que nos falta — com uma alienação terrível. A verdade é que,</p><p>em nossa cultura, muitas pessoas não sabem o que é o amor. E</p><p>esse desconhecimento parece um segredo horrível, uma</p><p>ausência que precisamos esconder.</p><p>Se tivessem me dado uma definição clara de amor mais cedo</p><p>em minha vida, não teria levado tanto tempo para me tornar uma</p><p>pessoa amorosa. Se eu tivesse compartilhado com outros uma</p><p>compreensão comum do que significa amar, teria sido mais fácil</p><p>cultivar o amor. É particularmente angustiante que tantos livros</p><p>recentes a respeito do tema continuem insistindo que definições</p><p>de amor são desnecessárias e sem importância. Ou pior, os</p><p>autores sugerem que o amor deveria significar algo diferente</p><p>para homens e para mulheres — que os sexos devem respeitar e</p><p>se adaptar à nossa inabilidade de comunicação, uma vez que</p><p>não partilhamos a mesma linguagem. Esse tipo de literatura é</p><p>popular porque não exige mudanças nas formas estabelecidas</p><p>de pensar papéis de gênero, cultura ou amor. Em vez de</p><p>compartilhar estratégias que nos ajudariam a nos tornar mais</p><p>amorosos, ela na verdade encoraja todo mundo a se adaptar às</p><p>circunstâncias em que falta amor.</p><p>As mulheres, mais do que os homens, se apressam em</p><p>consumir essas leituras. Fazemos isso porque coletivamente nos</p><p>preocupamos com o desamor. Uma vez que muitas mulheres</p><p>acreditam que nunca conhecerão um amor completo, elas estão</p><p>dispostas a se acomodar a estratégias que ajudem a amenizar a</p><p>dor e aumentar a paz, o prazer e a diversão nos relacionamentos</p><p>existentes, especialmente nos românticos. Em nossa cultura, não</p><p>existem canais para os leitores responderem aos autores desses</p><p>livros. E nós não sabemos se eles têm sido realmente úteis, se</p><p>promovem mudanças construtivas. O fato de que mulheres, mais</p><p>do que homens, comprem livros de autoajuda, usando nossos</p><p>recursos de consumidoras para manter obras específicas na lista</p><p>de mais vendidas, não é um indício de que elas nos ajudem</p><p>efetivamente a transformar nossa vivência. Comprei toneladas de</p><p>livros de autoajuda. Somente alguns realmente fizeram diferença</p><p>em minha vida. Isso acontece com muitos leitores.</p><p>A ausência de debate público e de políticas públicas</p><p>relacionadas à prática do amor em nossa cultura significa que</p><p>ainda precisamos nos voltar para os livros como uma fonte</p><p>primária de sentido e orientação. Um grande número de leitores</p><p>aceita a definição de amor de Peck, aplicando-a em sua vida de</p><p>formas úteis e transformadoras. Podemos espalhar a ideia</p><p>evocando essa definição em conversas no dia a dia, não apenas</p><p>quando falamos com outros adultos, mas também em nossos</p><p>diálogos com crianças e adolescentes. Quando interferimos nas</p><p>suposições confusas de que o amor não pode ser definido,</p><p>oferecendo delimitações práticas, úteis, já estamos criando um</p><p>contexto em que o amor pode começar a florescer.</p><p>Algumas pessoas têm dificuldade com a definição de amor de</p><p>Peck porque ele usa a palavra “espiritual”. Ele se refere àquela</p><p>dimensão de nossa realidade mais íntima em que a mente, o</p><p>corpo e o espírito são um só. O indivíduo não precisa ser</p><p>praticante de uma religião para abraçar a ideia de que existe um</p><p>princípio que anima o self — uma força vital (alguns de nós a</p><p>chamamos de alma) que, quando alimentada, aumenta nossa</p><p>capacidade de sermos inteiramente autorrealizados e aptos a</p><p>nos relacionarmos em comunhão com o mundo ao nosso redor.</p><p>Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em</p><p>vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer</p><p>um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma</p><p>responsabilidade e comprometimento. Somos com frequência</p><p>ensinados que não temos controle sobre nossos “sentimentos”.</p><p>Contudo, a maioria de nós aceita que escolhemos nossas ações,</p><p>que a intenção e o desejo influenciam o que fazemos. Também</p><p>aceitamos que nossas ações têm consequências. Pensar que as</p><p>ações moldam os sentimentos é uma forma de nos livrarmos de</p><p>suposições aceitas convencionalmente, como a de que pais</p><p>amam seus filhos, de que alguém simplesmente “cai” de amores</p><p>sem exercer desejo ou escolha, de que existe algo chamado</p><p>“crime passional”, isto é, a ideia de que ele a matou porque a</p><p>amava demais. Se nos lembrássemos constantemente de que o</p><p>amor é o que o amor faz, não usaríamos a palavra de um jeito</p><p>que desvaloriza e degrada o seu significado. Quando amamos,</p><p>expressamos cuidado, afeição, responsabilidade, respeito,</p><p>compromisso e confiança.</p><p>Definições são pontos de partida fundamentais para a</p><p>imaginação. O que não podemos imaginar não pode vir a ser.</p><p>Uma boa definição marca nosso ponto de partida e nos permite</p><p>saber aonde queremos chegar. Conforme nos movemos em</p><p>direção ao destino desejado, exploramos o caminho, criando um</p><p>mapa. Precisamos de um mapa para nos guiar em nossa jornada</p><p>até o amor — partindo de um lugar em que sabemos a que nos</p><p>referimos quando falamos de amor.</p><p>4. Em inglês, a distinção entre o substantivo love (amor) e o verbo to love (amar) é</p><p>indicada apenas por uma partícula. É impossível transpor o significado original da</p><p>frase, pois o português distingue o verbo do substantivo pela vogal temática e pela</p><p>desinência. [�.�.]</p><p>02.</p><p>justiça:</p><p>lições de</p><p>amor na</p><p>infância</p><p>Separações graves no começo da vida deixam</p><p>cicatrizes emocionais no cérebro porque atacam a</p><p>conexão humana essencial: o elo mãe-filho, que nos</p><p>ensina que somos dignos de ser amados. O elo mãe-</p><p>filho nos ensina a amar. Não podemos nos tornar</p><p>seres humanos completos — na verdade, é difícil</p><p>tornar-se um ser humano — sem o apoio dessa</p><p>primeira ligação.</p><p>— Judith Viorst</p><p>Nós aprendemos sobre o amor na infância. Seja nosso lar feliz</p><p>ou problemático, nossa família funcional ou disfuncional, é essa a</p><p>primeira escola do amor. Não consigo me lembrar de sequer ter</p><p>vontade de pedir aos meus pais que definissem o amor. Para a</p><p>minha mente infantil, o amor era o sentimento bom que você</p><p>tinha quando seus familiares te tratavam como se você</p><p>importasse, e você os tratava como se eles importassem. O amor</p><p>esteve sempre e apenas associado a se sentir bem. No início da</p><p>adolescência, quando apanhávamos e nos diziam que essas</p><p>punições eram “para o nosso próprio bem” ou “estou fazendo</p><p>isso porque te amo”, meus irmãos e eu ficávamos confusos. Por</p><p>que uma punição severa era um gesto de amor? Como fazem as</p><p>crianças, fingíamos aceitar essa lógica dos adultos, mas</p><p>sabíamos em nosso coração que isso não estava certo.</p><p>Sabíamos que era mentira. Tal como a mentira que os adultos</p><p>contavam logo depois dessas punições tão duras: “Dói mais em</p><p>mim que em você”. Nada cria mais confusão em relação ao amor</p><p>no coração e na mente de crianças do que punições duras e/ou</p><p>cruéis aplicadas pelos mesmos adultos que elas foram ensinadas</p><p>a amar e respeitar. Essas crianças aprendem</p>
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